MUNDO ÀS AVESSAS

Ruas desertas, águas marinhas claras, pássaros nas janelas, as estrelas mais nítidas nos descampados, sons ligados bem alto alternavam-se na vizinhança criativa e inquieta a manter-se ocupada ante a repentina força contemplativa que dominava os instintos e os apetites.

Everardo era um principiante nas letras. Decidira aventurar-se no discurso autoral depois de assistir a um vídeo comentado no You Tube sobre a arte de escrever. O programa “Balanço geral” havia feito uma chamada sobre a arte da caligrafia. Aquilo impressionara o rapaz. Encafifou muito tempo sobre o assunto e decidiu que seria escritor. Afinal, estudara até concluir o ensino médio e mesmo com alguma dificuldade para ler textos de mais de uma página, tinha a convicção de que as ideias que alimentava em sua mente agitada eram promissoras para desenvolver a carreira agora almejada.

Tempos depois, pôs-se a pensar sobre o estranho fato de que precisaria, sim, de um computador para escrever e não de cadernos com letra bonita. Era estranho perceber isso. Era mais estranho ainda ver que havia se enganado, mas a decisão estava tomada e não poderia mais voltar atrás. Então: - mãos à obra! É preciso escrever, escrever a que será que se destina?

Seguia o aspirante a escritor com estas palavras de ordem para si mesmo em sua solidão. E, cantarolando, perguntava-se sobre o ato de escrever como quem reproduz uma canção, que segundo ele, teria ouvido por aí em algum momento de investigação e escuta. Sem lembrar o autor da letra e da própria letra com exatidão.

Nessa ligação quase exclusiva com o mundo através das redes sociais, as ideias e opiniões do rapaz, como as de muitos outros, tomavam ciência das orientações que eram insistentemente repetidas, informadas, esclarecidas, comentadas e desdobradas para que a população saísse à rua e voltasse ao cotidiano urbano desfrutando dos bens móveis e dos prazeres oferecidos pelos setores comerciais. A indústria do entretenimento (expressão completamente endurecida por um muro de incompreensão para Everardo) investia pesado no marketing de seus produtos culturais disponíveis. Mas o jovem iniciante na leitura e na escrita criativa, assim como outros mais experientes escritores, continuava exilado em total sintonia com a reclusão, em contínua contemplação da vida. Fora gravemente contaminado, sem ainda diagnóstico certo.

Os vizinhos da kichinet em que morava o nosso recém-escritor eram mais silenciosos que ele. E pareciam estar no mesmo intento de isolamento, apesar dos apelos intermináveis do governo local para que todos fossem para as ruas. A moça loura e gorda do final do corredor do seu andar deixara de sair pelo bairro, como conseguia ver antes da sua decisão pela discreta e única janela de seu apartamento. Já o senhor octogenário, vizinho de porta da loira, vez por outra aparecia no corredor para colocar o lixo que o zelador passava no meio de todas as manhãs para recolher. Quando encontrava com o ancião lembrava-se de sua gente lá no sertão mineiro. E isso lhe doía na memória. Franzino, o peito não tinha espaço para sentir saudade ou dor semelhante sobre a falta. Vivia sozinho. Mas divertido era mesmo o dia em que a senhora do “415” abria a porta e dava um grito depois de agitar aceleradamente a língua na boca .Só muito depois, descobriu vendo um vídeo que ela deveria fazer exercícios para soltar a língua. Ela era cantora, soprano, e roteirista de teatro. “- Taí”, isso era uma escolha que ele gostaria de poder fazer, dizia pra si mesmo diante do espelho, decidido a tirar a barba rala. Percebera que agora pertencia ao mundo dos solitários, dos reflexivos, dos escritores e dos artistas, mais por decisão do que por obra. E sabia que definitivamente ele era um cidadão de sorte, pois com o dinheiro da demissão iria manter-se ainda um tempo sem precisar ir à rua. Tinha consciência de seus delírios. Em alguns episódios mais fortes era acometido por uma febre de leitura e uma voracidade descomunal por textos e podia ler qualquer um: contos, poemas, informativos, circulares do prédio, bulas, e por aí. Nem mesmo as dificuldades de vocabulário e de ritmo na falta de fluência de dar sentido ao que lia podia acalmar a febre delirante.

