BILHETES

Tenho manias estranhas. Desde os dez anos costumava deixar bilhetes em casa para que eu mesmo lesse. Não eram todos os dias, mas pelo menos uma ou duas vezes na semana fazia isso. Pegava um bloquinho de notas e rabiscava uma coisa aqui, anotava outra coisa ali, e os papéis ficavam em locais aleatórios da casa. Qualquer lugar.

Não tinha um padrão. Escrevia, deixava lá, lia e ficava contente. É um costume que não sei como adquiri. Sei que escrevia o que vinha à cabeça. E vem muita coisa até hoje. Meus pais estranhavam as vezes. Hoje moro sozinho e posso escrever à vontade.

Um dia levantei cedo e escrevi:

"Te desejo um lindo dia".

E deixei na cama. Fui ao banheiro. Ao voltar lá estava o bilhetinho. Li e sorri.

A tarde procurei algo para comer. Depois de retirar o macarrão instantâneo do dia anterior, peguei o bloquinho, escrevi e colei junto do imã da geladeira:

"As rosas são mais lindas quando se reconhece o valor botânico".

Frases aleatórias. Eu sei. Vem à cabeça.

Antes de tomar banho, escrevi uma poesia. Estranha, por assim dizer:

"Chovendo, muito,

Curto circuito,

Amor eterno,

Fogo no interno."

Sim. Eu mudei para "No interno".

Colei na porta do banheiro. Saindo dele com a toalha, li e sorri.

Antes de dormir, escrevi:

"Hoje o nosso país necessita urgente de uma reforma política geral. Tudo tem que mudar. Tudo."

E deixei embaixo travesseiro. Minutos depois eu li. Refleti sobre o assunto. Dormi. Sonhei. Acordei de repente com uma vontade enorme de escrever. Peguei o bloquinho e arranquei a folha:

"Juntos. Pra sempre.

Vencer cada batalha é preciso.

Nada poderá deter,

Aquele que se esforça.

Tomates são bons vermelhos."

Nem eu sei porque escrevi isso, mas ao ler dei boas risadas e dormi tranqüilo.

Lembro que acordei cedo para fazer um currículo. Digitei no notebook uma coisa. Depois surgiu uma idéia. Escrevi, rasguei a folha de papel e deixei ao lado. Ao terminar o currículo, estava escrito:

"Não esqueça de enviar a carta de apresentação.

Cartas são importantes."

Eu escrevia de tudo um pouco. Não importava o que era. Avisos, poesias, frases, piadas, idéias inúteis... tudo. Certa vez escrevi que existem mais chances de se morrer comendo amendoim do que por doenças.

Haja papelzinho espalhado pela casa.

De tanto fazer isso, passei a responder meus próprios bilhetinhos.

De manhã escrevia:

"Bom dia! Hoje o dia promete!"

Depois eu mesmo lia e colava outro bilhete:

"Para todos nós. Deus nos dê um dia abençoado!"

Eu usava uma caneta de cada cor. Azul para escrever o bilhete inicial e vermelho para a resposta.

Assistindo televisão, senti a inspiração vibrar e poetizei:

"Todos nascem com um propósito.

Devemos descobrir o nosso,

Pois com certeza tem alguém que faz parte dele,

Nos esperando."

Deixei no chão. Depois de ler, escrevi:

"Há momentos onde a dor pode nos cegar,

Mas é nessa hora que aprendemos,

Que a esperança ainda faz barulho.

Quer descobrir?

Coloque a mão no coração.

Se ouvir TUM TUM, é sinal que ainda há esperança."

Noutro momento:

"Sinto saudades. Volta logo."

Resposta:

"Estou voltando".

Mais tarde.

"Sonhos são metas. Mas metas nunca podem ser como sonhos, pois um se experimenta dormindo e outro somente acordado se conquista."

Eu respondi:

"Eu hein. Kkkkkkk".

Depois.

"Lembra de limpar a geladeira. Tá um nojo. Ao invés de comer besteira, faz um miojo de carne."

Resposta:

"Mas não fui eu que sujei sozinho. Relaxa, limpo sim. Odeio miojo de carne. Não tem gosto de nada"

A noite:

"O tempo passa, igual a uva. O problema é que a uva tem um gosto definido. O tempo sempre traz gostos diferentes."

Respondi:

"Se pudesse voltar no tempo, igual aqueles filmes... seria horrível. Imagina cometer a mesma besteira duas vezes kkkkkkk."

Ainda tive vontade de escrever mais:

"Netflix com bons filmes."

Respondi:

"Na verdade eu queria você aqui pra assistir comigo."

A cada bilhete eu arrancava uma folha, jogava pela casa e lia um minuto depois.

"Ah. Mas você sabe que não posso. Pelo menos não agora."

Insisti em responder:

"Pois é. Não sei se assisto. Cabeça doendo um pouco."

Foi então que escrevi:

"Nem me fale de dor de cabeça. É melhor eu ir embora. Não gosto de você."

Resposta:

"Poxa. Como assim? A gente nasceu um pro outro. Estava dando tudo certo entre nós."

Fui alternando as canetas e escrevia freneticamente. Azul o inicial, vermelho a resposta:

Azul:

"Estava, mas não depois da cirurgia, né. Ali você me ferrou."

Vermelho:

"Como eu te ferrei? Ou era eu ou você. O médico não tinha escolha."

Azul:

"Tinha sim. Você também não sobreviveria."

Vermelho:

"Do que você tá falando? Você não morreu."

Azul:

"Nem você. Mas o corpo era meu."

Vermelho:

"Não começa com esses papos de novo. Voltei a escrever pra aliviar a tensão e as dores de cabeça e agora você vem com essa história."

Azul:

"Eu não esquecerei nunca. A culpa é sua."

Vermelho:

"Minha por quê? Eu não tive culpa de nascer assim..."

Azul:

"Seu problema foi nascer."

Vermelho:

"Mas nascemos juntos."

Parei um pouco. Minhas mãos suavam. Coração batia rápido e pesado demais. A caneta tremia em meus dedos. A outra estava no chão. Agaixei e escrevi:

Azul:

"Vou embora"

Vermelho:

"Por favor. Não vá. De novo não..."

A caneta azul parou de funcionar.

Havia um último pedaço de papel no bloquinho. A caneta vermelha ainda estava cheia. Muitos bilhetes espalhados pela casa. Comecei a chorar.

Lembrei de quando com nove anos saí do hospital. Meus pais voltaram para casa desolados. O médico lhes disse:

"Infelizmente a infecção atingiu a ambos. A cirurgia requer urgência, mas não garantimos que os dois sobreviverão".

Eles optaram pela cirurgia da separação. Somente eu sobrevivi. Meu irmão não resistiu. Mais um caso de gêmeos siameses ligados pela cabeça que infelizmente não deu certo. Eu o amava.

Sacudi a caneta azul. Sobrou um pouco de tinta. Escrevi:

"Ainda sinto que você está aqui, irmão... dentro de mim".

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 07/04/2020
Reeditado em 15/05/2020
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