Desarranjos

DESARRANJOS

CAPÍTULO - 1 -

Nordeste, aqui vamos nós...

Era exatamente 15h00min quando apontou por aquela portaria um ônibus de dimensões exageradas. A impressão que se tinha era que, pela sua altura, ele não conseguiria passar por aquele portão da guarita daquele terminal, mesmo levando em consideração as medidas exageradas com que aquele portão fora construído. "São Paulo/Salvador", já de longe, era o que se via escrito no itinerário daquele ônibus. Abaixo em seu para-brisa, do lado oposto ao motorista, em letras garrafais, via-se escrito do lado de fora com uma tinta rala e branca: "14:00 hs". Esse deve ter sido seu horário de partida da rodoviária daquela megalópole no dia anterior.

Cuidadosamente ele passou por aquela entrada parecendo que seu teto esbarraria naquela viga de aço que servia de pendural para aquele portão, e agora já bem próximo a mim, seu motorista competentemente estacionou aquele gigante no centro exato de uma daquelas garagens delimitadas e traçadas ali naquele piso, e que se separavam uma da outra naquele ponto de apoio apenas por faixas amarelas pintadas no chão. Estávamos a cerca de cinco quilômetros do centro da cidade de Governador Valadares, em Minas.

Ali era uma espécie de rodoviária especial sem os mesmos recursos que uma rodoviária de uma cidade daquele porte poderia oferecer. Funcionava como um centro de apoio especificamente daquela empresa de ônibus, a Itapemirim. O que mais se via por ali era profissional vestido com macacões com as tradicionais cores daquela empresa. Seus uniformes estavam cheio de graxas, tinham flanelas nas mãos, alguns com bonés, e com certeza, eram os mecânicos da empresa. Outros, também uniformizados, e ao contrário daqueles, estavam devidamente limpos e alinhados, e deveriam ser os motoristas e trocadores daqueles ônibus. E no mais eram cargas disso e daquilo chegando e saindo. Seria injusto não mencionar também a existência de três ou quatro magricelos vira-latas que mal os ônibus estacionavam, eles se dirigiam para debaixo deles para fazerem não sei lá bem o quê.

Daquele ônibus desceu dois profissionais; um rapaz mais novo de estatura mediana, magrelo, alvo, nevado, extremamente branco, um tanto quanto estrábico, de um cabelo penteado para traz de uma forma que nem um fio daquele feixe de cabelo esdrúxulo e engordurado sequer se aventurava por algum momento sair fora daquele estrambótico penteado. Às vezes, eu ficava pensando que era para a manutenção daquele inusitado penteado que aquele jovem dispendia todo aquele seu tempo ocioso dentro daquela aeronave, já que se pressupõe, trocador não tem lá muita serventia numa viagem tão longa como àquela em que quase que não se renovam tantos passageiros.

Por não entender nada de modismo de penteados, cheguei a pensar que aquilo que fazia aquele cabelo untado se fixar tanto ali daquele jeito seria a tradicional e hoje rigorosamente fora de uso, a velha brilhantina. Aquele cabelo brilhava, e pelos cuidados que se via com que seu dono tinha com ele, talvez fosse esse o motivo de todo aquele garbo com que ele pensava que deveria estar tendo quando caminhava em direção àquela lanchonete todo esguio e galante, e que se encontrava a alguns passos de onde eu o observava.

Confesso que de mim ele não arrancava nenhuma inveja, despeito, ou coisa parecida. Nem mesmo eu o olhava de alguma forma que pudesse parecer que eu estivesse um tanto quanto admirado ou invejado com aquilo tudo que se encontrava ali em minha frente, pelo contrário, eu estava o achando demasiadamente excêntrico por ele se sentir assim tão galante. Mas eu era obrigado reconhecer que não conseguia parar de lhe dirigir toda aquela minha atenção. Não podia negar de maneira alguma que o conjunto daquela obra; rapaz, cabelo e aquele seu caminhar diligente e esmero, fosse o centro das atenções naquela garagem, e que aquela leveza de seus passos fosse oriunda de sua imaginação por achar que ele estaria pisando sobre um tapete vermelho que ali fora lhe estendido especialmente para recebê-lo, e assim aquela sua pisada leve num tapete aveludado não atrapalharia aquele seu estrambótico penteado que chamava a atenção de todos. Aquele brioso e envaidecido rapaz, que não deveria exceder seus mais de vinte e dois anos de idade, e que parecia ser ali o trocador, sentia que era observado pelos quatro cantos daquele lugar perdido às margens daquela movimentada BR-116.

Logo após desceu, e esse só depois que todos os passageiros fizeram o mesmo, aquele segundo indivíduo. Era bem afeiçoado, porte e aparência de adulto, e que deveria ter no mínimo o dobro da idade daquele, e por lógica, deveria ser o motorista daquele agigantado coletivo. Era magro, esguio, elegante, com um Óculo Ray-Ban de cor verde com aspecto de falsificado, sobre aquele seu nariz comprido. Tinha o cabelo curto, ligeiramente penteado para o lado, e sem nenhum exagero daquela aparência do cabelo do colega que lhe desceu à frente. Tinha uma expressão serena. Ambos estavam devidamente uniformizados e cada qual com suas valises pessoais iguais, e que tinham o logotipo daquela empresa de ônibus.

