Horizonte de Eventos – O Segundo Nível da Realidade

Em março de 1980 morria mais um de meus pacientes no hospício de San Servolo, em Veneza. Tratava-se de um esquizofrênico, com pouco mais de quarenta anos, chamado Enzo Borelli. Foi conduzido ao hospício três dias antes de sua morte num peculiar estado de insanidade. Afirmava eloquentemente (nos breves momentos de bonança) que a realidade não se constituía apenas do nível em que a vivemos, e implorava para que o tirássemos do segundo nível. Apenas com aplicações de sedativos pudemos acalmar seus nervos, mas quando o efeito terminava, Enzo era novamente atacado por lapsos de inquietante insanidade. Seu tratamento era um verdadeiro desafio até que, por fim, o encontramos morto. Ele perfurou seu próprio estômago com uma lâmina que roubou da cozinha.

Acompanhei os instantes finais de sua vida. Muito me surpreendeu ver a previsível dor daquele corte substituída por um prazer advindo do alívio de algo pior. Enquanto sangrava, demonstrava uma frenética alegria por ter se livrado do estado em que se encontrava e jurava, nesse momento final de sanidade, que ele não era louco, como os demais ali.

Analisando seus pertences, um dia depois de sua morte, descobri uma curiosa caderneta de anotações e passei a lê-la com acuidade desde então. Nela encontrei uma descrição pormenorizada de alguns dos eventos que Enzo vivenciou e que foram responsáveis pelo grave estado no qual havia entrado. Ao que tudo indica, ele conseguia livrar-se momentaneamente daquela situação bizarra e usava esse tempo para anotar o que presenciava. O que segue são os excertos mais relevantes da anotação.

***

Ainda temo vivenciar tudo aquilo novamente. A sensação de que qualquer ação possa desencadear aquela anomalia, apunhala-me a todo instante, limitando meus movimentos. Nunca acreditarão no que escreverei, nunca levarão a sério minha experiência demoníaca graças ao que convém chamar de loucura. Sim, tomarão meu caso como loucura, pois essa resposta será mais simples e alcançável do que a consideração minuciosa e realista do que vivenciei.

Devo aproveitar cada minuto de liberdade para anotar o que posso desse fenômeno. Deixarei um registro do que realmente aconteceu, para que possam ler um trecho da realidade que vive sobre nós, ainda que sejamos incapazes de notá-la.

Impossível dizer quanto tempo tenho antes de ser arrastado novamente. Maldição! Quem dera voltar no tempo e impedir-me de ir ao zoológico naquele dia. Sim, foi no dia 12 de agosto que fui ao zoológico. Meu intento era apenas apreciar a natureza, mas eu estava prestes a alterá-la!

Naquele momento crucial eu observava a jaula dos macacos enquanto comia uma banana. Diante de mim, a mais ou menos dez metros, jazia um recipiente circular emborrachado onde a comida dos animais era depositada. Ao restar apenas a casca da fruta, atirei-a na direção do recipiente. Presumivelmente duas possibilidades estavam em jogo: acertar dentro ou fora dele. O incrível, porém, era que uma terceira possibilidade estava prestes a acontecer. Eu mal podia deduzir se acertaria dentro ou fora do recipiente, enquanto a casca viajava em sua direção, quando, inesperadamente, o pássaro azul que surgiu em cena esbarrou na casca e alterou seu percurso. Maldita ave azulada! Que desgraça ela causou? A casca mudou seu curso no ar e então desapareceu diante de meus olhos. O pássaro caiu há dois metros de distância do recipiente arredondado e permaneceu imóvel por algum tempo. Então começou a mover-se de forma mecânica e indescritível até dissolver-se no solo, deixando apenas uma mancha azulada na terra.

Diante da cena, estagnei por alguns segundos, tentando inutilmente entender o que tinha presenciado. Ao livrar-me do estupor, não pensei em outra coisa além de sair dali o quanto antes, mas eu não imaginava o que se deslumbrava atrás de mim nesse momento! O cenário era agora duma forma que humano algum deveria ter presenciado. Ao virar-me, notei que não havia mais ninguém ali, ao menos ninguém da raça humana! O que vi, porém, não serei capaz de dizer. Tentarei descrever, mas não creio que terei a explicação certa para isso.

Minhas pernas amoleceram e caí no chão quando contemplei aquela brusca mudança de cenário. A realidade parecia ser vista agora através de um negativo fotográfico. Fosse o que fosse eu deveria sair dali, e tal pensamento me impulsionou. Levantei, por fim, e pus-me a andar pelo caminho totalmente novo, pois em nada se parecia com o que estava ali antes. Eu não estava no zoológico ou o zoológico havia mudado drasticamente.

