O Incompreendido

Dizem que há uma vez para tudo e um dia ele abriu os olhos. Abriu-os esforçado e a custo, surpreso pela variedade dos acasos e pela tonalidade das cores. Na sequência dessa iniciática experiência, jamais os voltou a fechar definitivamente. (Mais tarde teremos a oportunidade de confirmar esta afirmação que por agora carece de interesse).

Esta personagem não tem nome. Vamos falar vagamente dela sem nos determos em pormenores que consideramos de somenos importância.

O certo é que era a primeira e seria a única vez que arribou, à falta de melhor e mais exacta justificação, a uma realidade inquestionável: Foi parido, logo existe. Qualquer outra derivante não altera o descrito. Foi parido e berrou, barafustando o seu descontentamento pelo desagradável incómodo a que o sujeitaram. O que desconhecia era a irreversibilidade do acontecimento pelo menos, e a acreditar remotamente na credibilidade de certas suposições, nesta encarnação. Mais tarde viria a dar o benefício da dúvida a algumas destas teorias místicas, mas de nada lhe serviu a crença para o seu estatuto actual. Tinha escorregado para a natividade. Assunto arrumado. Acontecida a tragédia eram inúteis as lamentações e o melhor a fazer era pegar de face a cornuda da vida com destreza e valentia. E quantas cornadas lhe foram deixando cicatrizes profundas e costuras pavorosamente desagradáveis. Lá se foi acostumando aos dissabores, umas vezes mais para lá do que para as alegrias da existência às quais o criador tinha dado aval em seu proveito. (Há sempre uns pulhas que se aproveitam dos créditos e méritos alheios).

Aprendeu a ser céptico. Desenvolveu uma filosofia, misto de ingenuidade e de trapalhice, convencido de que os preceitos dos eruditos, regra geral, eram destinados e serviam a privilegiar as classes acomodadas. Circulou sempre na periferia das esferas do exibicionismo público, agoniado com o que observava nunca foi capaz de tapar o nariz e fechar a boca para engolir a náusea. Tinha o soldo certo de ser desprezado mas esse desdém agradava-lhe mais do que o cinismo das falsas palmadas nos costados. Podemos afirmar que estamos perante um caso perdido para a comunidade; um livre-pensador tímido e desenquadrado, quem sabe se perigoso por poder lançar os seus suspeitos dardos venenosos e com eles desgarrar outras ovelhas mais sensíveis e influenciáveis, mas como nunca se sentiu tentado a pregar no deserto o sermão que fez aos tubarões no oceanário, estes continuaram a engolir os peixinhos como ordenam as leis da sobrevivência e os poderosos acabaram por o achar doido, retirando-lhe a parca notoriedade.

Comparando estes vorazes seláquios com os da espécie humana aqueles podem-se arrepiar pois até eles são presas fáceis e acabam por bater com as barbatanas nas travessas decoradas e nos pratos dos restaurantes servidas nos requintados manjares orientais.

Muito antes de se dar conta destas obscenidades gastronómicas calcorreou um iniciático ritual cultural. Entediou-se decorando os conselhos dos mestres mais anciãos e empinou os ensinamentos duvidosos dos doutos eruditos acenando com a cabeça num amém forçado, interrogando-se interiormente sobre a exactidão daquelas dogmáticas veracidades. Reconhecia evidentemente a necessidade das ciências, mesmo se assentes em pressupostos questionáveis. Entendia que o certo e o errado eram faces da mesma moeda. O busílis centrava-se na dúvida do dobrão poder ser falso ou de carecer de existência palpável, o que o reenviava para os cépticos primórdios de aceitar ou refutar a credibilidade destes conceitos, tal como eles são apresentados.