A escola próxima ao prédio em que morava estava em pleno funcionamento e tinha uma fila permanente em busca de vagas por parte de pais do bairro e de outros bairros. Nem, a sineta que tocava de hora em hora das 7 às 12 horas era capaz de tirar sua vontade de ler e de escrever. Ele estava convicto de que o mais sensato a fazer seria ficar em casa enquanto outros saíam. Ele não era a “população”, portanto, ficaria em casa. Os sintomas eram claros nele a cada dia que vivia. Perdera o apetite; pouco se exercitava; o grau de visão começara a mudar; tomava apenas um banho por dia; andava da sala pra cama, dela para o banheiro e voltava para a mesa de canto, onde comia e escrevia. Durante várias noites sonhava com algum fragmento que logo anotava para depois aproveitar ou pensar sobre. A insônia era sua companheira e muitos goles de café. Pelo menos, pensava aliviado, não fumava.

E seria assim que a carreira de Everardo Maria da Rocha começaria e se desenvolveria: no silêncio, no isolamento intencional e desobedecendo as orientações oficiais locais e globais (#saiadecasa). Sem contar que tinha escutado e visto em outro vídeo do mesmo You Tube, do Suassuna, a quem ele fazia culto absoluto como seu guia espiritual e estético, que “a língua era muito importante e que deveria ser cuidada diariamente”. Eve M. da Rocha, - como passara a assinar seus poemas e reflexões no facebook -, entendera que a escovação de seus dentes era um ritual fundamental para conferir qualidade à saúde bucal. Pensava: “- um escritor não pode ser importunado pela dor de dente, o que exigiria sair para ir a um dentista. Inconcebível! Isso pode atrapalhar a concentração e pode embaralhar as ideias necessárias para escrever. Além de gerar mau hálito, o que seria imperdoável manifestar numa palestra sobre sua obra, por exemplo.”

O leitor pode estar duvidando desse autêntico escritor que lhe está sendo apresentado. Pode pensar que é vazio de princípios, é uma comédia até se achar escritor sem sequer ter escrito um livro e publicado qualquer produção, nem mesmo um diário ou bilhete, a não ser no facebook e no Instagram. Pode desconfiar que colocar tais questões na frente do próprio ato de escrever a partir de referências tão inesperadas é de uma insensatez tamanha, a ponto de obter a certeza de que nada há de sair dali. Desculpe caro leitor, cara leitora, mas o senhor e a senhora estão inteiramente enganados. Em meio a um tempo solene por que passou a cidade em que vivia Everardo, ou melhor, Eve M. da Rocha, tempo que foi reconhecido nas cidades vizinhas, estendido para o estado, seu país e outros países, enfim, no planeta, o mundo estava diferente. A vida se pronunciava de modo irreconhecível até certo ponto.

A pandemia em curso já se assenhoreava como epidemia no resto do mundo, e Eve, antenado com o novo mundo por meio dos vídeos a que assistia quase ininterruptamente, parando apenas para ler pdfs selecionados e indicados por outro guru literário, o youtuber K. Damas, sentia que fora contaminado. Saía do celular para o notebook de segunda mão que comprara – pechincha sugerida nos comentários entre os apreciadores dos vídeos que acessava no You Tube. O vírus se instalara em seu íntimo, e, ao que tudo indica, também em seus vizinhos. A pandemia tinha se instalado como epidemia. Parecia ser tarde para salvar o mundo do consumo. A leitura de Leitmotiv-1984 contaminara a maior parte das pessoas. A morte para a vida pequena e comum vinha em grande número. E os doentes terminais ficavam em casa em escrituras intermináveis...