Vestiam fardas impecavelmente bem engomadas, e usavam gravatas da cor verde. Esse, tinha a face devidamente barbeada, aquele, sem nenhum pelo no rosto. Via-se claramente que ali seriam seus destinos finais, e que por ora, seriam substituídos por aqueles outros dois profissionais que ali já se encontravam com aquele mesmo tipo de fardamento.

Nisso passou por mim um caminhante desses que se encontram pelas “estradas à fora” de nosso país, me pediu um cigarro, respondi-lhe que não fumava, pediu-me então que lhe pagasse um café. Orientei-lhe que fizesse o pedido àquele garçom que se mantinha disponível naquele balcão daquela lanchonete, e que olhava em nossa direção. Mesmo estando longe, e dali mesmo, fiz um sinal de positivo como que autorizando com que ele atendesse aquele mendicante. Pouco depois, como que evitando àquele pedinte, esperei-o com que saísse daquele local, e assim que ele se encaminhou até a porta daquele banheiro existente ali mesmo dentro daquela lanchonete, adentrei aquele estabelecimento para quitar aquela despesa que eu havia autorizado. Aquele garçom chegou pra mim então com uma notinha de uma dose de cachaça e uma coxa de frango. Sem questionar, peguei aquela notinha de "café", e direcionei-me para aquela caixa registradora que ali funcionava, e que fazia com que todos que se encontrassem dentro daquela lanchonete, tivessem que se escoarem naquela sua direção, já que, estrategicamente, ela se localizava na única saída daquele bar. Paguei, vi ainda aquele caminhante saindo daquele banheiro, apressei-me o passo de uma forma que, quando ali fora eu me encontrasse, eu já estivesse ligeiramente distante dele.

Aquelas seriam as minhas primeiras férias como um trabalhador profissional. Iria conhecer o Nordeste do país. Tinha acabado de fazer 21 anos, e era o ano de 1981. Trabalhava como desenhista industrial numa empresa de porte em Belo Horizonte onde fui admitido depois de ali estagiar. Tinha então, computando o estágio, dois anos trabalhados. Teria direito, depois de um acordo na empresa, a gozar 35 dias de férias, sendo que a primeira semana optara por passá-la em minha cidade natal fazendo aquilo que eu mais gostava na época que era namorar, tomar umas e outras cervejas com colegas, vadiar, ir pra cachoeiras, e jogar futebol. Depois iria encontrar com meu irmão em Aracaju, pois ele saiu de férias antes, e fez esse mesmo percurso de carro, depois de ter passado alguns dias em Salvador. Eu o encontraria naquela capital sergipana, e de lá, juntamente com mais dois amigos que o acompanhava, iríamos fazer um tour pelo Nordeste do nosso país naquele seu seminovo veículo, um Passat LS. Eu começaria toda aquela minha turnê pelo estado de Sergipe. Eles haviam iniciado por Salvador.

Com a Revista 4 Rodas que eu levava ali comigo nas mãos, e que era especializada no ramo, iríamos sair “catando” cidade por cidade, lugar por lugar por aquelas desconhecidas cidades e lugarejos onde houvessem praias. Levava comigo em Cheques de Viagem o valor equivalente a dois salários meus mensais, ou seja, teria tranquilidade financeira suficiente para aquele passeio.

Daí a pouco aquele novo motorista que iria assumir o volante daquele ônibus circulou em sua volta dando algumas marteladas em seus pneus. Depois retirou sua blusa de frio que também tinha o logotipo e nome da empresa, sentou-se em sua cadeira, fez alguns ajustes levando aquele seu banco pra frente, depois mais lentamente o puxou um pouco mais para trás, deu algumas buzinadas, o trocador constatou que a quantidade de passageiros ali presentes coincidia com o número de passagens que tinha em mãos, enfim, e estava tudo pronto para partirmos.

Aquele motorista se levantou, abriu aquela porta interna que isola os passageiros daqueles condutores se apresentando com o nome de “Moacir,” e comunicando-nos que “iríamos juntos, e se Deus quiser, até a cidade de Vitória da Conquista”. Arrancou cuidadosamente aquele gigantesco e confortável coletivo, porém um tanto quanto bagunçado de roupas, cobertores, embalagens e de pedaços de bolachas pelo chão, e naquele instante começava minha busca àquelas tão idolatradas e renomadas belezas do Nordeste Brasileiro. Precisamente às 15h42min aquele veículo arrancou de Governador Valadares que se distanciava cerca de oitenta quilômetros de minha cidade natal, Inhapim.

Pela previsão, às oito horas da manhã do dia seguinte estaríamos chegando em Salvador, e duas horas depois, dali mesmo daquela rodoviária, eu já embarcaria em outro meio de transporte daquele mesmo tipo, agora para a cidade de Aracaju. Ficou combinado que meu irmão iria me esperar naquela capital sergipana no ônibus que chegaria ali às 15h00min horas do dia seguinte, ou naquele que chegaria às 20h00min horas, ambos oriundos da capital baiana. O tempo gasto de viagem entre essas duas capitais nordestinas seria de cinco horas e o espaço percorrido de pouco menos de 300 km.

