Desligado

...

Nem era tão tarde assim. O pessoal do Vila Biloca continuava na sinuca e cachaceira. Aqui de casa se ouvia o tumulto. Vozes, música, caçapas e palavrões. Normal. Na televisão do quarto, as luzinhas dançavam para mim, ora mais fortes, ora mais fracas. O programa, esse sim, não valia nada, mas como não prestava atenção, estava tudo certo. O barulho da rua misturado com o dos vizinhos, o latido dos cachorros, as buzinas distantes, as viaturas buscando bandidos ou suspeitos, as descargas sanitárias, os passos infinitos de pessoas invisíveis, tudo estava ali, como sempre esteve desde quando mudei-me para cá, mas, caramba!, tem algo errado hoje.

Algumas horas antes de anoitecer, o velho doido do quarteirão de baixo jogou uma pedra no meu carro. Por sorte, o vidro do para-brisa aguentou o tranco, ficou uma marquinha de nada, mas o suficiente para eu desejar a morte daquele maluco. Ah!, vá à merda... não basta deixar o carro dormir no sereno, bronzear no sol e ainda vem esse idiota extravasar no pobre. Fui atrás dele. Ele correu. Pode ser velho e bitolado das ideias, mas o bicho estica que é uma beleza, é claro que minha preguiça acumulada na barriga ajudou na fuga do outro. Deixei pra lá. Também percebi que algumas pessoas me olharam torto. Era só o que faltava, devem ter torcido para a pedra quebrar alguma coisa, cambada de frouxos.

Quando anoiteceu, tomei banho, comi a quentinha fria do almoço, botei calção e deitei para não assistir nada. A barulhada de sempre começou embalar-me o sono, estava no mesmo ritmo das outras noites. De repente, as coisas silenciaram todas. Levei alguns instantes para notar, havia um zumbido nos ouvidos, daquele tipo quando o som da sala está muito alto e a energia elétrica some. Coisa de pressão nos tímpanos, pressão de mergulho... Fica a sensação na cabeça.

Inicialmente, senti-me confuso. O canal aberto mostrava uma tela branca apenas. Nenhum som. Nenhum som no quarto, nem fora do quarto. A gritaria havia sumido, os cachorros estavam calados, a clientela do Vila Biloca estava rezando ou tinha ido embora. Sem atinar com ideia melhor, ainda deitado sobre o lençol azul, pensei; "Porra, fiquei surdo", mas ao levantar depressa escutei o barulho característico do colchão gemendo sob meu peso, "Bom sinal", estalei os dedos só para ter certeza e clap, o clap estava lá, entrou voando pelos ouvidos. Para finalizar arrisquei um "alô". Quase perguntei quem era para mim mesmo de tão feliz. Eu ouvia, mas cadê o resto de tudo?

Obviamente corri para a porta da varanda do apartamento, escancarei-a com dois ou três movimentos, a danada emperrava nos trilhos de vez em quando. Uma vez ali naquela sacada por sobre a cidade, observei a escuridão mais densa que jamais presenciei em toda minha vida, nem mesmo quando me escondi do meu pai dentro de uma mala velha de couro com medo de apanhar de cinto por ter chutado a bola na vidraceira da mamãe. Aquilo não era nem um terço escuro da negritude que eu via agora. Quase estiquei a mão para tocar, mas inibi o movimento com receio de sentir uma resposta tátil.

A lâmpada do quarto às minhas costas era o único porto claro. Não havia mais rua, bar, carros, cidade, nadinha de nada. Se existia, estava debaixo daquele cobertor preto. Racional que sou, gritei na esperança de uma resposta vinda do breu:

- Ei, tem alguém aííííííí...... Vizinho, Ô vizinho.....

Depois de alguns segundos sem a menor reação de ninguém, joguei a cadeira de praia de três cores para dentro daquilo. Foi como se eu nada tivesse feito.A cadeira desapareceu diante dos meus olhos na linha escura rente ao peitoral da varanda, essa era a divisa. Não a escutei cair no chão, não ouvi nenhuma reclamação. Ela se foi no buraco. Devo confessar que comecei a ficar preocupado. "Vou lá embaixo ver o que está acontecendo", decidi comigo mesmo, claro, mas pedindo conselho para o quarto e a luzinha no teto de gesso com algumas manchas de mofo. Coloquei uma camiseta branca por coincidência não calculada, rumei para a porta do quarto. Ao abri-la, me veio a pior tremedeira dos últimos anos desde quando fui pego na casa de uma senhora casada por seu marido supostamente em viagem: Estava tudo escuro no mesmo tom da rua. Nem tive dúvidas ou me preocupei com etiqueta, bati a porta de volta com força.

