Espatifado - um conto de Natal

Sexta-feira, véspera de Natal, entre o aglomerado de sacolas, viroses, pessoas e celulares, ele caminha devagar, emite sons agudos incondizentes sobre o piso. Figura insólita, se vê calçando um par de tênis maltrapilhos com solados de borracha enlameada. Pés desgastados sobem na escadaria arquitetada com corrimão de alumínio e degraus em mármore esbranquiçado. Observa de cima para baixo uma imensa natureza sintética erguida entre dilemas de consumo e fantasia. Burburinhos de vozes desconexas se confundem com o som do piano que toca melodias fora de moda. Pendurada no galho do pinheiro majestoso, uma pequena bola lustrosa (produto importado feito em série), reflete ao longe as pupilas em dilatação e o espírito de uma época. A língua destilada é mordiscada no canto esquerdo da boca enquanto projeta o ato. Minutos antes, bebia copos de coragem e fazia rir uma moça vestida de duende.

Sem cerimônia, se despe de si e da roupa de bom velhinho. Balança o indicador para desafiar o impossível. No pensamento, como lhe ocorre regularmente todos os anos, qualquer coisa se tornou outra. Espelhos do ambiente duplicam o simplório e ressequido corpo desnudo. Quase sem forças, suspende o saco de presentes nas costas e rearranja, (tateando entre os poucos fios de cabelo), o gorro vermelho costurado de improviso. Sente na nuca um duplo arrepio: ondas frias do ar condicionado e temor pelo salto ulterior. Nervos esgarçam uma pele que esboça um riso descrente de sua condição, mas segue fielmente com o plano mirabolante.

Se apressa, pois tem poucos segundos até algum segurança tentar impedi-lo. Abre uma caixa de presente mofada, saca com as mãos tremelicando um revólver enferrujado. Aponta pra cima e efetua um único disparo, aparentemente, ninguém se importa. As pessoas tendo fé no protagonismo de suas vidas permanecem fotografando e compartilhando momentos de folga do desespero. Bonecos de neve, esquilos e pinguins feitos com vários tipos de plásticos ganham vida na imaginação de cabeças pueris. Com um olhar vidrado, cintilante, estático, morto, as personagens coadjuvantes entretêm o mundo artificial humano. O fatídico idoso ensandecido é ignorado, se torna um minúsculo ponto vermelho de ira no espetáculo natalino.

Com uma tensão furiosa e panturrilhas em prontidão, se afasta alguns passos do abismo e arrisca calcular de cabeça, (em milésimos de segundo), o trajeto do seu corpo projétil. Estufa os pulmões combalidos com o ar gélido, no ritmo de um fumante crônico corre até o parapeito e salta berrando - “Banzai!” - como fizeram os kamikazes (piloto suicida) da segunda grande guerra na batalha de Midway. Grito imperioso, gutural, estridente ao ponto de absolutamente todos os consumidores torcerem o pescoço abismados ao ver o velho suspenso no ar, nu, com os sacos pendurados. O momento glorioso, flutuante, se transforma numa queda violenta em direção ao chão encerado. Seu objetivo era alcançar o pinheiro e agarrar-se nos enfeites para amortizar a queda, se divertir ao ir despencando, óbvio, fracassou. Espatifado no chão, um misto de carne com ossos esfarelados, não mais um homem, mas antes uma poça de sangue em agonia, em seu último suspiro mira os olhos reluzentes de uma criança de colo, que aponta com o dedinho indicador para ele e balbucia sorrindo, contente, na mais pura e cruel inocência: “Papai Noel”. Perde o medo do escuro, se entrega e desfalece, contudo, tão só uma frase ecoa em sua mente colapsada - HO! HO! HO! FELIZ NATAL!

D. César - Natal/RN - 25/12/2021.

D César
Enviado por D César em 23/12/2021
Reeditado em 23/12/2021
Código do texto: T7413447
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