A vantagem de se embarcar na quente Valadares, isso se o destino fosse para algum lugar do Nordeste, era o fato de que todos os ônibus que partissem de São Paulo, Rio e Belo Horizonte, teriam que obrigatoriamente passar por aquele município, tanto se usassem a BR 116 como a BR 381, o que fazia com que existissem diversas opções de horários e de empresas de ônibus para se escolher.

Tudo corria tranquilo. Tinha comigo um jornal e um livro para fazer com que aquela viagem não se tornasse tão maçante. Era esperar o momento adequado, instante aquele em que não se consegue mais dormir, e muito menos ter paciência para continuar olhando pela janela aquelas paisagens de um já semiárido baiano, e então abaixar a cabeça, passar os olhos por aquele periódico, e finalizar tudo aquilo relendo Dom Casmurro, e que pelas minhas contas, agora pela quarta vez na vida. Tinha comigo que, daquela vez, olhando pelo olhar mais feminino daquela situação, a "Capitu de Machado" iria me convencer de que não era infiel.

Eis que quando aquele veículo arrancou da Rodoviária de Teófilo Otoni, já que ele só acessava rodoviárias de cidades de grande porte, haviam entrado pelo seu corredor três indivíduos, sendo que um deles, o último, carregava uma caixa de isopor de tamanho considerável sobre sua cabeça, e cheia de cervejas. Todos completamente embriagados. Os dois da frente eram de cores pardas e usavam brincos. Todos tinham estaturas medianas, sendo que aquele que carregava a caixa de isopor era um pouco maior e mais forte que os outros . Era um loiro branquelo, oxigenado, e não tinha seus dois dentes da frente. Tinham diversas tatuagens pelo corpo. Já naquela rodoviária um deles quis embarcar sem camisa, seu acesso foi negado, e durante muito tempo ele insistiu argumentando que não existia lei que o proibisse de viajar sem camisa. E lógico, toda aquela viagem se atrasando por causa daquela bobagem. Via-se claramente que a paz ali dentro daquele veículo iria ter seu fim a partir daquele momento, e não demorou muito para que minha previsão se concretizasse, e aqueles três baderneiros bêbados começassem a fazer bagunça nas últimas poltronas daquele veículo, muito das vezes entoando cânticos que provocavam tanto o motorista quanto o trocador. Versos dessas cantorias oriundas de torcidas organizadas de estádios de futebol.

Pouco depois daquele veículo se adentrar por aquela noite, ainda em terras mineiras, aqueles baderneiros que já se encontravam completamente embriagados, importunavam meio mundo. Provocavam esse e aquele passageiro, principalmente quando alguém precisava usar o sanitário. Diziam em voz alta ter como objetivo não deixar com que ninguém dormisse naquele coletivo. Quando se fazia algum silêncio, de repente, ouviam-se abruptos e assustadores urros desrespeitosos vindos daquela direção.

Já era tarde da noite e faltavam menos de vinte quilômetros para se chegar a Vitória da Conquista, e aquela algazarra se tornando cada vez mais insuportável, ensurdecedora, assim como também a falta de respeito aos passageiros e aos profissionais responsáveis por conduzir aquele veículo. Aquela linda moça de olhos e longos cabelos castanhos que parecia fazer companhia àquela senhora, que deveria ser sua mãe, e que se assentavam ali do lado direito do ônibus, logo nas primeiras poltronas, já tinha sido escolhida como alvo das chacotas daqueles cidadãos desrespeitosos. A mãe daquela tentava tomar partido, reagir àqueles momentos, mas era imediatamente impedida por aquela sua filha que tinha em seus ouvidos um fone, o que se fazia enervar ainda mais àqueles delinquentes, já que ela aparentava uma expressão como que se não ouvisse nenhum daqueles impropérios que lhes eram dirigidos.

Em um determinado momento, e inesperadamente, aquele ônibus diminuiu sua velocidade e estacionou. Parou justamente de frente a um Posto da Polícia Rodoviária Federal. Nesse momento os berros e vozerios desrespeitosos dentro daquele ônibus se fizeram mais silenciosos que um túmulo. Alguns passageiros aproveitaram a oportunidade para também descerem, e ficarem livres daqueles delituosos, mesmo que momentaneamente.

Poucos minutos depois entraram pela porta daquele coletivo três integrantes daquela polícia. Aproximaram daqueles baderneiros dando-lhes voz de prisão. Quando tentaram argumentar ou mesmo discutir, o mais velho daqueles policiais, talvez o chefe deles, disse-lhes em um tom mais enérgico para que descessem, pois estavam detidos

Os três se levantaram, e dois deles já obedeciam a aquela ordem, quando o terceiro, aquele loiro sem dentes, inesperadamente ergueu de seu assento pelo cabelo uma senhora idosa e magricela. Colocou-a de costas e deu-lhe uma gravata no pescoço, colocando-lhe com a outra mão, um punhal em seu peito. Deu alguns passos para trás arrastando aquela mulher consigo, e encostou-se no fundo do corredor entre a porta da toalete daquele ônibus, e as duas últimas poltronas à esquerda daquele carro. E sempre com o punhal no peito daquela senhora, e ela ali inerte, sem se mover. Com aquela chave de pescoço ele mantinha aquela mulher em uma posição estratégica de defesa, e na outra mão segurava aquela arma que parecia até mesmo roçar nas roupas daquela mulher de tão próximo ao seu corpo. Mantinha-a sempre virada de frente para os policiais, e ele escondido atrás do corpo daquela esquelética senhora. Houve um grande alvoroço. As mulheres gritavam, as crianças choravam e aqueles três policiais ficaram sem ação.

