A LENDA DA CARROÇA

A LENDA DA CARROÇA

Noite de mistério

No balanço da carroça

Morte vem e vai

Questões judiciais fizeram necessário desenterrar a história.

Herdeiros distantes das vítimas pleiteavam a posse da fazenda, abandonada desde o Acidente do Barranco.

O Inspetor fora indicado para o caso. Era de renomada capacidade e competência em esclarecer assuntos de semelhante mistério. Contribuiu para aceitar o desafio a curiosidade pessoal. Vivera parte de sua juventude próximo do local e seus parentes narravam sobre a Lenda da Carroça do Vilarejo.

Teria, assim, a oportunidade de conhecer melhor o caso e, quem sabe, desanuviar a sombra que assustava os pacatos moradores do Vilarejo.

O espírito amistoso e receptivo dos moradores, curiosos ante a chegada de um Inspetor da Lei, logo alterou-se quando souberam o motivo da visita.

Ariscos diziam saber, só de ouvir contar.

Havia verdade na ignorância.

O fato ocorrera há tantos anos que raros saberiam, de ter visto, a verdade do ocorrido.

História passada no boca-a-boca, cochichada e pedindo segredo.

Carroça tombara no Barranco com a viúva e jovem senhora da fazenda e seus três meninos.

Não cabia na razão tombar a carroça.

Cocheiro experiente conhecia cada buraco e pedra da Estrada.

Nos registros oficiais nenhuma menção do Cocheiro na cena do Acidente.

Desaparecera sem notícia.

Mexer em segredos

Revelações perigosas

Tragédias sem fim

Convidou os mais antigos para uma tarde de chá.

Cálices de licor também servidos romperam barreiras, animaram a conversa.

Cheio de dedos, arriscou no assunto

Tristeza demais, comentou um. Gosto de falar nisso, não.

Melhor não mexer com essas coisas sem explicação, aduziu dona Kalina.

Vilarejo de bico fechado.

Menos um.

Sr.Arnolfo, o Bombeiro.

Disse saber, de ouvir falar dos mais antigos. Inclusive, pesquisara nos registros secretos da corporação e nenhuma linha a respeito.

O que se contava era que Caminhante, atraído pelos latidos do Cachorro, viu a carroça tombada no fundo do Barranco.

Desceu e encontrou os corpos.

Não mexeu neles e de passo acelerado, chamou auxílio no vilarejo.

Encontrou o velho Serafim que, sem um ofício definido, fazia também as vezes de Bombeiro no vilarejo, que não tinha à época organização oficial de Corpo de Bombeiros.

Num Vilarejo, sem incêndios, Serafim socorria a todos os tipos de incidentes não atendidos por outros.

Atualizando, Serafim era o conhecido “Quebra-galhos”.

Serafim, de pronto, pegou seus materiais de primeiros-socorros nunca usados e com o Caminhante dispararam ao Barranco.

Beleléu, um bêbado errante das ruelas do Vilarejo, ouviu a conversa, guardou a garrafa e decidiu oferecer ajuda.

Seguiu-os tropeçando pela estrada rumo ao Barranco. O Vira-Latas e fiel companheiro de Beleléu foi atrás.

Serafim desceu e lamentou não haver mais o que fazer. Sem vidas a salvar, pensou na medalha que poderia levar no peito, homenageando-o como herói. E também, quem sabe, um título de Salva-Vidas.

Desacorçoado subiu o Barranco.

Não viu mais o Caminhante.

Encontrou o Vira-latas cheirando o chão e rosnando desconfiado.

Ouviu a voz embargada de Beleléu. Apelava socorro. Tropeçara ao descer e acenava estatelado no Barranco, sem ferimentos, mas apontava apavorado para o céu, imitando um latido.

Do Caminhante nunca mais se soube, oficialmente.

Rápidas imagens

Miragens desaparecem

Mistérios perpétuos

Vilarejo era um detalhe no caminho.

Milhares, digamos dezenas ou talvez e mais provável alguns, de Caminhantes passavam pelo Vilarejo, vindos de algum lugar e seguiam para não se sabia onde.

Uns sentavam-se à sombra de alguma árvore.

Muitos tomavam um gole de água na fonte da praça.

E todos partiam, sem palavras...

Alguns faziam o sinal da Cruz ao passar à frente da Capela.

Outros nem isso.

Instigado a mais falar, o Sr. Arnolfo, talvez diluído o efeito do licor, fechou-se em Copas. Acrescentou, apenas, que de Serafim sabia como derradeira notícia sua mudança sem deixar local de nova moradia.

Jurou, de cruzar os dedos, que ouvira a história do próprio Serafim.

Bebeléu morrera há muitos anos.

E pouco ajudaria.

Um dos presentes afirmou, de ouvir dizer, que no fim da vida Beleléu confundia os fatos. Ausente qualquer lógica a dividir a realidade das miragens alcoólicas.

Verdades... mentiras

Diversas realidades

De cada momento

Cochichos entre troca de olhares curiosos.

