O Envelope

-Quem é? – disse Lucas, um pouco aborrecido por estarem a bater à porta tão cedo.

-Dr. Lucas Cassule? - disse um homem baixo, modestamente vestido, a tentar abrigar-se da chuva leve da manhã de Luanda.

-O consultório só abre às nove horas. Volte mais tarde. Ainda são 07.30 horas.

Lucas apreciava mais a luz da manhã e a solidão do que o café que tinha na mão. Interromper esse ritual melancólico provocava-lhe um desconforto que nunca conseguiu combater.

-Eu sei a que horas abre o consultório. Preciso de falar consigo.

O tom firme do homem fez Lucas virar-se.

-Espere um momento.

Como o assunto não parecia ser de razões médicas, Lucas entendeu não vestir a bata. Verificou se estava tudo em ordem na pequena sala de estar e preparou-se para abrir a porta. Nesse momento, sentiu um arrepio pelo corpo todo, como um hálito frio no pescoço e voltou-se, surpreendido, para verificar se as janelas estavam mesmo fechadas e se estava mesmo sozinho. Recompôs-se e foi na direcção da porta.

-Não me respondeu há pouco. Quem é e o que traz aqui?

-Dr. Lucas, tenho um assunto para tratar consigo. Um assunto do interesse dos dois. Posso entrar?

Lucas abriu a porta e viu um homem baixo, cabelo grisalho, uma cor lamacenta e profundas olheiras. A roupa bem alinhada, mas coçada pelo uso. Uma figura difícil de definir, mesmo para o olhar treinado de médico.

-Entre, senhor…?

-Fernando Kawendimba, um seu criado.

Lucas não teve tempo para mais cortesias, porque Fernando entrou e poisou a pasta de couro no chão da sala. Começou a explorar as fotografias na parede e os objectos nas estantes num passo lento.

Lucas olhava para ele admirado e esboçou um pequeno sorriso.

-Pronto, Sr. Kawendimba. Já entrou e já se pôs à vontade. Qual é o assunto?

-Interrompi o seu café – disse apontando para a chávena em cima da mesa.

-Qual é o assunto? – insistiu Lucas sem esconder desagrado.

-Dr. Tenho um envelope em meu poder que lhe pertence. É absolutamente necessário que o receba e que me garanta que o guardará em segurança.

Lucas fez sinal para uma cadeira e Fernando sentou-se.

-Dr. Lucas, recebi este envelope no dia 09 de Janeiro de 1944, na Quibala. Recentemente percebi que algo tinha mudado no envelope e tinha uma nota muito clara: Entregar a Lucas Cassule, médico em Luanda, no dia 09 de Janeiro de 1967. É a data de hoje.

Lucas encostou-se bem na cadeira e ficou, por momentos, a olhar profundamente para aquele homem à sua frente.

-Sr. Fernando, desculpe os meus modos. Deseja um café, chá…?

-Talvez algo mais forte, um conhaque, talvez. Não que tenha o hábito de beber tão cedo, mas estou bastante ansioso.

-Pois, não tem o hábito – disse Lucas, reparando no tremor acentuado das mãos. -Um conhaque e peço que não leve a mal não fazer companhia.

-Disse que recebeu o envelope na Quibala? Na nossa Quibala? Em 1944? Certo?

-Certo, Sr. Dr. Cassule. Passo a explicar: A Quibala foi “promovida” a cidade nesse ano de 1944 e muita gente foi convidada a ajudar a criar a máquina administrativa necessária. Eu era um advogado recém-formado e participei no processo. A Quibala era a chave da chamada Rota do Café e era muito importante comercialmente. Bem, isso já sabe e sabemos também qual está a ser o desfecho infeliz daquela zona. Seguindo: Certo dia, 09 de Janeiro de 1944, durante as inúmeras tarefas que tinha a meu cargo, encontrei na minha secretária um envelope grande, fortemente lacrado, com o meu nome escrito numa nota: Entregar a Fernando Kawendimba, advogado, Quibala, no dia 09 de Janeiro de 1944. Perguntei a todos os presentes se sabiam quem tinha trazido o envelope. Ninguém sabia. Achei estranho, mas podia ser correio administrativo. Como estava ocupado, decidi abrir o envelope depois, quando chegasse a casa à noite. Eu vivia na Gabela, onde também exercia direito e ajudava alguns clientes a tratarem das escrituras, testamentos, etc. Só quando estava a chegar à Gabela é que reparei que tinha deixado o envelope na Quibala, dentro de uma gaveta que mantenho trancada. Pensei em tratar disso no dia seguinte. Mas, Dr. Lucas, oiça bem, quando entrei no meu pequeno quarto da pensão onde estava instalado, vejo que o envelope estava em cima da minha cama.