Foi dada ordem pelos policiais para que todos os passageiros evacuassem daquele recinto, só que, quando eu já me preparava para me ver livre daquilo tudo, aquele bandido exigiu que um daqueles passageiros permanecesse, e essa era a “condição para que ele não furasse aquela mulher”. Ele simplesmente inclinou ligeiramente o cabo daquele punhal apontando-o em minha direção, mantendo sua ponta encostada no rumo do coração daquela mulher, e sempre olhando para aqueles policiais. Disse, simplesmente revirando levemente seus olhos em minha direção;

- O cabeludo aí fica!

Tinha que ser eu? Pensei comigo naquele instante. E dali já veio a primeira ordem;

- E fica de joelhos na poltrona, e sempre olhando cá pra trás, senão eu espeto a velha!

Creio que tenha procedido daquela forma para que eu servisse de testemunha para qualquer tipo de reação mais radical daqueles policiais, ou mesmo porque ele se sentia demasiadamente acuado ficando sozinho junto com a sequestrada e aquela polícia. Pela reação facial daquele policial chefe, vi-lhe algum tipo de aprovação à exigência daquele bandido, e resolvi, mesmo contra minha vontade, aceitar participação naquela cena. Óbvio, tudo isso depois que fiz uma rápida análise daquela situação, já que não havia armas de fogo naquele imbróglio, e eu me encontrava no meio do ônibus, portanto bem atrás de todo o centro daquele furacão, inclusive bem atrás daqueles policiais, e bem próximo da porta daquele ônibus.

E tudo aquilo já perdurava por mais de duas horas. Eram aqueles policiais ali postados, e aquele delinquente com aquele punhal no peito daquela senhora que se matinha inacreditavelmente tranquila. E nenhuma proposta era aceita por aquele sequestrador. Naquela altura já se sabia até quem eram aqueles delituosos, depois de receberem informações via rádio de suas características, e deste mais precisamente, através dos outros dois que ali já se encontravam encarcerados. Inclusive ele já era até mesmo tratado pelo seu próprio nome por aqueles policiais. E nada daquele sujeito se render. Já se sabia inclusive que eram foragidos de uma determinada delegacia do interior de São Paulo. Que eram fugitivos, obviamente eu jamais saberia, mas que eram paulistas, não se tinha dúvidas, principalmente a partir daquele momento que ele exigiu a presença de um “adévogado”.

Nisso entrou um quarto policial por aquele veículo, e era um militar. Tinham nas mangas de sua camisa diversas listas de cor amarelada como se fossem acentos circunflexos um sobre o outro. No ombro de sua farda existiam também algumas estrelas, o que fiquei sabendo depois que ambos os símbolos determinavam a posição hierárquica daquele indivíduo dentro daquela corporação. Anteriormente foi acordado com aquele sequestrador que a Polícia Militar iria entrar no caso, e que aqueles Policiais Rodoviários seriam substituídos por “Policias Militares que tinham mais traquejos” em negociações daquele tipo, que foi o que aquele chefe da Polícia Rodoviária Federal justificou àquele sequestrador.

E nada de acordo. Aquele bandido nunca que cedia. E a polícia não cedia as suas exigências. Aquela senhora continuava em sua alça de mira, e aquele punhal cada vez mais próximo de lhe cravar o coração. Era aquele militar de alta patente contemporizando, e pacientemente arrastando aquela negociação com uma indescritível frieza. Do lado de fora, e em posições estratégicas, via-se claramente que aquele ônibus estava totalmente sitiado por integrantes daquelas duas corporações policiais. Mas o silêncio lá fora era intrigante. Pelos vidros das janelas do ônibus eu tinha contabilizado sete viaturas que mantinham suas sirenes e giroflex funcionando, e que reluziam em todo interior daquele ônibus como que num alerta, ou então na tentativa de causar algum efeito psicológico negativo naquele bandido. Deram ordens para que as mulheres afastassem para algum lugar ainda mais distante com suas crianças, para que seus choros não perturbassem a negociação. E eu lá ajoelhado naquela poltrona com uma vontade imensa de urinar e impedido de assim proceder.

Alguém que me conhecesse, e mais precipitado, até duvidaria que eu me mantivesse ali com toda aquela necessidade biológica, sem que por temor, que eu não fizesse tudo aquilo na calça. E obviamente, talvez não soubessem, mas eu tinha lá também meus planos e minhas estratégicas de fuga para me debandar daquele lugar. Convenhamos, se algo ocorresse ali, seria somente com aquela senhora que sofria aquela ameaça, pois aquele bandido não tinha como ultrapassar aquela barreira policial. E ele não tinha posse de nenhuma arma de fogo. Sendo assim, eu teria tempo suficiente para poder correr para fora daquele veículo. E creio, não passava pela cabeça daquele sujeito, e nem lhe era interessante, ele querer substituir aquela vítima por mim, como já se viu por aí repórter atrás de promoção, pois, por ser aquela mulher magra e leve, ela era manuseada por ele ali com certa facilidade. Além do mais, e por dinheiro nenhum, ninguém me convenceria em aceitar tal proposta. Isso se ela fosse colocada em pauta.

