Noturno para Belém e o Pina (ao som de Liebestraum No. 3, de Franz Liszt)

Pouco antes de ser expulso da praia do Pina, no Recife, no início dos anos 2000, pela especulação imobiliária descontrolada na cidade do Recife, aconteceu-me algo inusitado.

Minha mulher vinha reclamando de que eu não fazia mais minhas caminhadas, ao que respondi que caminhava, sim, todos os dias até o bar da esquina, o que ela não achou muito engraçado. Mas só para ela parar de me importunar, resolvi fazer uma caminhada pela velha Rua Capitão Rebelinho, que tornava-se então à época em terra arrasada, todas as casinhas tradicionais sendo demolidas para a construção dos arranha-céus de luxo com vista para o mar. Morávamos ali desde o início dos anos 1970, e agora, ao entrarmos no Séc XXI, sabíamos que estávamos com os dias contados, nossa casa ainda em pé, mas rodeados de ruínas das outras que não tiveram a mesma sorte.

Após o sol esfriar em um fim de tarde, saio caminhando pelas calçadas estreitas da rua. Após andar uns bons dois quilômetros, resolvi voltar, já um pouco esbaforido para um senhor nos seus setenta anos de idade. Vinha andando até rápido, mas com todo o cuidado do mundo, já ressabiado da última queda recente, após uma topada, em que esfolei os dois joelhos e as mãos. A tal da velhice é uma merda. Mas, apesar de todo o cuidado com o chão, terminei por me distrair com o alto na caminhada, e dei uma cabeçada em um desgraçado de orelhão velho, já provavelmente inútil àquela época. Após soltar minha lista habitual de impropérios para essas ocasiões, segui meu caminho pela velha rua.

Poucos metros depois, ouvi um som de piano, vindo de uma casinha à minha direita. Era uma espécie de sobradinho velho, com a janela para a calçada, e que eu não havia notado direito quando da ida. Quase sem querer, ou querendo muito, parei na janela para ver quem tocava. Era uma salinha meio escura, com poucos móveis austeros, algumas fotografias nas paredes. Ao fundo, uma senhorinha de preto, bem franzina, de fato estava a tocar um piano de parede. Ao notar-me parado na janela, ela parou de tocar e me saudou de maneira simpática, a voz bem baixinha. Perguntou como eu estava, e disse que me conhecia de vista ali do bairro. Penso comigo: “vai ver que ela sempre me vê ali no bar, quando vai comprar o pão bem ao lado do boteco”. Ela me convidou a entrar e ouvi-la tocar, já que havia ficado viúva, depois de mais de sessenta anos vivendo juntos ali, e não tinha mais companhia. Aceitei o convite.

Ao entrar, fui envolvido por uma enorme nostalgia. Lembrei-me do tempo em que havia estudado piano durante quatro anos na infância, até o dia em que o velho piano foi vendido pela dona da pensão em que eu e minha tia — que me criou — morávamos de favor. Depois disso nunca mais cheguei perto de um piano ou qualquer instrumento musical. A senhorinha passou então a tocar umas valsinhas deliciosas, que me deixaram embevecido. Após a terceira ou quarta música, ela olhou para mim, e disse: “o senhor sabe tocar também? Por que não senta aqui e toca algo para mim?” Eu fiquei boquiaberto olhando para ela, e tentei desconversar: “Ah, muito obrigado, mas eu não sei tocar”. “Engraçado”, disse ela, “não sei por que fiquei com a impressão de que o senhor tocava!”. “Bem”, eu falei, “eu não sei tocar, mas eu estudei piano na infância. Isso foi há uns bons sessenta anos, lá em Belém do Pará! Por isso que digo que não sei tocar. Faz tanto tempo, que eu nem sei mais para onde vão as coisas nesse teclado”. Ela então prosseguiu: “mas, olhe, aí é que o senhor se engana! Muitas vezes pensamos que esquecemos de algo, mas, quando nos envolvemos de novo, acontecem coisas que pensávamos não sermos mais capazes. A mente humana é fabulosa nesse aspecto. Olhe, por favor, sente aqui e ponha as mãos sobre o teclado. Apenas deixe as mãos em cima das teclas e feche os olhos, respire, e se veja na sua infância, tente se imaginar na sua casinha lá em Belém do Pará, sua professora cantarolando as notas ao seu lado. Vamos, sente-se aqui e tente. Faço questão.”

Levantei-me relutante da cadeira onde estava, só para não ser descortês. Eu não queria tentar, mas acabei me dirigindo ao piano. Sentei-me, as mãos ficando trêmulas de repente. Pousei-as no teclado, e fiz como a senhorinha me pediu. Fechei os olhos e, subitamente, mergulhei num turbilhão do tempo, décadas de minha vida, minha história, a infância dificílima, a travessia de barco para Belém, vindo do Maranhão, tantas privações, órfão aos onze, mas depois tantas conquistas, o trabalho na aviação, os treinamentos no exterior, depois o desemprego repentino, a mudança para o Recife, os filhos, o ter que se reinventar aos quarenta, e agora quase expulso da praia onde tinha feito raizes, para um novo recomeço na velhice. A respiração pesada.