-O envelope que se esqueceu na Quibala? Que recebeu por portador desconhecido? Que estava dentro da gaveta? Em cima da sua cama? – disse Lucas a sorrir.

-Sim. O mesmo envelope – respondeu Fernando, bebendo mais um gole de conhaque.

-Quem poderá ter levado o envelope? – inquiriu Lucas.

-Levado o envelope e colocado na minha cama, sem arrombar a porta ou fazer barulho, Dr. Lucas. Pois, ninguém poderá ter feito isso. Muito menos chegar antes de mim à pensão.

-Concordo que é estranho, mas o que pode ter a ver comigo além da nota?

-Já lá vamos, Sr. Dr. Lucas Cassule.

-Pare lá com isso do Dr. Lucas. Eu sou o Lucas e você é o Fernando, está bem?

-Está, está bem, Lucas. Posto isto, penso ser melhor contar-lhe o resto do serão.

Lucas levantou-se, serviu de conhaque para os dois.

-Eu não sou homem de me assustar, mas fiquei incomodado. Decidi ir jantar. Desci as escadas em caracol da pensão e escolhi uma mesa. Reparei que a sala estava vazia, em silêncio, sem ninguém, nem os meus colegas da Quibala. Chamei o garçon que demorou muito tempo a chegar. Ele disse-me: -Dr. Kawemdimba, em que posso ajudar a estas horas?

-Quero jantar, Gaspar. O que quer dizer “a estas horas”?

-São 23. 50 horas e fechamos a sala às 20 horas, como sabe – disse Gaspar, um pouco confuso.

-23. 50 horas? Não pode ser. Cheguei antes das 19 horas e só fui ao quarto refrescar-me.

Verifiquei as horas do meu relógio que marcava 23.50 horas. Acertei o meu relógio com o relógio do Gaspar, pedi desculpas por ter incomodado e voltei para o quarto sem jantar. Quando entrei no quarto vi que o envelope estava em cima da pequena mesa de apoio. Tinha a certeza de que o envelope estava em cima da cama.

-Neste tempo todo, não cruzou com ninguém? Não percebeu nada de diferente? Nas escadas? As janelas estavam fechadas? Ouviu algum barulho?

-Qual tempo todo, Lucas? Para mim tinha passado menos de meia hora…

Lucas serviu mais conhaque e acendeu um cigarro. Reparou que os copos estavam completamente vazios e ele ainda não tinha bebido. O fumo do cigarro era espesso e cheirava mal. Apagou o cigarro.

-Lucas, foi quando decidi abrir o envelope. Parti o lacre e tirei todo o conteúdo com muito cuidado. Encontrei várias escrituras de casas e fazendas com todos os croquis e licenças. Todas elas estavam lavradas em nome de duas pessoas.

-Bem, percebo que tudo isto aconteceu em 1944, na Quibala… E nos papéis encontrou o nome de duas pessoas? Sócios, se bem entendo. Além do mistério do envelope voador e dos relógios avariados que mais havia de estranho?

-Sim, sócios. Dois sócios. Estranho é que um se chamava Ernesto da Silva Melo e o outro António do Couto…

-Mas Couto é o nome do meu avô – gritou Lucas.

-Bisavô. O seu avô era Francisco, não António, como vem na escritura. O meu nome é Fernando da Silva Melo Kawemdimba. Os nossos bisavós eram sócios e donos de uma extensa área da Quibala, Gabela e Porto Amboim. Os reis do café desde 1917.

-Mas, Fernando, como pode ser?

-Não sei, como não sei outras coisas. Como, durante anos, todos os dias pela manhã, 7.30 horas, o envelope voltava a estar lacrado e sem sinais de ter sido aberto? Como podia alguém saber que eu ía estudar direito e você medicina? Com dezenas de anos de antecedência? Como sabiam que estaria na Quibala em 1944 e você em Luanda 1967? Como?

Lucas levantou-se bruscamente e quase gritou: -Fernando, até agora só ouvi a sua voz e não vi nada que confirme nada do que diz!