Entraram por aquele ônibus mais dois Policiais Militares. Eles, pelo que foi acordado com o sequestrador, substituiriam os dois Policiais Rodoviários que estavam em companhia daquele comandante da Polícia Militar, aquele graduado Militar que pacientemente agia como um negociador fazendo a mediação direta com aquele sequestrador, e continuava tentando convencer aquele sujeito a se entregar.

Na realidade ele parecia mais um psicólogo que um policial desses que nos interpelam pelas ruas. Era calmo, tranquilo, tinha educação em suas maneiras, era bem diferente nas tratativas do que o normal que se vê por aí. Tudo indicava ser, que tinha nascido para aquilo. O delinquente deu ordem para que aqueles outros Militares só adentrassem àquele veículo quando esses outros dois Rodoviários o desocupassem. E tudo que aquele sujeito dizia era aos gritos e palavrões demonstrando um arriscado descontrole emocional.

Com todos os Rodoviários do lado de fora, seus lugares agora foram ocupados pelos dois Militares que ficaram em posições diferentes daqueles Rodoviários que saíram, embora se mantivessem por ordem daquele sequestrador no mesmo lugar dos anteriores. Ficaram de pé, lado a lado, estrategicamente encostados na cabeceira das poltronas do corredor, sendo que um ficou ligeiramente mais à frente. Tinham os olhares fixos naquele malfeitor, embora demonstrassem estar tranquilos e serenos.

Tinham semblantes como se estivessem calmos, dominando a situação, ares de que em nenhum momento tinham intenção de agirem, principalmente pela distância com que aquele sujeito os fazia se posicionarem. Ali, agora, se as negociações não avançavam, pelo menos aquele bandido parou falar aos gritos. Um pouco antes, um terceiro policial adentrara àquele veículo, e sem mesmo se sentar na poltrona do motorista, buliu em algo, o que parecia ser em seu freio de mão e sua marcha. Teve sua atenção energicamente censurada pelo criminoso, embora aquele bandido tivesse sua visão propositadamente prejudicada por aqueles dois militares recentes que se postavam naquele corredor, o que ficou evidente que aquele sequestrador não ficou sabendo o que aquele policial fez quando ocupou a posição do motorista do ônibus.

Minutos depois de toda aquela cena que parecia demonstrar que tudo estava transcorrendo "dentro dos conformes", e tudo parecia tranquilo, sem chance nenhuma de se mudar aquela rotina, inesperadamente, houve um grande estrondo, como se o ônibus tivesse sido sacudido por uma brutal força, ou algo ter colidido fortemente na traseira daquele carro, e quando dei por mim, estava eu caído em seu chão entre as duas poltronas as quais me encontrava anteriormente ajoelhado. Aquele ônibus tinha sido movimentado veloz e bruscamente num espaço de não mais que um metro, e de repente, freado abruptamente.

De dentro daquele ônibus, originados por aqueles policiais, se ouviam gritos intimidatórios, e quando me levantei, aquele delinquente já se encontrava completamente dominado por uma chave de pescoço dada por um daqueles dois novos policiais que o arrastava de costas pra fora daquele carro. O outro já caminhava em direção à saída do ônibus levando consigo aquela sequestrada, e aquele comandante seguia atrás carregando em suas mãos aquela arma. Enfim, acabou-se aquele drama, findou-se todo aquele suspense.

Desci e fui urinar. Havia quase que um batalhão de policiais do lado de fora e de dentro daquele Posto da Policia Rodoviária Federal. As duas corporações se misturavam e se congratulavam. Muitos deles festejavam e gritavam. Outros se abraçavam. E eu, como não tinha nada o que fazer, ficava ali naquele meio também participando daquelas congratulações, parabenizando um ou outro. Pensava comigo que, quem sabe, uma cerveja, ou no mínimo um champanhe poderia aparecer por ali pra brindarmos aquele momento. Na realidade nem sei por quantas vezes abracei aquela sensual e interessante Policial Militar Feminina com aquela sua farda que lhe arrochava os glúteos e pernas, e que por fim ela até já me repelia. Na verdade, eu saia, dava um giro, e voltava para parabenizá-la novamente abraçando-a. Senti que ela desconfiara que eu estivesse excedendo em minhas felicitações, razão pela qual, quando ela me via, ela agora já procurava ficar mais próxima fisicamente daqueles outros policiais.

Para aquelas duas corporações eram momentos de glória. A vítima saíra ilesa daquele imbróglio sem que se disparassem um tiro sequer. Na realidade, negar que não me sentia um tanto quanto orgulhoso de ter feito parte daquele acontecimento, estaria mentindo, mesmo que eu tivesse sido apenas um mero figurante. Na realidade, com um pouco mais de boa vontade por parte de quem presenciou aquelas cenas, e eu nem estaria pedindo demais, eu poderia até sair daquele episódio com o Oscar de melhor ator coadjuvante. Até mesmo porque, há de se saber, grandes nomes do cinema tiveram em suas primeiras tramas também o papel de figurante.

