Destruição
 
     Um relâmpago rasgou o céu em pedaços com sua luz prateada. O trovão que se seguiu estrondou como a fúria de mil leões rugindo em luta pelos seus domínios. E a chuva não tardou a cair pesada e com pressa, como se há muito estivesse esperando pelo seu momento de liberdade. Espalhou-se pelas árvores, desceu livre pelos morros e correu pelas ruas desfraldando suas bandeiras, gritando palavras de ordem com a força das suas águas. Não, esse movimento não era pacifista. Havia um misto de anarquia e desordem no seu objetivo, e não haveria força que pudesse detê-lo até que houvesse cumprido a sua missão.
     E durante três dias e três noites essa batalha sem trégua se travou naquela pequena cidade, onde todos já pensavam em quem sairia vencedor.
     Ao final da terceira noite, da mesma maneira repentina como chegou, a chuva se foi deixando por todos os cantos o rastro da sua passagem devastadora.
     A pequena cidade amanheceu desconfiada daqueles primeiros raios de sol depois de três dias cinzentos, e não demorou a constatar que havia perdido aquela guerra. Já era mais que hora de resgatar os feridos, levantar os escombros, lavar a sujeira e recomeçar a viver.

- Mamãe, “o Deus” viu a chuva? - Pergunta o menino dos seus cinco anos à mãe que lhe segura a mão.
-Sim, meu bem – ela responde com ternura.
- Então, por que ele deixou ter a enchente e acabar com tudo?
Ela não sabe o que lhe responder. Olha para cima e lhe beija a mãozinha, voltando a contemplar a claridade do sol morno.

     Sim, as crianças são sábias. Embora a gente sempre esqueça e acabe achando graça das coisas que elas dizem. E na sua pureza captam as ideias mais difíceis buscando compreendê-las naturalmente perguntando coisas como: “Deus foi tendo filhos alemães, japoneses, ingleses...”?
     Deus. Raios e trovões. Tempestade. Escuridão no céu daquela pequena cidade. Minha pequena cidade. Em outras terras “do Deus” pode-se fazer bonecos de neve. Nesta terra, que Ele parece ter esquecido por três dias, se poderia remodelar a humanidade com o barro que a chuva trouxe. Da costela do primeiro se poderia ter alemães, japoneses, ingleses... e tantos outros povos de tantas outras nações que formam a comunidade que habita este lugar. E, com um sopro de vida, fazê-los trabalhar e reconstruir o que foi destruído.

- As crianças é que são felizes... olha só o que estão fazendo com o barro, diz alguém.
- É verdade, responde o outro – Parece que não perderam nada...
- Você perdeu muita coisa? Pergunta um terceiro.
- Não quero pensar. E quanto a você? – Dirigindo-se a alguém que apenas olha em volta.
- Eu perdi a paciência no primeiro dia da chuva, pois perdi a noite tentando não perder a casa. Então eu perdi o respeito por minha mulher, por meus filhos e por mim mesmo, e perdi a conta do quanto bebi. Perdi a noção do tempo e perdi o que quer que tenha acontecido de bom ou ruim nesses dias. Talvez eu tenha perdido tudo...
     E deu as costas e se perdeu entre as pessoas que passavam preocupadas em não perder tempo nos seus afazeres.

     Então, lentamente, aquela pequena cidade vai voltando a ser o que sempre foi. O assunto dominante na pracinha deixa de ser a chuva anárquica que tanto havia maltratado o lugar. Agora se fala sobre a grande sorte do dono do mercadinho que, depois de ter sua loja inundada e perder tudo o que tinha, conseguiu encontrar dentro da lata onde guardava a féria do dia o bilhete de loteria, premiado dias depois da chuva, que julgava perdido para sempre.

- Ele tirou a sorte grande! Fechou o mercadinho e foi-se embora – diz o homem do cachimbo soltando uma baforada entre uma frase e outra.
- Ele é que está certo. Ruim é para quem ficou que agora tem que fazer as compras lá fora - confirma o mais velho.
- Eu, por mim, até que gosto. Gosto mesmo de sair de vez em quando – baforeja mais uma vez o homem do cachimbo.

     Na plataforma da única estação da pequena cidade o movimento de quem chega ou vai partir enche de vida o lugarejo. Malas e sacolas, abraços, sorrisos e lágrimas, reencontros e despedidas. Breves adeuses, longas ausências. Vidas que chegam, vidas que partem enchendo de vida o lugar.

- Fez boa viagem?
- Olha, não esqueça de comprar meu vestido!
- Escreva logo!
- Dois bilhetes, por favor.
- Ora, mas por que não trouxe as crianças...?
- Lembranças pra tia e pro vô!
- Olha a água geladinha...!
- Adeus!
- Ajuda a carregar que tá pesado!
- Vê se volta logo, senão morro de saudades!

     Estava de volta a cidade de sempre. A vida de sempre do povo do lugar.
     E chegam as datas festivas e aquela pequena cidade se agiganta. No coreto da praça principal as bandas de música se revezam animando adultos e crianças. Jovens casais passeiam de mãos dadas, aproveitando o movimento constante para escapar dos olhares curiosos e procurar um cantinho mais escuro para assim trocarem carícias mais ousadas, tendo apenas que comprar o silêncio dos moleques que os perseguem, com uma ou duas moedas, e vê-los sair em desabalada correria a consumir guloseimas. Quitutes são vendidos à vontade. A bebida é exótica e variada, enchendo de euforia a todos que se entregam às comemorações. É a pequena cidade transbordando de vida e felicidade!
     O dono do mercadinho que tirou a sorte grande encontrando seu bilhete premiado voltou cheio de novidades e ampliou seu estabelecimento o transformando num grande mercado. Emprestou dinheiro a juros e outros também puderam abrir seus negócios e prosperar.
     A pequena cidade agora está mudada. Já não se conversa baforejando cachimbo nas praças, nem são tão alegres as comemorações das datas festivas. Os jovens casais descobriram quatro paredes para trocar suas carícias e os cantos escuros ficaram desertos, deixando os moleques sem suas moedas e guloseimas.
     Apenas a plataforma da estação continua igual.

- Adeus!
- Que saudades!
- Escreva, hein!
- Volto em breve!
- Não me esqueça!

     Vendo a plataforma se afastar devagarinho, enquanto acena um adeus pela janela, alguém olha pro céu e comenta admirado:

- Olha só as nuvens, que lindo! Parecem estar rolando...

     Todos então voltam seus olhares em direção às nuvens e parecem começar a compreender. A correria na plataforma é desordenada. O vento anuncia alto o que está por vir.
     Os céus fazem rufar seus tambores na forma de trovões. Raios reluzem como espadas brilhantes. E com toda a fúria do universo a chuva deságua sobre minha pequena cidade, disposta agora a não deixar pedra sobre pedra e retirar do mapa qualquer sombra do meu lugar.

     E hoje, na plataforma da única estação desta cidade, apenas eu espero por um trem que não trará ninguém, que talvez nem venha a chegar.
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 15/03/2020
Reeditado em 21/07/2020
Código do texto: T6888652
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