Senhor Gato

A familiaridade de tudo machucava um pouco, estava cansado de andar e nunca ver algo realmente novo. Mesmo que nunca tenha realmente pisado naquela cidade, os bares pareciam iguais, os restaurantes, as lojas, os edifícios, nada mudava de verdade. A única mudança era não estar sozinho. Pela primeira vez em anos ele tinha uma companhia.

- Ei, vem aqui parceiro. – disse o homem – Não. Tem algo errado em chamar um gato de parceiro? Vem cá... bichano? Amigo? Tom?

A desconfiança brincava no corpo do animal, arrepiando os pelos atrás das orelhas e lançando a cauda felpuda de um lado a outro, limpando o asfalto coberto de poeira. Os olhos brilhantes refletiam a luz da lanterna e o focinho úmido buscava cheiros reconhecíveis.

A pelagem brilhava na cor de terra seca, um tom vermelho acinzentado com manchas marrom escuras nas costas e falhas em branco nas patas posteriores. Era um animal estranho, curioso e quase selvagem.

O homem se aproximou devagar, deixando a lanterna no chão ao se abaixar para acariciar o animal.

- O que acha que está fazendo com essa mão? – perguntou o gato.

- Errr... carinho? – murmurou confusamente o homem.

- Não quero isso. Mas se tiver comida, talvez possa mudar de ideia.

Com um movimento rápido e distraído, tirou das costas a mochila surrada. No interior um agasalho meio rasgado e uma camisa manchada serviam de cama improvisada para uma pistola sem balas e um cantil quase vazio. Uma faca sem fio e meio enferrujada estava presa a alça, um botton de carinha feliz precariamente fixado no bolso menor e uma escopeta sem munição preso na lateral, mas nenhuma comida.

- Não tenho, sinto muito. – falou ele colocando as coisas de volta ao lugar – Sabe onde eu posso conseguir?

- Tem uma máquina de comida a algumas quadras daqui. Nunca consegui tirar nada dela... sabe como é... – Murmurou o gato enquanto intercalava palavras e lambidas na pata direita - me faltam polegares.

- E moedas imagino.

- Isso, e moedas.

- Está sozinho nessa cidade?

- Tem alguns ratos e pombos por aí, mas nenhuma companhia que preste. – Lamentou o gato.

O animal começou a desfilar distraído pela calçada vazia, servindo como guia para o estranho. As luzes dos postes estavam todas quebradas, eram apenas pilares sem vida sustentando a noite sem lua.

Lixo se acumulava sobre a calçada e asfalto rachado, dividindo o espaço com eventuais dentes de leão que ousavam crescer entre os vãos. Pedaços de paredes e muros jaziam caídos, derrubados pelo tempo ou por carros em fuga quando tudo começou. Os edifícios ainda se mantinham de pé, como pináculos intocados cercando um jardim tornado selvagem pela falta de cuidado.

Supermercados foram ignorados, esvaziados e destruídos pela população em crise. Se restasse alguma coisa, estaria escondida em meio a escombros, era trabalho demais por uma recompensa pobre. Se o gato garantia a existência de uma máquina de venda ainda abastecida, era ali que o homem depositava sua esperança e sua fome.

- Tá aqui a quanto tempo, senhor... como eu te chamo? – indagou o homem.

- Só gato está ótimo.

- Ok. Tá aqui a quanto tempo, senhor gato?

- Esqueça a formalidade, não precisamos dela agora que o mundo foi para o caralho. – Resmungou o animal – Eu nasci aqui, não muito diferente daquele rato naquela lixeira ali atrás. E a propósito, vou marcá-lo como a refeição de amanhã.

- Seus pais são daqui?

- Não sei responder essa pergunta. Não conheci eles direito, sou um gato de rua.

- Ah, sinto muito.

- Não sinta. – Repreendeu o gato – E você, de onde vem? Nunca te vi na cidade.

- Vim do sul, muito ao sul. Longe demais para que conheça.

- Questionando meu conhecimento geográfico? – questionou o animal, com uma nota de ofensa na voz grave.

- Não foi minha intenção, peço desculpas. Nasci em uma cidadezinha quase inexistente. O apocalipse demorou para chegar lá.

- Entendo. É por aqui, me siga.

Contornando um ônibus incendiado e uma fileira de carros tombados, viraram uma esquina em frente a uma biblioteca vandalizada. Paredes pichadas marcavam o caminho, demarcações obscenas feitas às pressas antes que o mundo caísse sobre a cabeça do artista. A vários metros, quase longe demais para que a lanterna revelasse, um posto de combustível se erguia nas sombras.

- Qual o seu nome, a propósito? – perguntou o gato, curioso.

- Evan. Mas pode me chamar de humano, acho que não tem mais ninguém para clamar esse título.

- Acho que não. – Concordou o animal com um aceno de cabeça. - O que procura tão ao norte, humano?

- Não sei ainda, mas quando encontrar eu mando uma carta.

- Mande por um pombo, adoro ler enquanto como.

Os passos pesados ecoavam pela cidade vazia, cobrindo o breu com um som distante e ritmado. Era um tipo estranho de música que nem os animais noturnos se atreviam a atrapalhar.

- Vai para onde depois? – Perguntou o animal.

- Mais para o Norte... provavelmente.

- O que tem lá?

- Nem ideia...

No posto de gasolina a loja de conveniência estava em ruínas, as bancadas haviam sido derrubadas e o caixa quebrado em dois. Quase tudo havia sido pilhado ou soterrado por parte do telhado que havia desabado. Cacos de vidro espalhados pelo chão refletiam a luz da lanterna e espalhavam estrelas no que sobrara do teto.

Em um canto afastado, uma única máquina de comida jazia inteira. O metal estava enferrujado onde a tinta descascara, o vidro trincado e os botões arrancados, mas nada havia sido tirado dela. Sob a luz da lanterna, uma aura quase divina se apossava da imagem. Finalmente havia comida que ele não tivesse que caçar antes de comer.

- Aqui está a maldita. Tem moedas? – o animal questionou.

- Não. – Disse o homem enquanto agarrava um pedaço de madeira.

- Vai agredir a pobre máquina?

- Tem alternativa?

- Nenhuma.

- Um passo atrás, senhor gato.

Com um golpe forte, o vidro da máquina trincou. No golpe seguinte, cacos voaram para todo lado.

- Espero que lembre do meu pagamento. – Cobrou o gato enquanto desviava dos cacos de vidro espalhados pelo chão, e escalava o braço do humano para chegar a uma prateleira vazia. Depois de receber um pacote se salgadinho aberto, se enfiou dentro dele e destroçou seu conteúdo.

Depois de esvaziar dois pacotes, o humano enfiou todo o resto na mochila e a fechou. O gato o encarava ao mesmo tempo em que tirava das patas o que havia sobrado da comida. O pó amarelo ainda cobria seu focinho e pelo.

- Obrigado. – Disse o gato.

- Eu que agrad... – resmungou o homem, confuso. – Você falou?

- Miau. – Retrucou o gato, que roubava da mão do humano um último pedaço de chocolate e corria em direção a saída.