Fui lá ver os danos da tal colisão na traseira daquele ônibus, o estrago, que por certo nos impediria de continuarmos seguindo viagem, e que nos atrasaria ainda mais. Havia naquele trecho da Rio/Bahia, tanto para quem seguia rumo a Governador Valadares, como para Salvador, enormes filas de automóveis, ônibus e caminhões, já que a polícia havia impedido todo o trânsito ali durante aquele imbróglio. Aquela corda, agora já arreada ao chão, deveria ter circundado todo àquele ônibus, evitando com que curiosos ultrapassassem aquele limite.

Quando consegui chegar na parte de trás daquele coletivo, depois de conseguir ultrapassar um batalhão de curiosos e alguns policiais, pude constatar que não havia em sua traseira nenhum dano material. Tinham amarrados lado a lado, em fila indiana, mas devidamente amarrados mesmos, em toda a extensão daquele para choque 5 pneus usados, que mais pareciam ser de caminhonetes. Eles cobriam todos os espaços daquele para choque. E amarrada nas costas desses pneus, tinha uma chapa de aço de aproximadamente meio centímetro de espessura, onde sua largura e comprimento compreendiam justamente as dimensões exatas de todos aqueles pneus juntos. Aqueles pneus funcionaram ali como o queijo num sanduíche, tendo a função de um amortecedor. Quando aquela pá carregadeira batesse forte naquela chapa, empurraria com força aquele ônibus pra frente, depois de um metro e pouco, ele seria freado bruscamente por aquele cabo de aço que estava amarrado nos chassis do ônibus e da máquina, causando aquele solavanco lá dentro. Foi a razão de todo aquele pandemônio.

Aquele deve ter sido um plano que aquela polícia já devia ter usado ou treinado anteriormente, sabedores que nenhum desavisado conseguiria manter-se de pé ali. Foi dentro daquele intervalo de centésimos de segundos, e lógico, que aqueles três policiais sabedores que tudo aquilo iria acontecer naquele exato momento, que eles agiram. Foi essa a razão pela qual aquele quarto policial entrou naquele ônibus pra abaixar seu freio de mão e colocar aquele ônibus em ponto morto, deixando seu motor livre.

Ação de puríssima competência daqueles policiais, e que fizeram jus àqueles demorados aplausos quando foram recebidos ali do lado de fora. Perfeita sintonia tanto daqueles que comandavam externamente aquela ação, como daqueles que se encontravam dentro daquele veículo. Voltamos todos para nossos lugares, agora sem a companhia daqueles delinquentes, e seguir viagem com quatro horas de atraso.

Nunca imaginei que aquelas dezesseis horas previstas de viagem, e que se tornariam mais de vinte, me dariam tantos dissabores. O dia já amanhecera, era oito horas da manhã, e aquele ônibus estacionara agora para desembarcar passageiro. Chamava-se Milagres aquele lugar. Lembrava-me as paisagens daqueles filmes de Faroeste que eu tanto gostava em minha infância, e não cansava de assistir no cinema de nome Cine Alvorada da minha terra. Era uma cidade em que suas montanhas eram formadas por pedras e os vales daquele lugar eram também cheios delas, e não eram pequenas, e sim de enormes tamanhos. Por coincidência, aquele veículo parara justamente para descer aquele passageiro que estava sentado ao meu lado, passageiro esse que o evitei o tempo inteiro, mesmo quando ele tentava puxar alguma conversa, já que eu, quase que numa constante, me matinha dentro daquele carro num tremendo mal humor.

Seguimos nosso destino. De Milagres a Salvador seria cerca de quase quatro horas de viagem. Como houve aqueles contratempos, eu já sabia que não conseguiria chegar a tempo à capital baiana, e optar por aquele primeiro horário de ônibus que me levaria a Aracaju, e que sairia da Rodoviária de Salvador às dez horas da manhã. Meu irmão, que por hora me esperaria lá no final daquela tarde, não me veria desembarcar, e deduziria que eu chegaria naquele outro ônibus que chegaria ali à noite. O certo era que eu estava a caminho, e que chegaria àquela cidade naquela quarta feira. Convenhamos, mesmo estando atrasado, tínhamos tempo suficiente para que eu optasse por embarcar naquele outro veículo que só sairia da Rodoviária de Salvador às 15h00min. Além do mais, tinha comigo aquela surrada máxima de que jamais um “raio cairia novamente em um mesmo lugar”. Seria impossível que eu tivesse pela frente mais contratempos como aquele. Era hora então de abandonar todas aquelas chateações, todos aqueles contratempos, todos aqueles aborrecimentos, e substituí-los por momentos mais alegres, de mais júbilo.

Meu último, derradeiro, e possível contato com meu irmão foi na segunda feira pela manhã por telefone, e que era a única forma de contatarmos, e foi no dia anterior àquele que eu estava viajando. Nada poderia dar errado, pois eu não tinha a menor noção em que hotel ele se encontraria hospedado depois daquele dia, já que ele havia me dito que naquele iriam trocar de hotel por outro mais barato, sem saber ainda qual. Não tínhamos mais como nos comunicarmos. Eu estava tranquilo, tinha até às oito horas da noite para chegar a Aracaju. Era tempo suficiente, mesmo considerando os imprevistos.