Animado pelo primeiro depoimento, para não se sentir menor, outro ergueu o braço para contar a versão que sabia, de ouvir dizer.

Vilarejo atônito!

Sabia, repetindo sempre, de ouvir falar, que um Tropeiro, atraído pelos latidos de um Cachorro no alto do Barranco, viu a Carroça tombada no fundo do Barranco.

Nem desceu. Seu cavalo estava arisco, como visse fantasmas.

Resistente a acalmar-se, o Cavalo, relinchando, galopeou em disparada, sem ordem, até a praça da Capela, parando de súbito.

O Tropeiro, passado os sustos dele e do Padre, que abria a porta da Capela, noticiou o fato, que diante da gravidade anunciada, em passo ligeiro dirigiu-se ao Barranco, sem tocar o Sino.

Vilarejo perdeu a hora.

Pelo caminho vinha, exausta, D. Zenith que conhecia um pouco de Medicina. Parteira que era trouxera ao mundo mais um. Cabeça balançando afirmação, dispensou o cansaço da longa noite do parto e acompanhou o Padre.

Tropeiro sumira.

Padre e Parteira desceram o Barranco confirmando não haver tempo para a Unção final.

Padre abençoou e orou um pouco.

Subiram lamentosos o Barranco.

Vilarejo era um detalhe no caminho.

Tropeiros passavam todos os dias, seriam semanas ou mais provável meses, pelo Vilarejo, na rotina de levar boiadas de algum lugar, rumo ao matadouro próximo a outra Vila Maior, que não sabiam, ao certo, aonde ficava, de tão distante.

Todos paravam a Boiada a tomar água no riacho que cortava o Vilarejo.

A maioria tomava um gole de água na fonte da praça.

Uns faziam o sinal da Cruz ao passar a frente da Capela.

Outros nem isso.

Apressados, tocavam a boiada.

Medo terrível

Coragem passa distante

Aos riscos de vida

.

Do Padre sabia-se fora transferido para uma Vila maior e distante.

Nos livros da Sacristia nenhum registro de velório, missa, enterros e outros sacramentos referentes aos acidentados.

Parteira amanheceu sem vida, com sinais de infecção raivosa de mordida de Cachorro Louco, dias depois do Acidente.

Cochichos entre os olhares assustados.

Não foi bem assim!

Falou mais alto o Sr. Astaire, Dono do Bar.

Vilarejo de boca aberta.

Disse saber, de tanto ouvir falarem no balcão do Bar.

Cocheiro ferido, a notar-se pelo sangue nas roupas, chegara trôpego ao Vilarejo antes do sol.

Assustado, gritava que um Cachorro uivando atirara-se em seu pescoço, jogando-o fora da Carroça e causando o tombamento.

Alguns, talvez fossem muitos ou provavelmente quase todos, moradores do Vilarejo correram ao Barranco.

Uns poucos cuidaram levar o Cocheiro aos cuidados da Parteira.

Os que foram voltaram aterrorizados com a tragédia.

Parteira contava que o Cocheiro gania de dores.

Mordera sua mão quando tentou passar a toalha molhada em seu rosto, para amenizar a febre que lhe acometeu, de súbito.

Horas depois, apresentou grande melhora, levantou-se e saiu em direção da estrada, sem palavra de despedida dizer.

Vilarejo possuía pequena necrópole.

Sepultamento não foi lá.

A maioria afirmava, de ouvir dizer, que foram levados para outra Vila, por vontade da família.

Alguns negacearam...

Um gritou: “Vilarejo não quis enterrar malfeito do Cão!”

Outro alertou que escurecia e era melhor encerrar aquele assunto.

Todos, mesmo, entreolharam-se e levantaram-se, saindo sem despedidas ao Inspetor.

Decisão correta

Impossível julgamento

Cada um com a sua

A noite de pensamentos e reflexões era arrastada.

O Sino tocou pontualmente, meia-noite.

Decidiu-se, empurrado por força estranha.

Solitário, seguiu em direção ao Barranco.

Algumas janelas, ou seriam todas, espiavam olhares de espanto e curiosidade...

Temores naturais do caminhar pelo desconhecido sendo substituídos por calafrios ao aproximar-se do Barranco.

Era-lhe familiar o lugar.

Dèja-vú?

Cabeça repleta de imagens da noite do Pesadelo.

Saltando à Carroça.

O sangue do Cocheiro.

Carroça rodando Barranco abaixo.

Cheiro de morte impregnando o ar.

Uivou até o dia amanhecer.

Janelas fechadas a diminuir o medo.

Medo sem sentido...

Lobisomens são lendas...

Ninguém mais soube do Inspetor.

Uns, de ouvir falar, garantem que voltou para sua Vila.

Desta vez, sem parar no Vilarejo...

Impossível sonhos

Incômodo persistente

Cruel pesadelo

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 09/12/2018
Reeditado em 09/12/2018
Código do texto: T6522738
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