Fernando tirou da pasta um envelope castanho, lacrado, com uma nota conforme tinha dito e deixou cair em cima da mesa.

Lucas hesitou em tocar no envelope. Bebeu conhaque antes que desaparecesse também.

-Lucas, eu fui criado pela família Kawemdimbe no Huambo, devido à morte prematura dos meus pais. Tive uma vida normal e consegui formar-me em direito em Coimbra, naqueles anos difíceis em que a cor era um problema. Nunca comigo, nada. As portas sempre se abriram e só tive de fazer a minha parte: Estudar. Em 1944, com a Alemanha a perder a guerra, vivemos tempos de muito desenvolvimento. Sempre senti que as coisas encaixavam umas nas outras por desígnio divino.

Quando recebi o envelope tudo mudou. Decidi visitar as propriedades que seriam minhas por herança, nossas. Então descobri que os nossos bisavós tinham uma história rara: Durante uma das viagens às fazendas sofreram um ataque de agricultores descontentes e separaram-se no meio da fuga e o teu bisavô desapareceu na batalha ou zaragata. Nunca encontraram o corpo. O meu bisavô nunca parou de o procurar, até ao ponto de se convencer que ele tinha fugido e que era um cobarde. O ódio era tão grande que assustava os trabalhadores com os seus gritos embriagados a chamar pelo amigo, durante noites a fio. O ódio desmedido levou-o à loucura e à morte por febres no fígado. O meu avô continuou com as fazendas, mas morreu vítima de acidente de caça ainda por explicar. Tudo ficou ao abandono. A minha vida mudou e nunca mais tive um momento de sossego. Tive conhecimento da sua existência somente quando regressou médico. E aqui estou eu para devolver o que é seu: O envelope.

-Nunca abriu o envelope?

-Sim, milhares de vezes. Até ao dia em que a nota apareceu em seu nome e não no meu.

-É o mesmo envelope? Está a dizer que é o mesmo envelope que recebeu em 1944?

-Sim. 09 de Janeiro, na Quibala. Está entregue e faça dele o que quiser. Para mim chega.

-Chega? – gritou Lucas – Nem pensar! Vai abrir o envelope à minha frente ou levá-lo consigo! Não quero esse maldito envelope!

-O envelope é seu. Veja as horas. São 7.30 horas, a mesma hora que cheguei a sua casa.

Lucas olhou para o relógio e ficou pálido.

-Estou farto de tinta que não seca quando escrevo o meu nome. Farto de viver em casas que nunca fazem sombra e de coisas que mudam de lugar durante a noite, fotografias de desconhecidos, chaves que não são minhas, alergias constantes, feridas que nunca saram, sei lá o que mais – disse Fernando, dirigindo-se para a porta, serenamente, muito sereno.

Lucas tentou impedi-lo de sair, aos gritos e agarrões, mas não conseguiu.

Foi para a janela e viu Fernando, sob a chuva miudinha de Luanda.

Lucas agarrou o envelope, rasgou-o como pôde e lançou-o com violência pela janela na direcção de Fernando. Os papéis, certidões, mapas, tudo esvoaçou pela rua.

-Leva o envelope! Não o quero! Nunca o vou querer! Ouve-me bem!

Fernando não olhou para trás, desapareceu, assim como chegou, do nada.

Lucas fechou a janela, exausto e a tremer. Encheu o copo de conhaque que estava outra vez vazio e sentou-se.

Quando a respiração voltou ao normal, viu em cima da mesa um envelope fortemente lacrado com um uma nota em que se lia: Entregar a Lucas Cassule, médico em Luanda, no dia 09 de Janeiro de 1967.

Nesse momento ouviu a porta da casa a ranger e um vulto entrou na pequena sala e disse: - Dr. Lucas Cassule? Tenho um assunto para falar consigo. O assunto é de interesse dos dois. Posso entrar?

Um arrepio gelado como o hálito de um cadáver percorreu o seu corpo, seguido de um gemido sofrido que ecoou por toda a casa.

Lucas viu o vulto à sua frente e percebeu que eram muito parecidos um com o outro, mesmo muito parecidos.

O relógio marcava 07.30 horas quando a porta se fechou com estrondo, naquele pequeno consultório médico, em Luanda, no dia 09 de Janeiro de 1967.

Victor Amorim Guerra