Feliz Dia da Criança

Era aquela época do ano. As lojas estavam sempre mais cheias que o normal, com exceção é claro da segunda metade de dezembro. Os feriados eram ótimos. Para celebrar... o quê? Talvez a celebração de um dia a mais em casa, com uma boa desculpa para não precisar trabalhar. É, até que funciona. Ou celebrar um pouco mais de dinheiro, como no caso de Cristiane. Não havia motivos para reclamar: mesmo com uma jornada extra de trabalho e uma responsabilidade dobrada necessária, a entrada de dinheiro no caixa já compensava tudo. Não que fosse materialista, mas... talvez não tivesse conhecido coisas mais importantes que o dinheiro (se é que existem).

O ser humano é um animal engraçado: têm de todos os tamanhos, cores, cheiros, sabores e formatos. E Cristiane, com sua experiência, já conseguia saber quem era quem, quase sempre sem errar. Conhecia aqueles que não passavam da porta, mas contemplavam a vitrine. Talvez por falta de coragem, falta de personalidade, ou simplesmente falta de dinheiro. Muitos dos quais vinham, carregando seus filhos no colo, ou arrastando-os ao chão, criando neles a doce ilusão de um dia poderem ter aquilo para eles. Pai, quando eu crescer eu quero ser rico pra poder comprar essa loja toda, aí eu viro o super-homem e compro uma casa assim bem grandona pra gente morar. Mas Cristiane já conhecia esse tipo de gente. Não tinham nem onde cair mortos, e ainda inventavam a idéia de um dia comprarem o mundo para os filhos. Santa paciência! Vê lá se arruma tua vida primeiro pra depois pensar em ser rico! Dizem que esperança de pobre é grande, do tamanho do Rio Amazonas. Não sei. Não entendo de geografia mesmo.

Mas havia também um outro formato de ser humano com quem Cristiane estava familiarizada. Aqueles que entravam pela porta, sem a coragem, mas com o dinheiro. Crianças, temos pouco tempo. Mãe, eu quero aquela boneca da televisão. Aceita cartão de crédito? E saíam da loja, mas voltavam em poucas semanas. A lata de lixo não gostava de solidão (e o caixa da loja também não).

Mas era aquela época do ano. Os negros, os índios e as mulheres têm o seu dia. Inventaram um dia para a criança. Não, não porque crianças fossem minoria ou porque não tivessem seus direitos reconhecidos pela população, mas por precisarem acreditar que são importantes. Um dia só em 365 não vai machucar ninguém.

As lojas começavam a ficar cheias, principalmente a de Cristiane. Fora uma herança deixada pelo pai. Parece novela de televisão, onde o avô cria um meio de vida sem recurso algum, o pai cria disso um negócio de família, e o neto forma o império. Sim, havia ali um avô, seu Juarez, como era conhecido pelos amigos. Casou-se, teve uma filha, mas a esposa deixou-o para viver... Bom, isso já é outra história. Era criança quando ainda ia na casa do carpinteiro para ver o serrote com seu rrrrãã rrrrãã rrrrãã seco pra lá e pra cá, transformando um tronco de árvore em um carrinho de rolimã. Mas como era moda ter tuberculose naquela época, ele não quis ser diferente, e assim partiu desta para uma melhor.

Havia ali um avô, uma mãe, e... Bem, era uma mulher. Não sei se dá pra chamar tudo que é mulher de mãe, dá? Cristiane foi ao médico para ler seu destino. Se fosse uma cartomante teria lido sua mão, mas este preferiu ler seu ovário. Cristiane não tinha muito interesse em Biologia, na verdade nunca teve. Ela gostava mesmo era das aulas de matemática. Se tenho vinte empregados, cada um com custo de 1000 reais ao mês, e quero uma redução de custo de 25% nos gastos com recursos humanos, quantos devo demitir? Lamento lhe informar que... Como assim? Deixe-me explicar de outra maneira. Mas isso quer dizer...? Sim! É difícil quando você tem que conversar com gente sem instrução, e explicar a mesma coisa mais de uma vez. Mas o seu destino fora lido. Como nas tragédias gregas, também era impossível fugir ao que já fora predito. Havia ali um avô, uma mulher... e um negócio de família. Nada mais.