Apressou-se a não dar importância a essas futilidades acalmando a efervescência da sua curiosidade com a explicação de que o que foi convencionado tem muita força e é, mesmo que os pés de barro estejam a esfarelar-se à vista do mais desatento com a passagem dos caudais: no fundo do paul, da terra lavada restarão os pequenos grãos que se misturarão com os cristais da areia. Demonstração cabal de que por um lado em tudo há um pouco de verdade mas minúsculo consolo para o seu desmesurado cepticismo.

E se ele era enorme! Mais vasto do que o conhecimento pode alcançar. Ensinaram-lhe que a vida era uma bênção e, que mesmo padecendo dos piores males ou deformações, a devia agradecer ao divino. Ele, saudável, que não pedira para nascer e se estava borrifando para isso, detestava a vida, não por ela em si mesma mas pela exacta razão de o terem forçado a vivê-la. Um pulsar vital subjugado aos frívolos condicionalismos da moral e do poder das convenções. O poder ou é prepotente ou contemporizamos fazendo parte dele. Desprezando essas badalhoquices pomposas todos os cuidados eram poucos para evitar ser empalado, que o digam as suas partes baixas que por uma ou outra mera desatenção pagaram com dores atrozes o preço do descuido. Vingou-se extremando as suas posições, aproveitando-se do que lhe era proposto como engodo para o domarem deixando de mãos vazias quem dele se queria aproveitar. O custo deste esoterismo foi a solidão. Cruzada iniciada no dia imediato à sua nascença e que o acompanhou pela vida fora, como a pele que lhe revestia a carne, até à cremação a tornar cinzas. O que foi fazendo não fez dele história. Essa fora borrada no preciso momento em que adquiriu forma humana e deixara de ser partícula virgem da matéria.

Uma vez perguntaram-lhe por que não se tornou activista como forma de dar vazão aos seus impulsos indomáveis. Incapaz de responder apercebeu-se estupefacto da complexidade dos seus primados pessoais: Ajuizava assente em teorias instintivas e intuitivas que fora desenvolvendo e aprimorando sem quase se dar conta disso, falíveis e questionáveis, reconhecia, rebeldes por se recusar a aceitar os lugares comuns dos manuais da obediência, afrontando as tácitas leis da cenoura como recompensa pelo suor escorrido em prol do suíno oportunismo da oligarquia pensante e dominante.

Como catarse do seu repúdio egoísta em se integrar na bem-comportada e distinta escumalha comunitária, era com desinteressado gozo que se entregava a um humanismo moderado. Professava a opinião, fundamentada em conjecturas que entendia coerentes e irrefutáveis, que todos os animais nasciam com iguais capacidades e que se uns se tornavam mais corpulentos tal não era justificação para um excelso tratamento ou privilégio em detrimento dos menos bem cevados.

Agia impulsivamente arrastado pelos eflúvios dos seus instintos cósmicos, partícula singular da divisão molecular da massa global mas a ela umbilicalmente ligado em tudo o que ela comporta de bem e de mal. (Aceitemos estes termos com benevolência, visto as noções que representam serem significandos, aliás aleatórios, tais como o pensamento, a grafia, a semiótica, etc. etc. e a lista é interminável).

Tais atitudes só lhe acarretavam dissabores. Era olhado de viés, e mesmo aqueles que perante ele lhe elogiavam a postura, compinchavam nos bastidores que não era boa rês. Contradição justa mas evidente reflexo de falsidade, de mentira e, em alguns casos, mesmo de ingratidão. Pouco lhe deram enquanto muitos receberam. Como suspeitava ter sido predestinado para a fatalidade recalcava os desabafos apesar do aperto do coração.

Padeceu para ser e obrou por merecer a vida que nunca desejara, vertendo na rebeldia cáustica os desígnios da sua insatisfação mundana. E quando a chama se estiolou nas meninas-dos-seus-olhos e o bombear do coração arrefeceu o sangue que lhe deixara de correr nas veias, ninguém estranhou que tenha morrido de olhos desmesuradamente esbugalhados.

Moisés Salgado