Um ar quente predominava naquela imensidão cinzenta que se estendia para todos os lados. O solo não era completamente rígido, o que me dava a impressão de caminhar sobre um piso emborrachado. Não fazia ideia de qual caminho deveria trilhar para sair daquele lugar terrível, mas sabia que não poderia parar de andar enquanto tentava convencer a mim mesmo de que tudo não passava de sonho e que não tardaria para acordar.

A crença de que tudo era sonho me animara, de certa forma, e creio que foi o elemento decisivo para que eu não perdesse o ânimo e caísse inconsciente diante daquilo que vi e que veria.

Tomei uma determinada direção naquela imensidão acinzentada que parecia seguir em linha mais ou menos reta. Em tal caminho, notei que estava ladeado por estranhas árvores destituídas de galhos, mas que possuíam folhas em toda a extensão do tronco. Eram grandes, pois deviam medir ao menos trinta metros de altura. Em certos pontos, naquele chão emborrachado, notei poças de algo que chamo de líquido, mas com certo receio. Era fato que se tratava de buracos no solo, mas o que se movia dentro deles era de uma natureza que mal consigo explicar. Pareciam vapores movendo-se como líquidos e, por vezes, girando ao redor de seu centro como redemoinhos. Embora evitasse tais poças ou buracos, sentia, ao passar perto deles, uma atração quase hipnótica, como se alguma força estranha emanada de seu centro me puxasse para lá.

A mente débil tentava raciocinar na causa de tudo isso. Tudo indicava que estava associado à colisão do pássaro azul com a casca de banana, mas não havia o menor sentido nisso.

O ar ficava mais quente a cada passo, e a estrada parecia aumentar quanto mais me adiantava nela. A vontade de acordar era cada vez maior, mas a sensação de realismo daquele lugar me convencia, por vezes, que eu não estava sonhando.

Foi enquanto pensava nisso que notei, pouco à minha frente, algo sair de um daqueles estranhos buracos ou vórtices. Parei diante da cena enquanto notava a criatura rastejante lançando suas patas ou pernas para o lado de fora, como apoio, e subindo de onde quer que tenha vindo.

Quando saiu por completo do buraco, parou por um instante como se percebesse minha presença, embora de alguma forma que não incluísse a visão, pois era notório que não possuía olhos.

O ser não era difícil de ser descrito, uma vez que pode ser comparado à letra V. Sim, o corpo da criatura tinha a forma de um V, exceto quando se locomovia, pois nesse momento a extremidade da perna direita descia até o solo, numa curvatura, e então a criatura possuía dois pontos de apoio, de modo que podia deslocar-se de forma grotesca. Na extremidade da perna esquerda, notei o abrir e fechar de um orifício denteado que logo deduzi ter função de boca. Dado que tudo ao redor, incluindo tal criatura, fosse visto por mim como num negativo fotográfico seria impossível dizer algo sobre a cor desse ser.

Após alguns segundos de imobilidade, a criatura passou a cambalear em minha direção, mas eu estava determinado a evitá-la a todo o custo. Comecei a correr freneticamente, tomando cuidado para não ser sugado por um daqueles numerosos vórtices, e logo me afastei do ser que era notoriamente lento. A elasticidade do solo quase me fez cair diversas vezes, mas mantive-me sempre de pé, a correr. As árvores ao redor pareciam multiplicar-se, e logo percebi que elas não se limitavam apenas às margens, mas também ao meio da estrada emborrachada.

Quanto mais eu avançava, mais quente o ar ficava e o oxigênio parecia rarefazer-se aos poucos. Nessa situação, o cansaço gerado pela corrida seria a pior coisa que poderia me ocorrer, pois exigiria respiração profunda. Consequentemente, parei e lancei um ávido olhar para trás em busca da criatura em forma de V. Aquela que eu havia visto primeiro, realmente estava longe de mim, mas o que eu não teria deduzido era que diversas outras iguais a essa haviam saído de diversos vórtices e, daquela forma cambaleante, vinham em minha direção!

Sentia que quanto mais me adiantasse na estrada, mais sofreria com o calor e a falta de ar, mas nesse ponto não poderia retornar, posto que todo o caminho que eu fizera até aqui estava dominado por esses seres infernais.