Aproximava-se dez horas da manhã. Aquele era exatamente o horário em que eu já deveria estar dentro daquele outro ônibus. Tinha conhecimento daqueles horários, contatei por telefone anteriormente a Rodoviária de Salvador quando ainda estava em minha cidade, e repassei para meu irmão toda aquela programação. Já encontrávamos em Feira de Santana. Via-se que era um centro de grande porte. Procurei saber quanto tempo de viagem seria dali à capital baiana, e o motorista muito solicito me informou que seriam duas horas. Chegamos à rodoviária e fiquei aguardando o desembarque de passageiros naquela Rodoviária de Feira de Santana.

Fiquei então observando aqueles letreiros onde se localizavam os itinerários daqueles ônibus naqueles stands de venda de passagens, e lia nomes de cidades demasiadamente estranhas às quais eu nunca tinha ouvido falar. Atentei-me então para aquele maior guichê ali daquele local, e vi escrito em seu quadro de horários que sairia dali um ônibus com destino a Aracaju em menos de vinte minutos. Fui ao encontro do nosso motorista e lhe perguntei se não seria desvantajoso eu dar continuidade àquela viagem, posto que, um ônibus estava praticamente com seu motor ligado para partir para a cidade de Aracaju, e que seria meu destino final. Ouvi dele que a empresa que fazia essa linha, parte daquela viagem seria pela BR-116, e que em Alagoinhas, ele, e aqueles ônibus que saíssem de Salvador naquele mesmo horário, seguiriam por uma mesma rota, uma mesma estrada, e havia até a possibilidade de se encontrarem pelo caminho. Concluiu dizendo-me que se eu já conseguisse viajar a partir daquele momento, eu não perderia aquele tempo trafegando naquele percurso entre aquelas duas maiores metrópoles baianas.

Sendo assim, avaliei que poderia compensar todo aquele atraso enfrentando solos sergipanos a partir daquele momento. Sairia dali e chegaria em Aracaju provavelmente junto daquele ônibus das dez horas que estava também saindo naquele momento da Estação Rodoviária de Salvador, e que era o meu horário preferencial de ônibus para viajar no outro dia da Rodoviária de Salvador para a de Aracaju. Quem sabe, eu poderia até mesmo trocar de ônibus pelo caminho, mas nem via razão para tal, já que possivelmente aquele em que eu estaria em seu interior, pela lógica, desembarcaria primeiro naquela rodoviária sergipana.

Seria como que se eu estivesse recuperando todo aquele atraso. Agindo assim, fatalmente iria assistir pelo caminho “um pega” entre aqueles dois veículos, aquela disputa entre um ônibus que saiu de Feira e um outro de Salvador, para se saber qual deles seria o mais rápido, o mais veloz, e quem venceria aquela corrida, quem chegaria primeiro àquela rodoviária. Meus cálculos estavam matemáticos e rigorosamente corretos. Se aquele ônibus de Feira chegasse primeiro à rodoviária daquela capital, provavelmente eu já encontraria meu irmão "zanzando" por aquelas imediações. Se chegasse depois daquele, era só eu ficaria por ali mesmo bebericando umas cervejas, e saberia que mais tarde meu irmão voltaria àquela rodoviária para me encontrar por causa da chegada do outro ônibus que chegaria às 20 horas oriundo daquela “Boa Terra". O certo era que não teria como haver um desencontro entre nós. Não tinha como dar errado! Assim, pelos meus cálculos, antes da três da tarde eu já estaria naquela cidade. Continuava tudo como inicialmente programado, depois daquela minha inteligente decisão de aquele tempo perdido ser recuperado daquela forma. Isso, lógico, pensei comigo, isso foi devido àquela minha perspicácia, àquela minha esperteza por ter decidido embarcar para Aracaju já daquela cidade.

Desci, agradeci àqueles condutores, desejei-lhes que continuassem tendo uma boa viagem, e aquele ônibus seguiu em frente. Dali fui até aquele guichê, só que agora ele já se encontrava cheio. Achava estranho tudo aquilo. Há menos de dez minutos ele estava totalmente vazio, e agora já tinha uma fila enorme de gente para ir para Aracaju. Posicionei-me ali e livrei-me daquele mau humor que me acompanhava. Sentia que a primeira parte daquela cansativa viagem eu já tinha vencido, e que agora, muito menos penosa, e em uma distância muito menor, já iniciaria a segunda etapa a qual eu poderia até mesmo me dar ao luxo de começar minha releitura daquele clássico do Machado.

Fui e enfrentei aquela fila toda junto de pessoas que carregavam galinhas, patos, gansos, e até uma que tinha um mico em seu ombro preso por uma fina corrente de prata, ou de imitação daquele metal. Verdade era que eu tinha até mesmo curiosidade de saber para onde estavam indo aquele povo todo com aqueles animais. Seria para algum um zoológico? Aquele meu pensamento já eram frutos do meu bom humor.

