SONHOS CONCRETOS E REALIDADES FICTÍCIAS NA MESMA CAMA

Despertou subitamente no meio da madrugada com a lucidez de quem parecia estar acordado há horas, uma sensação diferente lhe chamou a atenção, era algo que jamais havia experimentado antes. Com os olhos abertos na escuridão já não sabia dizer se estavam realmente abertos ou fechados, a pupila dilatada ao extremo buscava a todo custo se desvencilhar da mais absoluta treva.

Da janela só vinham ruídos obtusos, como se o vento estivesse a chamá-lo desinteressadamente para que contemplasse sua presença invisível, na estante imediatamente ao lado da cama jazia um relógio que media a distância da madrugada numa seqüência infinita: tic tac, tic tac, tic tac, tic tac.

Olhou ao redor para confirmar se tudo estava do mesmo jeito de quando o mesmo relógio marcava as vésperas do seu adormecer. De fato, mesmo sem enxergar nada tinha a certeza de que assim estava – perguntas que apenas aqueles que habitam um lugar sabem responder pelo simples fato de ali habitarem – exceto, obviamente, pelo invariável movimento dos ponteiros do relógio que sussurravam: tic tac, tic tac, tic tac, tic tac.

A sensação desconhecida que o acometia não advinha de nenhum órgão sensorial, os quais naquele instante pareciam tão inertes quanto à atmosfera silenciosa do quarto adormecido. Constatando que a realidade material de estar deitado na cama inundada de noite pouco tinha relação com a aflição de que padecia, no mais óbvio dos pensamentos, atribuiu à causa um presságio maligno, uma premonição malfadada, mas a que se relacionava? Que desventuras anunciavam?

Tentando buscar as respostas dentro de si mesmo calou por completo os pensamentos e movimentos para apurar a sensibilidade a tudo que era possível perceber, num exercício quase metafísico projetou-se para fora da própria mente para observar o corpo ao pé da cama, mas não conseguiu faze-lo se não apenas na imaginação, de onde ouvia penas o tic tac, tic tac, tic tac, tic tac.

Tentou convencer a si mesmo de que nada estava errado e que se, se concentra-se novamente no sono perdido logo voltaria a adormecer. Tentativa inútil, pois sabia que aquele excesso de consciência e de lucidez exacerbada era um alerta fisiológico acionada pelo próprio instinto animalesco que o caracterizava humano, por algum motivo tinha de ficar alerta, vigilante, cauteloso. Sua primeira reação foi a de estender a mão em direção a estante equidistantemente oposta a do relógio, onde se assentava o pequeno abajur responsável por iluminar sempre os primeiros e os derradeiros momentos de seu dia a dia, mas antes que pudesse alcançá-lo recuou, pois se aclarasse o ambiente denunciaria a sua presença ativa e poria a perder a segurança dada pela escuridão.

Sob a proteção do manto da noite decidiu então se levantar para investigar o que de errado havia para justificar sua inquietação, lentamente foi se desentranhando das cobertas e erguendo-se, minimizando ao máximo os ruídos, como um predador que se aproxima sorrateiramente da presa desatenta. Desajeitadamente buscou com a ponta dos pés as chinelas que o transportavam diuturnamente pelo quarto e além dele, mas não as encontrou e inacreditavelmente também não encontrou o chão, que obviamente deveria estar, como qualquer outro chão, imediatamente abaixo de tudo e de todos.

Sem se dar por estranho, correu o corpo em direção a extremidade da cama para apoiar-se sobre os dois pés simultaneamente no chão outrora não encontrado pelos dedos que nada entendiam de encontrar o chão ou qualquer coisa que fosse. Mas ao fazê-lo nada tocou se não o vazio absoluto, o chão estava em nenhuma parte e a cama era naquele momento suspensa no universo recheado de escuridão.

Um pânico tomou conta de sua mente. Desesperado, duvidando da própria sanidade, foi ao encontro do abajur como se dentro dele não contivesse apenas luz, mas também as respostas que devolvessem o controle daquela situação. Mas não havia abajur e tampouco a pequena estante que lhe servia de amparo, estava mergulhado num mundo diferente do seu, onde a cama era a única coisa real onde se podia depositar a confiança outrora perdida no chão e nas paredes.

Lembrou-se da janela como a última referência ao seu alcance, que poderia não estar desmaterializada, virou-se lentamente e ao olhá-la fixamente percebeu que do lado de lá nenhuma diferença tinha do de cá e nessas condições, já não sabia se estava dentro ou fora, se estava excluindo ou se era o excluído, o vento nem de leve se manifestava, ele poderia estar tanto aqui quanto acolá.

Ajoelhado enquanto segurava os túbulos que serviam de cabeceira da cama, como se fossem o único meio seguro para que não caísse no abismo invisível, balançava a mão desgovernadamente, esticando o braço ao limite, de um lado ao outro incessantemente. Nada encontrou a não ser a inexistência, nem mesmo a parede adjacente à cama, a qual fazia fronteira entre o mundo do seu quarto com o resto do mundo.

Uma taquicardia perturbava-lhe o corpo, que suava como jamais visto. Num último suspiro de lucidez pensou que talvez estivesse sonhando e nessas condições só restava ignorar tudo e restabelecer-se na posição natural dos que sonham. Novamente deitado, repetia para si mesmo num esforço mental sem precedentes: “tudo é um sonho, logo a manhã chegara trazendo consigo a normalidade”. Após alguns minutos realizando esse exercício quase religioso, a serenidade pouco a pouco aliviava o corpo e os pensamentos errantes já silenciavam, cada vez mais, até que finalmente só restou o tic tac, tic tac, tic tac, tic tac.

[RH]

Ricardo Henrique
Enviado por Ricardo Henrique em 13/10/2007
Código do texto: T692939