Mãe, porque eu não posso ter aquela boneca? Compra, compra! Escolhe qualquer coisa, mas rápido. O senhor não teve seu crédito aprovado. Tô sem dinheiro. Deixa eu comprar aquele ali que aparece na televisão? Tu já tens dois desses, escolhe um de outra cor pelo menos. Dá pra parcelar em quantas vezes? Não pode entrar aqui com essa roupa. Deixa eu ficar com o branco e com o vermelho? Nada de pedir esmola nesse lugar! Já escolheu? Vocês embrulham pra presente? Não, o Papai Noel vem no Natal, que é só em dezembro. Próximo, por favor. Eu já disse que pode. Mas aí eu vou ficar sem dinheiro pra comprar comida.

Quanta correria! Era uma das poucas ocasiões em que os seres humanos se misturavam. Eram assim os dias da semana da criança. Cristiane ficava do outro lado do caixa. Não teria a oportunidade de ficar do lado que queria. Tal fora seu destino profetizado. Mesmo que não pudesse passar da porta... Sim, já havia se decidido! Mesmo que não pudesse passar da porta e da vitrine, já teria sido bom o suficiente. Mesmo que tivesse que passar noites em claro.

Cristiane ficou até tarde na loja. Era véspera de feriado, e tinha muita matemática para fazer. Já era quase meia-noite quando consegue terminar de limpar a bagunça. Que crianças mais mal-comportadas! Não sabem andar, só correm por tudo que é lado! E que é isso? Ranho? Que trabalho deve ser cuidar... de um filho. Que dor deve ser carregar um óvulo e um espermatozóide por nove meses. Que chatice deve ser ter de acordar no meio da noite e trocar fraldas, amamentar. Não, eu não conseguiria. Não é pra mim mesmo. Deus não deixaria. Ele (dizem que Ele existe) sabe que eu não tenho jeito pra isso.

Perto da meia-noite, ouve-se uma batida na entrada da loja. Não é comum ter pessoas aqui essa hora. Dá um pouco de medo. Pode ser um bêbado, querendo confusão. Cristiane decidiu ir até a porta e espiar pelas frestas da janela. É que eu vi uma luz acesa, e era o único lugar na rua onde parecia que tinha gente. Posso usar o banheiro? Tenho que trocar meu... é um tanto quanto urgente. Eu trabalho até tarde no restaurante que fica a umas quatro quadras pra baixo, e eu sempre levo meu nenê comigo. Tava indo pegar o ônibus e percebi que precisava usar o banheiro. Por favor!

O banheiro é por ali. Pode deixar que eu fico de olho. Parece mãe solteira! Daquelas que tem que trabalhar o dia todo sem o apoio de ninguém. Que criança linda! Olha só esse sorriso. E esse cheirinho. Como teria sido bom poder sentir as dores de parto, e dizer que foram esquecidas após haver dado a luz. E jorrar leite de seus peitos para alimentar o infante. Seu ela pudesse ver as transformações da natureza, como são maravilhosas! Era só o que Cristiane queria. Não! De maneira alguma! Isso não é justo! Como é que ela pode e eu não posso? É uma mulher pobre qualquer. Não irão perceber a falta dela. Mas essa criança... Que criança nunca quis ter uma loja de brinquedos? Ser dono de seu próprio mundo e governar seu império? Nunca esteve tão perto de ter um filho, com estava agora. A moça ainda estava no banheiro, haveria tempo de pensar em algo. Gente rica não precisa ter medo da polícia. E medo de punição eterna? Já nem sei mais o que pensar. Mas isso não é justo! Se eu não posso... o travesseiro! Crianças morrem diariamente pelo mundo afora. Nem deve ter nome ainda. Ignorante do jeito que é, nem deve saber que pode botar um nome na criança. Deixa, deixa eu ficar com ela, deixa! Por favor! Mas aí depois é muito tarde. Deixa, por favor! É rapidinho! Posso pegar no colo, posso? E se ela me ver? E se eu saio da loja... Ela poderia ficar com a loja. É uma troca justa, não é? Por favor! Será que isso é pedir muito? Que há de errado em ter algo de que necessito? Por favor!!! Oh, céus! Não foi este meu ovário colocado aqui por uma razão? Não foram estes meus seios feitos para amamentar? Não tenho eu também amor para dar? Para compartilhar? Não sou eu também parte da criação?

Muito obrigado. Não tem problema. Não, na verdade só estou cansada, nessa época de feriado a loja fica muito movimentada, nada está errado comigo, mas obrigado pela preocupação. Ah, mas antes de você sair, por favor... Não precisava. Feliz Dia da Criança. Ele é um anjo. Feliz Dia da Criança pra você também. Muito obrigado. Tchau.

Cristiane olhava pela janela. Via a pobre moça carregando o bebê no colo. De longe. Muito de longe. Até desaparecer.

Dudlei De Oliveira
Enviado por Dudlei De Oliveira em 17/11/2007
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