O ROMEIRO

Sentiu-se dançando num inefável tapete de musgos. Mas era apenas merda. Muita merda acumulada em anos e anos de cagança festiva e dourada. Foram os anos das cerimônias mais pomposas, dos milagres mais etéreos. Multidões chegavam de todas as partes. E devoravam dezenas de milhares de cachorros-quentes, de espigas de milho e bebiam a beberagem escura que os camelôs de comidas, em centenas de carrocinhas, ofereciam como brinde, um caldo grosso e doce, diziam ser de cana. Assim, cagava-se muito. Cagava-se em todos os lugares. E agora, na noite de breu da cidade da santa, sozinho e cansado, ele queria apenas uma enxerga dura para jogar o esqueleto bambo da longa travessia. De longe viera, como tantos vinham todos os anos. Mas dessa vez, não teve reza que evitasse o tempo perdido. No tranco da estrada, o carro quebrado, justo o eixo novo, novinho em folha. Estrago feito, não adiantava espernear. Mas achar a cabriúva, cortar a árvore, aplainar a madeira, acertar com capricho a espiga, arredondar a emborgueira, alisar, azeitar e encaixar bem direitinho a cantadeira nas duas rodas que giram, e em harmonia girando, fazem chiar o chiado do carro além da curva da estrada, tudo isso levou tempo. Nesse entretanto, os dois bois engordaram, tornaram-se preguiçosos e a viagem, ainda mais lenta naquela lentidão de caminhos. E ele viu a estrada se esvaziar e depois se encher e de novo se esvaziar de peregrinos. Quando, enfim, chegou à cidade da santa, só encontrou despojos de festas acabadas, caminhos entulhados de ex-votos e lixo, muito lixo. E pior, chegou de noite, já sem óleo de mamona na azeiteira, o carro sem canto, sem alma, e ele cansado da longa jornada. Turvos do pó de tantas estradas, os olhos não mais reconheciam as velhas pegadas que levavam à vetusta capela onde todos se ajoelhavam em extremado ato de fé e de humilhação. Lavavam, ali, para sempre, velhos pecados. Deixavam, ali, aos pés da santa, a alma limpinha, imaculada mesmo, pelo menos até a próxima romaria. Trêfego e sujo, que os bois preguiçosos guiassem seus passos. Confiava, mais por necessidade que por fé de romeiro, no seu instinto de velhos conhecedores das encruzilhadas. E agora estava ali, pisando aquele musgo gosmento que cheirava pior que o sovaco do capeta. A sensação inefável virou logo desespero. Ajoelhar para pedir um milagre à santinha, nem pensar. Era tudo merda, merda até o meio da canela. Chapinhou um pouco para lá e para cá, sem saber direito o que fazer. O breu da noite sem estrela e a vista turvada do pó não o deixavam enxergar nada além da silhueta sossegada dos dois bois e do carro atolado, inerme, sem canto, sem alma. Num gesto desesperado, soltou Malhado e Cheiroso, atrelou os arreios e tentou montar num deles, sem saber direito em qual dos dois lombos tentava se equilibrar, o que só alcançou depois de muito esforço, as pernas escorregadias do limo sujo. Lá de cima, atiçou a espora no flanco do bicho, e gritou: Eia, Malhado! O bicho resfolegou, chapinhou as patas no lodo fedorento, fez que ia e corcoveou. Mal sentiu o baque das costas na lama macia e mal-cheirosa, percebeu a cagada que fizera. Errara o nome do bicho. E Cheiroso era boi sistemático e sorumbático. Não ia aceitar nunca um novo apelido, assim, depois de velho. E mais furioso ficou ao ouvir o nome dele, Cheiroso, trocado assim pelo do outro, com quem convivia há tantos anos entre turras e chifradas. Mas esse pensamento na sua cabeça não teve continuidade, porque agora ele se sentia flutuando, quase a bailar, naquele inefável mar de anos e anos de cagança festiva e dourada. E afundar para sempre, ali, como um carro sem canto e sem alma, era só a menor de suas preocupações.

3.3.2005