- Que porra é essa?

Voltei para a varanda, cansei os olhos forçando passagem, mas sem sucesso. Lembrei do telefone celular. "Tu é burro, cara", falei. E para surpresa minha, só minha, não havia sinal. Por que haveria de ter sinal num mundo cercado pela escuridão. "Tu é muito burro, cara".

Sabe, eu nunca havia parado na questão sobre fim de mundo, apocalipse now, zumbis, vampiros, terremotos, asteroide, não sei mais o quê dessas teorias todas de aniquilação, mas agora estava arrependido. Apostei que o mala sem alça do Eduardo José estava todo satisfeito lá naquela casa dele cheio de lanternas poderosas, afinal, o cara pensava em tudo, tinha planejado qualquer calamidade, deve ter previsto isso também. Que raiva do Eduardo José. Eu só tinha no quarto um isqueiro, uma chave de fenda e dois fones de ouvidos. Por via das dúvidas, enfiei isso tudo nos bolsos da bermuda. Cara, o que vou fazer?

Estava nessa fase depressiva quando entrou um bicho voando no quarto a toda velocidade fazendo com que eu desse o pulo mais fantástico das Olimpíadas. O desgraçado estava tão rápido que se espatifou contra a parede e virou uma porção de frango à passarinho com muito molho de tomate, sem o frango. Puta que pariu !

Meu coração levou uma eternidade para se controlar, nem sabia que eu era tão covarde. Ficou lá batendo querendo sair igual um louco. Vai sair, não, frouxo, fica quieto. Agora eu estava lascado mesmo, não bastasse estar preso num quarto minúsculo, ainda tinha que lidar com bicho suicida vindo sei lá de onde. Juntei os trapos do infeliz e devolvi a oferenda para o mar abismal. "Toma que o filho é teu".

Depois de algumas horas nessa angústia, deitado, esticado e somente pensando nas meninas que conheci, no trabalho que não tinha e no pai que nunca fui, observei que o raio da sombra encorpada havia se apoderado quase inteiramente do quarto. Restavam a cama, eu em cima dela, e acima de mim, a lâmpada 60 W.

Desespero já tinha ficado dois dias para trás de mim. Coisa boa é aceitar o destino. E assim pensando, calmo como um gato angorá comendo carne envenenada enfiei a mão na parede sinistra e preta."Porra, que negócio gelado do caramba."

Puxei o braço com rapidez flashniana e aquela bagunceira fez igual nos filmes dos espelhos líquidos, sabe, quando o negócio vem em volta da mão um tempo e depois se desprega fazendo glup voltando para o espelho, parecendo movimento de mercúrio. Pois é, a treva fez glup para mim soltando meu braço.

"Ai, ai ai... que tô fudido..."

Analisei friamente minhas opções:

1. Ficar quieto esperando ser engolfado por aquilo;

2. Atirar-me para dentro daquilo com o isqueiro numa mão e a chave de fenda na outra, talvez usando os fones de ouvido.

Como não era uma decisão fácil, o tempo foi passando e com ele o manto obscuro, não sei como, engoliu a cama. Fiquei eu, sentado na escuridão, num caixote preto de todos os lados e a luz pouco acima da minha cabeça, calculei que em pouco tempo eu poderia encostar a mão nela. Aquela tranqueira preta estava me elevando.

Diante dessa complicação não me restava outra alternativa:

deitei e esperei.

A sensação não foi tão ruim. Primeiro senti minhas pernas sumindo, então a gosma escura tomou meus braços para, logo depois, vir subindo pelo quadril, barriga e engolir o pescoço. Só restava minha cabeça e a eterna luz. Não conseguia mexer braços, pernas. Talvez não estivessem mais lá. Abraço completo, embora frio.

Lembro de ter gritado o nome de minha mãe antes da escuridão passar por meu queixo e boca. Era como se eu afundasse e agora meus olhos eram os últimos vestígios de mim boiando à deriva. Interessante que a luz piscou rapidamente, "Mas que porra, só falta essa porcaria quei...".

FIm.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 30/09/2020
Reeditado em 01/10/2020
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