Com o suor a escorrer pela testa, prossegui pela estrada numa velocidade que me mantinha afastado das criaturas, mas que evitasse o cansaço que obtive na corrida até aqui. Durante esse ágil caminhar, caí diversas vezes, pois o piso ficava cada vez mais mole. Tudo conspirava para o meu fim, fosse como fosse, e o desespero gerado por essa situação particular também colaborava para meu sofrimento, pois me forçava a respirar profundamente e tentar, inutilmente, deduzir o que viria.

O caminho à minha frente estava quase totalmente coberto por aquelas estranhas árvores sem galhos, e isso me fez deduzir que logo seria impossível prosseguir, e minha morte seria inevitável.

Novamente a mente débil voltava a pensar na causa da desgraça. O pássaro azul colidindo com a casca de banana no ar. O desaparecimento da casca, e o derretimento da ave no solo, após movimentos estranhamente mecânicos. Nada daquilo fazia sentido. Tudo o que conseguia pensar era que a ave não deveria estar ali, ou que eu não deveria ter lançado a casca naquela direção, naquele exato e preciso momento. Mas agora era tarde e pensar no que havia causado esse fenômeno não era prioridade. Sair dele que era.

Adiantando mais um pouco, olhei para trás e notei que os seres em forma de V tornavam-se cada vez mais numerosos. O calor aumentando, a falta de oxigênio, o piso emborrachando-se – dificultando o simples caminhar – e a obstrução gerada pelas grandes árvores no meio do caminho era demais para um pobre sujeito. Finalmente dei-me por vencido e me atirei ao chão. Não havia escapatória, era meu fim e eu jamais saberia o que era tudo aquilo.

Sem delonga, as criaturas me cercaram, e suas bocas denteadas abriram simultaneamente. Então pararam. Nada se movia. Por um momento senti que eu poderia me levantar e sair dali pelo caminho que fiz até aqui sem que elas saíssem de suas posições, mas logo descartei a ideia. Permaneci como estava e esperei pelo que aconteceria sem conseguir deduzir. As criaturas apenas levantaram a perna que usavam como apoio, formando novamente a letra V, e então notei que na extremidade dessa perna também havia uma boca denteada.

Nesse instante fechei os olhos, e o som de uma multidão fez com que eu os abrisse imediatamente. Estava no zoológico, caído ao chão e rodeado por pessoas que me observavam e se perguntavam o que acontecera comigo. Respirei profundamente e levantei, surpreendendo a maioria dos observadores.

"Não se preocupem comigo", disse esboçando um sorriso.

E parti em disparada rumo à saída daquele inferno. O desespero ainda reinava. Enquanto corria, sentia-me aliviado por ter apenas sonhado, como havia deduzido, mas um pensamento fez com que eu parasse. Eu deveria voltar à jaula dos macacos e ver se encontrava uma casca de banana caída e nenhuma mancha azulada no chão. O realismo de tudo o que passei exigia isso para acalmar minha mente e tirar de vez dela a possibilidade de realidade daquele fenômeno.

Dei meia volta e logo cheguei à jaula dos macacos onde a ilusão ou sonho teve início. Um calafrio tomou conta de meu corpo quando notei que a mancha azul, gerada pela dissolução da ave, estava lá, tal como eu havia visto. Não era capaz de imaginar nada de cor azulada na jaula de um macaco que pudesse ter feito aquilo naturalmente, e agora não conseguia achar uma razão para duvidar da veracidade do fenômeno! Novo estupor toma conta de mim e sinto que perderei a consciência. A ideia, porém, de perder a consciência é assustadora demais para acontecer, pois talvez seja a situação perfeita para a continuação daquele evento maldito.

Tudo o que pensava agora era em sair daquele lugar, o quanto antes. E novamente corri enquanto aquelas pessoas, que há pouco me rodeavam, agora me encaravam como louco. Antes, porém, que eu pudesse sair do zoológico, o que eu temia novamente aconteceu: diante de meus olhos o cenário mudou completamente! Novamente me vi naquela estrada do demônio, mas agora não estava cercado pelas criaturas em forma de V. Caí de joelhos, amaldiçoando meu destino, e chorei como uma criança desesperada.

Mas não poderia permanecer assim para sempre e, decidido, levantei e continuei minha jornada. Ao menos a estrada estava desobstruída o bastante para que eu pudesse prosseguir agora.

Meu temor ao passar perto dos buracos ou vórtices era demasiado, pois me lembravam das criaturas que, por pouco, não me atacaram antes. Acelerei o passo, olhando em todas as direções, pois daquele lugar maldito esperava qualquer coisa.

