A Dona Morte chegou! Tranquem-se nas suas casas! A Dona Morte chegou!

Estava, naquele dia de céu azul-anil, uma ou outra nuvem a viajar, pachorrentamente, pela abóbada celeste, caminhando, a manquitolar, com a despreocupação de uma entidade imortal, a Dona Morte, andrajos pretos, felpudos, e tétricos, a cobrir-lhe a pele apergaminhada, ocultando de todos os seres vivos sua figura agourenta. Pontilhava o asfalto com a extremidade inferior de um bastão comprido, tão preto quanto as vestes que a cobriam e em cuja outra extremidade havia uma foice afiadíssima, quando, à sua direita, chegou-se um carro, desacelerando, e cujo motorista, um varapau barbudo de grossas pestanas, perguntou-lhe: "Ô, Dona Morte, o que a senhora faz por estas bandas?", e ela, voz pausada, ciciante, sibilina, sem se dignar a virar-lhe a cabeça, e sem interromper os passos, respondeu-lhe: "Estou dirigindo-me à cidade Tal." E o motorista pisou, incontinenti, no acelerador, a ponto de afundá-lo no chão do carro. Estava próxima a cidade Tal. Dela distava Dona Morte um quilômetro. Ia tão lentamente a lúgubre senhora, que precisou ela de seis horas e quarenta e oito minutos para entrar-lhe nos domínios; e dela retirou-se três horas depois, a caminhar, claudicante, a pontilhar o asfalto com o bastão, a foice, rubra, a gotejar sangue, e rumou à sua casa, onde chegou à meia-noite.

Na manhã seguinte, ligou Dona Morte o telefone celular, acessou uma página de notícias, e leu o título, que vinha em letras garrafais, da reportagem principal: "Dona Morte matou vinte e dois mil e seiscentos e quarenta e sete moradores da cidade Tal.", seguido do subtítulo, em letras menores: "A pequena cidade Tal, de setenta e cinco mil habitantes, vive uma tragédia sem precedentes. O povo chora a morte de seus entes queridos." E de imediato Dona Morte arregala os olhos, abismada, indignada: "Mentirosos! Eu não matei tanta gente assim, não. Ao chegar à cidade Tal o chão dela já estava juncado de cadáveres. Matei quatro pessoas, apenas quatro. Assumo a responsabilidade por tais mortes. Que as debitem na minha conta. Quanto às outras vinte e duas mil e seiscentas e quarenta e três, debitem-las na do Senhor Medo."

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 27/01/2022
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