ANTISSOCIAL

Aqui em cima está tudo muito calmo e silencioso, mas esse vento pujante trouxe consigo todo o filme da minha vida, que não tardou em rodar rapidamente na cabeça logo após a inevitável decisão. Acho que não quero lembrar, entretanto não consigo evitar.

***

A queda é lenta, mas as memórias afloram fugazmente, ultrapassando a velocidade desse que deveria ser um lépido momento. “Recordei-me imediatamente da tenra infância, primeiro dia de aula; Não chorei, mas também não sorri. Minha mãe achou que eu estivesse bem. Por dentro, estática como fiquei, senti um arrepio frio percorrer por toda a espinha e a dor do abandono incrustou nas entranhas. Não tive vontade de brincar e nem muito menos de socializar com todas aquelas crianças barulhentas. Não lembro de esboçar o mínimo de empatia por nada. Era tudo demasiado entediante. Não adiantou nada o esforço daquela moça simpática em querer me agradar; Eu a olhava e simplesmente a achava patética. Pobre professora. E foi assim durante todo o tempo em que permaneci na escola . O meu mundo naquele lugar sacal resumia-se aos estudos apenas. Eu mergulhava nos livros para refugiar-me, isolar-me, e desta forma, sentir-me em segurança.” Abri os olhos e fechei a janela desse período .

As lufadas violentas de ar no rosto me obrigaram a cerrar os olhos novamente. Esse gesto involuntário trouxe consigo a reminiscência da famigerada e temida adolescência. “Que tempo difícil! Apesar disso, fiz ainda alguns poucos amigos, com os quais até vivi alguns momentos um tantinho agradáveis. Nada de muita proximidade, claro. Não era de minha natureza qualquer tipo de envolvimento emocional. Nessa época eu estava sempre próxima às rodas de conversas, pois não queria ser “a estranha” que seria alvo de piadas sem graça. No entanto, permanecia num mutismo quase que absoluto. Eles pouco sabiam de mim, das minhas preferências, da minha vida. Contudo, aceitavam-me como parte do grupo sem muito me incomodar.” Arregalei os olhos para dissipar tais pensamentos. Percebi que ainda não avançara nem metade do caminho e constatei que o ar grotesco não me permitia apreciar aquele instante libertador.

Fechei-os tão forte que fui levada a um dos períodos mais complicados. “Quando a vida adulta chegou optei por não casar e não ter filhos. Viver era demasiado sofrível para pôr mais um ser humano nesse mundo sujo. Ademais, sabia que não seria capaz de amar a quem quer que fosse. Nunca tive instinto materno, sempre tive aversão às bonecas e às crianças, e não seria agora que tudo mudaria. Quando imagino os irritantes choros, a esdrúxula sucção dos seios, a repugnante higienização, a fatigante educação, e o pior de tudo, a árdua distribuição de afeto e carinho, sinto asco, um embrulho nauseante no estômago, vontade de vomitar. Chego a sufocar-me só em tais pensamentos aflorarem em minha mente. Prefiro o resguardo do isolamento.” Ainda devo estar pelo sexto andar, não tenho certeza, mas não consigo parar de pensar e remoer o passado.

“O mais difícil na maturescência seria arranjar uma ocupação na qual eu pudesse me sustentar sem ter muito contato com as pessoas. Adiei o quanto pude. Felizmente, não sei se estou sendo muito fria, talvez esteja, mas felizmente papai, que era militar, faleceu muito cedo em um acidente de trabalho e recebemos uma indenização do Estado e uma pensão vitalícia. Com o dinheiro, mamãe investiu numa pequena floricultura e pude trabalhar com jardinagem, não precisando abdicar da minha doce reclusão. Eu cuidava das plantas e ela lidava com os clientes. Eu gostava de mamãe, ela me entendia e respeitava a minha condição de solitude. Vez ou outra até trocávamos algumas palavrinhas. Um belo dia, ela sofreu um infarto fulminante e tudo o que consegui fazer foi observar com olhos arregalados e assustados a sua agonia por pelo menos um quarto de hora. Meu corpo inteiro estremeceu ao imaginar ter que sair de casa para procurar ajuda. Congelei e a olhei o tempo inteiro do canto da sala, recostada à parede, enquanto ela estendia-me os braços numa súplica silenciosa.

Depois que ela faleceu, fechei o negócio e sobrevivi com a pensão de papai, que não era lá muita coisa, mas era o suficiente para manter a minha paz. Esqueci tios, primos e quaisquer outros parentes que ainda pudessem existir. E não posso mensurar o tamanho da minha gratidão por eles terem me esquecido também. Foi um alento para a minha alma.”

Parece-me que agora estou quase lá, falta pouco para tudo terminar e estou a pensar se tomei a decisão mais acertada, embora tenha plena consciência de que agora não seja mais possível voltar atrás. Resta-me alguns longos segundos para refletir. Será que fui infeliz por todos esses anos? Sempre achei que não. Eu era somente uma mulher apática, que preferiu recolher-se da tumultuosa vida exterior. Todos esses contratos sociais que somos obrigados a estabelecer desde que nascemos, para mim não passam de banalidades superficiais cansativas e totalmente dispensáveis. Gostava mesmo era de estar com as plantas e com os livros, e estes eram o universo no qual sentia-me verdadeiramente bem. Vivi então até a maturidade desta forma, alheia a todos. Depois de um tempo, nem a família fazia-me falta. A solidão era também uma espécie de liberdade. Não suportava o convívio com as pessoas, mas não fui capaz de refrear o vazio que sempre fez parte de mim.

Na manhã de hoje senti um dolorido aperto no peito. Precisava sair do confinamento para sempre. Aquela casa deteriorada e abandonada não mais me fazia bem (talvez nunca tenha feito). Não resisti ao impulso. E agora cá estou eu despencando do alto deste imponente edifício. Gosto de sentir esse vento gélido batendo na face. Lá embaixo, tudo é cinza e caótico demais. Jamais me conformei com essa perturbação mundana, aquilo tudo rouba-me o juízo. Aqui em cima não. Gosto do azul celeste e do ar mais puro, é na altivez que sinto-me feliz. E é por aqui que decido ficar de vez. Já está acabando e eu estou renascendo. Libertação.

***

A queda se deu no momento em que sua atenção voltou-se para o uivo de um vento forte, aproveitou a rajada intensa e jogou-se. Não sentiu o impacto da queda. Antes disso, já criara asas e observava, tranquilamente, do alto de uma nuvem confortável, o velho corpo estendido no chão. Maravilhou-se com uma brisa que batia-lhe suavemente no rosto e esvoaçava-lhe as longas madeixas negras. Não era a vida que lhe fora ruim, mas sim a prisão invisível na qual viveu desde que nascera. Agora, pela primeira vez, sorria com genuína satisfação.

Aline Teodosio
Enviado por Aline Teodosio em 31/05/2018
Reeditado em 31/05/2018
Código do texto: T6351670
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.