Ainda de olhos fechados, para minha total estupefação, comecei a mover as mãos no teclado, e, mesmo tropeçando nas teclas, conseguia perceber algo como um fio de melodia de “Ondas do Danúbio”, de Ivanovici, que era a minha favorita. Fiquei extasiado, sem acreditar. Ainda consegui arranhar outra querida, “Sonhos de Amor”, de Liszt. “Mas que coisa” — pensei na hora — “como pode ser possível isso? Tantos anos se passaram, tanta coisa aconteceu, tantos exílios desde minha São Bento, no Maranhão, desde minha Belém do Pará, e esse amor incondicional que tive pela música, que era quase como a única coisa perene na minha vida, e que se manteve à base de centenas de discos, de clássicos, de jazz, de blues, discos que impactaram tanto os meus filhos, especialmente o mais velho, e agora tudo de repente volta através de meus dedos? Que virada incrível neste enredo de minha vida! Por essa eu não esperava”. Já estava até pensando em como agradecer a esposa por ter pegado tanto no meu pé, para aquela caminhada.

Finalmente parei de tocar, as mãos doloridas e com os dedos duros. Fechei cuidadosamente o piano e levantei-me para agradecer à senhorinha, mas ela não estava à vista. Fiquei desconcertado. Queria que ela tivesse visto aquilo. Esperei um pouco ela voltar, mas, com a demora, chamei-a algumas vezes. Nada. Dei uma olhada pela casa, chamando-a, mas era como se ela tivesse se evaporado. Sem saber o que fazer, falei alto: “muito obrigado, mas preciso ir agora”. Silêncio total. Ainda falei: “estou indo, pode deixar que fecho a porta!”

Ao sair, e virar-me para fechar a porta, senti uma mão no meu ombro. Ao me virar para ver quem me tocava, percebi que, na verdade, eu não estava à porta da casa, mas no chão, embaixo do orelhão. O homem perguntou: “o senhor quer uma ambulância?”. Fiquei aturdido, mas agradeci, e apenas pedi que me ajudasse a se levantar. “O que houve?”, perguntei. “O senhor bateu forte no orelhão e caiu. Não sei se desmaiou”, disse ele. Agradeci ao homem, e continuei meu caminho de volta, a cabeça doendo, num misto de confusão e tristeza.

Ao andar alguns metros, deparo-me com a casa, que de fato estava lá. Quer dizer, estavam lá os escombros daquilo que havia sido a casa, o telhado arriado, o piso belíssimo de mosaicos destruído, o mato crescendo entre as brechas das ruínas. “Mas como pode tudo isso”, pensei, “não é possível”. Não pude me controlar, e chorei copiosamente, tamanha a tristeza que me invadiu. Após algum tempo, finalmente controlei-me e, enxugando as lágrimas na fralda da camisa, segui meu caminho.

Felizmente a rua estava deserta, e, quando chego em casa, não havia ninguém na sala. Entrei rapidamente, lavei o rosto em uma pia na saleta, e fechei-me em meu quarto, confuso e sem entender o que havia acontecido. Depois de algum tempo em silêncio, senti vontade de remexer minhas gavetas com as quinquilharias acumuladas por décadas, meus documentos antigos, meus crachás de meus empregos, a única fotografia desbotada de meu pai, pouco antes de morrer. A única fotografia de minha tia, comigo franzino ao lado, todo desconcertado e tristonho. Encontro outra com os três filhos, bem pequenos, no portão da casa do Pina, o muro ainda pintado de cal, meus cabelos ainda grisalhos, ainda alguma confiança no olhar, um sorriso contido. Bem ao fundo de uma gaveta, amarelado e roído por traças, um livro de partituras. Minhas mãos trêmulas começam a folheá-lo. Muito sutilmente, vindo da direção da praia, entra pela janela do quarto uma melodia delicada, suave como uma brisa no início da noite, um piano tão onipresente e atemporal que poderia tanto vir de Belém quanto da casa da senhorinha, ou seria de minha imaginação? Respiro um pouco. Esboço um sorriso. Nas páginas frágeis que folheio, as valsinhas que a senhorinha tocara para mim naquela tarde.

PS: Este continho foi escrito por meu pai, "Seu Ribamar", e editado, alterado e mexido por mim, mais ou menos seguindo a autorização dele, no manuscrito, de que "pode corrigir e editar". Ele morreu em maio de 2014. Digamos que fiz algo ao modo destes artistas, como Natalie Cole e Pedro Mariano, que gravaram com as vozes dos pais, Nat King Cole e Elis Regina, anos depois da morte deles. Uma experiência tão inusitada para mim quanto à do continho dele.