Ruptura

O toque foi suave, quase imperceptível.

Ele não achou que poderia realmente senti-lo, ainda que estivesse olhando fixamente para os movimentos daquela criatura asquerosa. Escutava, sim, o repulsivo estalar de ossos, enquanto ela dobrava os dedos em sua direção, prestes a agarrá-lo; via os olhos leitosos dela subirem e descerem sobre seu corpo, assustadoramente famintos, enquanto ele próprio também a analisava; sentia o hálito podre penetrar seu nariz e descer por sua garganta como ácido, tão ardente que qualquer mínimo esforço para respirar parecia queimá-lo vivo. Ela era real e ele sabia disso, mas em momento algum acreditou que poderia senti-la.

Prendendo a respiração, ele olhou para os lados desesperadamente, enquanto o mundo se esfarelava. Ainda escutava as vozes que ecoavam ao longe, distantes demais para que conseguisse entendê-las, mas ele conseguia jurar que mesmo elas pareciam desaparecer em meio à confusão ao seu redor. Cada vez mais distantes, elas escorriam por entre seus dedos como água, deslizando para um canto onde ele jamais conseguiria alcançá-las. Depois disso, não havia mais nada, apenas ele e ela.

A coisa se aproximou, arrastando-se sobre o ladrilho frio. Com muito esforço, enquanto esperava por seu toque, ele manteve a expressão neutra, já que sabia que sua fome aumentava com o delicioso pavor de suas vítimas. Olhou a criatura nos olhos porque sabia que, ao desviá-los, ela assumiria o controle. Mesmo o tremor violento, que transformava seus joelhos em líquido, foi obrigado a permanecer sob controle. Ali, ele nada mais era do que o nada ao seu redor. Mas ele desconfiava, ainda que naquele momento mal parecesse vivo, que ela sentia seu medo.

Quando então lábios dela se rasgaram em um sorriso fino e afiado, ele teve certeza de que, ainda que não fosse ninguém, morreria. Ela se arrastou mais em sua direção com movimentos desesperados, o corpo contorcido como o de um verme. Ergueu a mão esquelética, as unhas sujas e afiadas prestes a perfurar sua pele. Os olhos, desejando seu sangue, o olhavam fixamente. Então, com um movimento estranhamente ameno, tocou seu rosto.

Ele piscou confuso, enquanto via o olhar faminto desaparecer. Acompanhou, de sobrancelhas ainda franzidas, a pele em decomposição da criatura se esvanecer. Aos poucos, ela desaparecia, dissolvendo-se como fumaça. Mesmo seu cheiro terrível, tão forte que o fazia lacrimejar, ia embora.

Ele deu um passo à frente, ainda sentindo os dedos dela em seu rosto. Estreitou os olhos, tentando enxergar em meio à névoa que ela tinha deixado para trás. Com a toalha que sempre deixava pendurada ao lado da bancada, limpou o vidro do espelho à sua frente. E, enquanto via seu próprio reflexo se tornar mais nítido, o mundo inteiro pareceu se firmar junto com ele.

Daniel soltou um suspiro de alívio, vendo sua própria mão cair de sua bochecha. Ouviu as vozes vindas da televisão ligada no quarto, desligou a torneira ligada à sua frente e, como se nada tivesse acontecido, limpou o resto de espuma de barbear que tinha sobre o queixo. Quando então saiu do banheiro e apagou a luz, não procurou ver se a criatura estava de volta. Naquele momento, ele sabia quem era.

ThemisMagalhães
Enviado por ThemisMagalhães em 05/03/2021
Reeditado em 31/05/2023
Código do texto: T7199235
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.