O ar ainda rarefeito e quente me fazia pensar duas vezes antes de prosseguir, mas o caminho de volta era o início de tudo; não poderia voltar. Teria que encarar a falta de ar e o calor excessivo para descobrir o que havia adiante.

Novamente as estranhas árvores começaram a surgir no meio da estrada, e isso me fez lançar diversos olhares para trás, na busca por alguma daquelas criaturas perseguidoras. Mas nada encontrei, e prossegui, desviando das árvores estranhas e dos vórtices mais estranhos que elas. Pouco à frente notei que seria impossível prosseguir, pois o ar estava tão quente quanto rarefeito, era demasiado penoso respirar. Então parei, mas minha vontade de voltar pelo caminho era maior do que a de prosseguir. Seria menos sofrível voltar ao início dessa desgraça do que prosseguir em tais condições inumanas.

Antes, porém, que eu tomasse uma decisão, avistei logo à minha frente duas sombras que caminhavam lado a lado. Vinham em minha direção, e por um momento achei que se me matassem estariam fazendo-me um favor, pois seria a maneira mais certa e eficaz de abandonar esse lugar para sempre. Mesmo que eu saísse dele, pensava, não viveria em paz por saber que poderia voltar a qualquer instante. Foi com essa ideia em mente que me deixei cair de joelhos e aguardei a chegada das sombras.

Quando se aproximaram o suficiente, notei que se tratavam de seres mais bizarros e curiosos que os anteriores. A descrição desses é um pouco mais complexa, mas tentarei assim mesmo.

Um corpo, mais ou menos cônico, de dois metros de altura, caminhava suspenso por compridos filamentos que brotavam da extremidade superior e curvavam-se ao redor do corpo até o chão (a extremidade inferior do corpo era a mais afilada). Tais filamentos eram segmentados como as tênias e cheios de poros que emanavam um gás miasmático o tempo todo.

Três polegadas abaixo da extremidade superior – entre o emaranhado de filamentos – podia-se notar um par de olhos cristalinos e brilhantes que mediam três ou quatro centímetros de diâmetro. Possuíam pálpebras que se fechavam e abriam a cada movimento do ser.

Da lateral direita do corpo, quarenta centímetros acima da extremidade inferior, pendia, na horizontal, uma haste de trinta centímetros que terminava num orifício que jorrava, por vezes, uma pasta gosmenta. Não estou certo do que se tratava, talvez fosse o aparelho excretor da criatura.

Um pequeno corte diagonal, pouco abaixo dos olhos cristalinos, tinha a notória função de boca, pois essas criaturas tentavam me dizer algo movendo grotescamente esse corte.

"Czu nust un’li not sivit."

Foi tudo o que me disseram de forma pausada e com uma aparente dificuldade. Em seguida, daquela haste que parecia o aparelho excretor, surgiram tentáculos com ventosas que me rodearam e me ergueram do solo com uma facilidade incrível. Carregaram-me, em seguida, na direção que eu relutara a prosseguir devido às condições hostis à vida humana.

Meu sofrimento era demasiado e eu rezava para morrer logo de qualquer forma. Atingi um dos seres com meu braço direito na tentativa de ofendê-lo, mas ele sequer reagiu a isso.

O calor e a rarefação do ar colocaram-me num estado de total desespero, e então comecei a chacoalhar-me numa tentativa de escapar das ventosas daqueles tentáculos. Tudo em vão, a força das ventosas era demasiada para meu estado de atual debilidade. Sequer um desmaio ocorreu para aliviar um pouco do meu sofrimento, sequer isso.

Nesse ponto lancei um olhar à frente e notei, ao longe, formas que jamais poderei descrever. Sombras de seres colossais rastejando, voando e deambulando grotescamente sobre uma terra enigmática e acinzentada. Meu temor era chegar lá ainda vivo, mas isso não aconteceu.

O cenário se desfez num instante, e eu vi que estava sendo carregado por dois homens vestidos de branco. Não tinha forças para lutar e meu destino era o sanatório. Tratariam como louco aquele que foi capaz de alterar o curso da natureza – num evento que não deveria ter ocorrido – e abrir uma fenda para o segundo nível da realidade!

Talvez eles me ajudem a sair desse lugar, pois estou certo que novamente o cenário mudará. Se, contudo, tais doutores não forem capazes de me ajudar, farei isso da forma mais eficaz e definitiva que puder.

(2014)

Alexandre Grasselli
Enviado por Alexandre Grasselli em 16/05/2022
Reeditado em 16/05/2022
Código do texto: T7517289
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