Dedicatória

Este que vos fala é um verme. Não aquele que recebeu a dedicatória escrita por Brás Cubas, mas um verme gordo, bem alimentado, e culto.

Li toda a obra. É uma literatura popular entre nós, vermes, embora evitemos ler sobre os humanos, nosso alimento. Nos padece de uma empatia que nos adoece e nos mata. Não podem existir vermes vegetarianos - a morte precisa estar aí. A morte é nosso alimento.

Nossa existência seria mais fácil, confesso, se mais pessoas pensassem como Cubas. Tudo acaba, ao menos fisicamente, na nossa mordiscada. Qual a porcentagem de humanos que param, ao menos por um minuto das suas vidas, para lembrar dos vermes que farão da sua existência um banquete? Um banquete, e só. Essas coisas que eles se importam, tão criticadas pelo Machado, religiões, status, dinheiro, amores...isso tudo acaba no físico, acaba no meu jantar. Já roí líderes políticos e religiosos.

Eles são os peixes e vacas que tão inconscientes comem. E não sabem.

O bicho homem que, por algum motivo, não se reconhece como bicho, precisa entender que não está no topo da cadeia alimentar - nós estamos. Machado reconheceu isso.

Em nosso mundo, são famosas as poucas dedicatórias dos humanos às outras espécies.

Nem que seja para só para travar a língua, cantar cantiga: o rato que roeu a roupa do rei de roma e os tigres que se diziam tristes sempre se sentiram representados. O macaco e o cachorro, então, nem se fala.

Nós, vermes, apesar de sermos muito mais morte do seria uma figura cadavérica envolta em pano preto, como ilustrada nos livros, não temos lugar. Nunca tivemos.

Isso foi por muita sorte.

Nunca tentaram nos domesticar. Ninguém cria uma ninhada de vermes e vende os filhotes nas lojas. Nem em habitat natural (um corpo qualquer) somos observados. Isso, imagino, porque só a morte tem muito lugar no mundo. O símbolo. Na verdade, o momento depois da morte, (se é que há momento). Existem festas e eventos sobre ele, livros e livros, poemas, cultos, missas, mas para o morto não. E junto com o morto estão as larvas, os vermes, os insetos.

Somos marginalizados à morte muito antes de morrer.

De qualquer forma, isto nos torna livres. Para sobreviver, basta não chamar atenção dos humanos, não ter utilidade para eles. É assim que se não é escravizado - como foram os cavalos, por exemplo. Ou o próprio humano, pelos humanos.

Como seria a vida humana se fosse livre como um verme? Sua rotina seria comer e procriar? Esta é a nossa, ao menos.

Não havia sido feito pra isto?

Apesar de ser um verme culto, não tenho expectativas a mais sobre a minha espécie, além de sua natureza. Foi feita para comer e procriar. E é isto que estamos fazendo: comendo e procriando. E morrendo. Alimentando outros.

Tenho certeza que um humano qualquer invejaria uma vida de verme...

Dedico a minha liberdade a eles.

Talvez, ao primeiro homem que, além do personagem, pense no primeiro verme que andará pelo seu corpo.