O Café

O seu café preto era tão fraco de pó que podia, através do copo vagabundo sem arte, enxergar seu café preto era tão fraco de pó que podia, através do copo vagabundo sem arte, enxerger seus polegares descansando do outro lado da mesa. O líquido negro tão quente quanto a água da chuva que se acumulou numa calha sob a primavera de alguma tarde sem graça. Contudo, ele não reclamaria, nem veemente nem educadamente. Teria medo. O medo que se tem do ressentimento assalariado dos garçons, empregados, serviçais, servos, escravos, ou o que o valha. O medo da represália silenciosa que se executa na surdina, que se entremeia nos alimentos e nas bebidas, deixando-se absorver pelas primeiras e permitindo-se sobrenadar sobre as outras. Sim, ele teria medo. Manteria seu café frio como companheiro; não ousaria bebê-lo, não se bebe companheiros. Sairia dali a nada, e ninguém se lembraria dele amanhã, do irresponsável que deixou seu pedido à mesa sem tocá-lo; pago, sim, tudo pago, mas ainda assim estranho. Sairia dali a nada, e ninguém se lembraria dele.

Sentia-se humilhado, roubado. Os olhares dos empregados nunca encontravam os seus, como se soubessem... Os infelizes. Queria a conta, mas ninguém o notava. A voz havia lhe abandonado. Se escapasse, seria na forma de um berro; não havia meio termo. Ou o berro ou coisa alguma. Restavam-lhe os gestos, mas que é um sinal sem um receptor. Gestos discretos, diga-se de passagem. Não queria atrair os olhares para si, para o seu copo cheio, negro e intocado. Se se levantasse, talvez o notassem, finalmente, os infelizes. Sim, era isso. Dito e feito. Todos os olhares que o evitavam, agora pousam sobre ele: um homem de pé, sem unifome, um freguês que se vai. Menos um, pensam eles, mirando agora o relógio colorido na parede. A conta é paga, e ele resolve sentar-se novamente. Pagou, sim, mas não pagou por nada. Pagou pelo tempo e pela mesa; caso o censurassem, pediria um copo d'água, e bebericá-lo-ia até amanhã.

Um segundo homem entra, não menos enfezado do que o primeiro, a julgar pela carranca que arrasta sobre os ombros, não talvez sem razão, não se sabe, quem o poderá afirmar. Ele passa pelo primeiro, à porta de entrada, e vai direto ao caixa. O burburinho que enchia o local como um motor pequeno e frágil se silencia; há uma batida, seguida de perto de cadeiras arrastando e dois estrondos que o primeiro homem nunca ouvira. O reflexo e o susto o fizeram derrubar com uma das mãos o seu copo vagabundo e cheio até a borda. Suas roupas ficaram ensopadas e quentes. O segundo homem havia ido embora e todos pareciam assustados. O rapaz que o atendera, sem uniforme agora e com jeito de gente, se aproximava pisando em ovos e lhe perguntava se estava bem; apontava para a grande mancha negra que crescia abaixo do peito. O homem, forçando um sorriso, no fundo agradecido pela atenção que o rapaz lhe cedia, dizia-lhe apenas: '' - É só café.'' Pouco antes de perder as forças, pensa ele para consigo: se o zelo humano é de fato uma virtude ou apenas um reflexo irrefletido e momentâneo.er seus polegares descansando do outro lado da mesa. O líquido negro tão quente quanto a água da chuva que se acumulou numa calha sob a primavera de alguma tarde sem graça. Contudo, ele não reclamaria, nem veemente nem educadamente. Teria medo. O medo que se tem do ressentimento assalariado dos garçons, empregados, serviçais, servos, escravos, ou o que o valha. O medo da represália silenciosa que se executa na surdina, que se entremeia nos alimentos e nas bebidas, deixando-se absorver pelas primeiras e permitindo-se sobrenadar sobre as outras. Sim, ele teria medo. Manteria seu café frio como companheiro; não ousaria bebê-lo, não se bebe companheiros. Sairia dali a nada, e ninguém se lembraria dele amanhã, do irresponsável que deixou seu pedido à mesa sem tocá-lo; pago, sim, tudo pago, mas ainda assim estranho. Sairia dali a nada, e ninguém se lembraria dele.

Sentia-se humilhado, roubado. Os olhares dos empregados nunca encontravam os seus, como se soubessem... Os infelizes. Queria a conta, mas ninguém o notava. A voz havia lhe abandonado. Se escapasse, seria na forma de um berro; não havia meio termo. Ou o berro ou coisa alguma. Restavam-lhe os gestos, mas que é um sinal sem um receptor. Gestos discretos, diga-se de passagem. Não queria atrair os olhares para si, para o seu copo cheio, negro e intocado. Se se levantasse, talvez o notassem, finalmente, os infelizes. Sim, era isso. Dito e feito. Todos os olhares que o evitavam, agora pousam sobre ele: um homem de pé, sem uniforme, um freguês que se vai. Menos um, pensam eles, mirando agora o relógio colorido na parede. A conta é paga, e ele resolve sentar-se novamente. Pagou, sim, mas não pagou por nada. Pagou pelo tempo e pela mesa; caso o censurassem, pediria um copo d'água, e bebericá-lo-ia até amanhã.

Um segundo homem entra, não menos enfezado do que o primeiro, a julgar pela carranca que arrasta sobre os ombros, não talvez sem razão, não se sabe, quem o poderá afirmar. Ele passa pelo primeiro, à porta de entrada, e vai direto ao caixa. O burburinho que enchia o local como um motor pequeno e frágil se silencia; há uma batida, seguida de perto de cadeiras arrastando e dois estrondos que o primeiro homem nunca ouvira. O reflexo e o susto o fizeram derrubar com uma das mãos o seu copo vagabundo e cheio até a borda. Suas roupas ficaram ensopadas e quentes. O segundo homem havia ido embora e todos pareciam assustados. O rapaz que o atendera, sem uniforme agora e com jeito de gente, se aproximava pisando em ovos e lhe perguntava se estava bem; apontava para a grande mancha negra que crescia abaixo do peito. O homem, forçando um sorriso, no fundo agradecido pela atenção que o rapaz lhe cedia, dizia-lhe apenas: '' - É só café.'' Pouco antes de perder as forças, pensa ele para consigo: se o zelo humano é de fato uma virtude ou apenas um reflexo irrefletido e momentâneo.