Mudança de ares

Como a conversa terminou tarde, Sybell convidou-me a passar a noite em sua torre.

- Tenho um quarto de hóspedes com uma vista excelente...

Para qualquer lugar no qual a torre estivesse localizada, completei mentalmente.

- Está bem - assenti. - A essa hora, a corrida de volta iria sair bem cara.

Sem contar que, por precaução, motoristas de aplicativo evitam aceitar chamadas de lugares com posicionamento dinâmico no meio da noite. Afinal, nunca se sabe o que poderá estar esperando por eles no ponto de embarque...

- Vou te emprestar um dos meus roupões, e uma camisola; acho que vestimos o mesmo número - afirmou confiante.

Sim, a avaliação de Sybell estava correta, constatei pouco depois. Instalei-me no suntuoso quarto de hóspedes após confirmar a que horas ela iria levantar pela manhã, e programei o celular para despertar às 7 h - uma hora antes. E quando acordei, com a luz do dia filtrada pelas cortinas da janela, percebi que ainda faltava meia hora para o alarme soar.

- Não me pega desprevenida - disse para o aparelho, enquanto me levantava e colocava o roupão sobre a camisola; a manhã estava fria, embora eu houvesse dormido profunda e confortavelmente em lençóis com o monograma E.C. - Eastyn Cryppys - aplicado. Sybell provavelmente ainda não tivera tempo de mandar confeccionar outros com suas iniciais...

Ao afastar as cortinas rendadas da janela, apercebi-me com certa apreensão que a torre já não estava mais à beira-mar. Abaixo de mim, havia agora uma savana com o mato alto pontilhado aqui e ali por árvores isoladas; à distância, uma cadeia azulada de montanhas, picos brancos de neve.

- Parada prevista ou saímos do curso? - Perguntei-me.

Um movimento lá embaixo chamou minha atenção: Peter Key, vestindo apenas sua indefetível calça de couro, estava saindo pela porta principal. Ele seguiu em direção ao que pareciam ser ruínas de um templo ou palácio, cerca de 400 m distante, e não pude deixar de perceber, antes que desaparecesse por trás de um renque de árvores, que levava uma espada longa à cinta.

- Entreveros logo cedo? - Perguntei-me. Aquele matagal parecia ser o esconderijo perfeito para todo tipo de predador de grande e pequeno porte, e eu não me arriscaria a andar por ali tendo por proteção apenas uma espada - supondo que eu soubesse manejar uma.

Uma suposição mais lógica seria a de que o musculoso já houvesse estado ali outras vezes em sua curta vida, o que explicaria sua aparente despreocupação com os bichos ocultos no mato alto. Ou talvez sua senhora o houvesse dotado de alguma proteção básica contra esse tipo de ameaça. Já a espada, parecia anteciver outro tipo de confusão, aquele criado por bípedes racionais mal-intencionados.

Com isso na cabeça, fui tomar uma ducha antes de me apresentar diante de Sybell, que pareceu estar genuinamente feliz em me ter como companhia para o café da manhã.

- E como passou a noite? - Indagou.

- Esplendidamente - admiti. - Mesmo se houvesse uma ervilha debaixo de vinte colchões, eu não teria sentido a diferença...

Não creio que Sybell houvesse captado a referência, mas ela tomou isso como um elogio.

- Crina de cavalo! - Exclamou ela, deliciada. - É extremamente caro, mas faz toda a diferença, não é?

De fato, de fato.

- Mas você deve ter passado uma noite bem mais... como vou dizer... animada - ponderei, olhando ao redor. - Onde está o Peter Key?

- Oh, sua tolinha... - Sybell pôs a mão na frente da boca, como que para abafar uma indiscrição. Recobrou a postura, e tentando manter-se séria, declarou:

- Ele foi resolver um assunto meu. Deve voltar antes do almoço.

- Bom, não vou poder me despedir dele - assegurei. - Mas aceito tomar café com você antes de chamar um Leafty...

Sybell me encarou com uma expressão aturdida.

- Oh, Portia... eu devia ter te avisado. A torre mudou de sítio durante a noite; não estamos mais à beira-mar!

- Sim, isso eu havia notado. Mas qual é o problema? Mesmo com posicionamento dinâmico, o aplicativo te acha - redargui com impaciência.

- Não aqui - afirmou ela muito segura. - Aqui não.

- Onde é "aqui"? - Inquiri, mãos na cintura.

- A Savana Vana; creio que já deve ouviu falar dela - redarguiu Sybell, com a sombra de um sorriso a lhe passar pelo rosto.

Fiquei em silêncio. A Savana Vana. Parecia bem o tipo de lugar onde um sujeito chamado Cryppys gostaria de passar de vez em quando...

- [Continua]

- [19-05-2022]