Depois fui tomar um café, já que minha última refeição teria sido em uma parada para troca de motorista na cidade de Vitória da Conquista. Simplesmente pedi um café com leite. No final pedi outro. Um leite que se via que era integralmente puro, denso, não industrializado, e que tinha uma densa camada de nata amarelada, que impedia até mesmo que aquele comerciante penetrasse com facilidade aquela sua grande concha no interior de sua vasilha. Perguntei-lhe, e aí para puxar conversa, se aquele leite vinha era daquela cidade mesma, já que eu não tinha nada pra falar, e ele me respondeu que vinha de uma cidade próxima, e que antes de todo ele ser entregue à cooperativa da cidade, ali era deixada uma determinada quantidade. E que o mesmo proprietário daquela lanchonete era também o da cooperativa, e que o leite vinha diariamente de uma cidade baiana de nome Olindina.

Eu estava ciente que fazendo aquele tipo de viagem, não seria recomendável que optasse por aquele tipo de alimento. O estômago a vida toda acostumada com aquela água rala que são esses leites industrializados de cidade grande, isso quando eu fazia uso desse produto, e numa situação daquela, uma viagem longa, cansativa, o estômago trabalhando fora de suas condições normais, beber um leite com todo aquele vigor, não seria nada prudente, não seria de jeito nenhum recomendável.

DESARRANJOS

CAPÍTULO – II

Impaciência

Segui então em direção ao local onde aquele ônibus estava estacionado ali naquela rodoviária e que havia me causado uma péssima impressão, já que era um veículo que faria uma viagem interestadual ligando dois grandes centros, duas capitais, e achava que seus passageiros mereceriam coisa melhor, algo mais confortável. Era a imagem do que se poderia chamar de uma autêntica "Lata Velha".

Passei em uma banca de revista ali existente, adquiri um jornal local, e me posicionei ali do lado de fora para adentrá-lo. Fiquei surpreso ao chegar, pois me deparei ali justamente com aquelas mesmas pessoas que estavam comigo na fila daquele guichê. Aqueles patos, galinhas, marrecos, e principalmente aquele homem que transitava por aquela rodoviária com um mico dependurado sobre seu ombro também se encontrava bem ali em minha frente. Seriam meus companheiros de viagem. Naquele momento, carregar animais naquele ônibus pra mim pouco importaria, o importante era que eu já estava seguindo para meu destino final, e que a “toque de caixa” venceríamos rapidinhos aqueles 300 quilômetros.

Partimos e coincidentemente meu companheiro de poltrona foi aquele senhor do macaco. Em princípio ele encurtou aquela corrente, o que fazia com que aquele animal só permanecesse em seu colo. Com o tempo, tanto ele como aquele mico ficaram familiarizados com aquele povo, os passageiros achando engraçadinho aquele asqueroso animal, e não demorou muito, aquele bicho peludo e fedorento já estava pulando também em meu colo, sobre mim, e lógico, me impedindo completamente de ler aquele jornal.

Eu deveria ter solicitado na compra de minha passagem um assento que não fosse do lado do corredor do ônibus. Na realidade, se contabilizassem, existiam mais do dobro de pessoas viajando em pé naquela sucata ambulante, do que aquelas que viajavam devidamente assentadas. Creio que foi numa viagem daquela que alguém resolveu criar o termo “aquilo parece uma sardinha enlatada”. As pessoas viajavam muito das vezes caindo sobre mim, e teve aquele atrevido que ainda na rodoviária se assentou justamente no local em minha poltrona onde o usuário daquele assento normalmente apoia seus braços. Eu teria que fazer toda aquela viagem suportando pessoas caírem sobre mim, e aquele abusado me obrigando a viajar totalmente inclinado por ele estar com aquela sua bunda nojenta assentada no descanso de braço da minha poltrona. Era gente jogando fumaça de cigarros de palha em meu nariz, outros conversando alto, bafo de pinga pra todo lado, e ouvia-se estrondosas gargalhadas. Rádios portáteis de diversos tamanhos ligados em seus últimos volumes, sem ar condicionado, e um sagui que saltitava de um lado para o outro sobre minhas pernas, e o que é pior, como se fosse pouco, um sujeito achando que estava cantando em inglês na poltrona de trás. Tudo aquilo completava em mim um quadro de total aversão e repulsa àquele momento.

Sabia que por estar em território totalmente desconhecido, de forma alguma poderia me manifestar deixando exposto aquele meu descontentamento, e muito menos chamar a atenção daquelas pessoas que me incomodavam. Mas na realidade, nem era mesmo aquilo que me deixava enraivecido, e sim o fato de que aquele ônibus não conseguia andar mais que um quilômetro sem ter aquela campainha acionada por algum passageiro, ou deixar de parar para embarcar alguém que lhe desse sinal pela estrada. Era aquele mico em meu colo, às vezes, querendo alçar o meu ombro, e aquela “lotação” parando de dois em dois minutos. Era o que em minha cidade chamávamos de “Cata Jeca” referindo-se àqueles ônibus da Viação São Geraldo que fazia a linha para Ipatinga, região onde muitos de nós inhapinhenses fazíamos cursos técnicos. E que nem me venham me chamar de preconceituoso, ou me ameaçar enquadrar em alguma lei qualquer, pois fui bem claro ao dizer que em minha cidade que assim o denominavam, por não conseguir andar meio quilômetro sem parar para descer ou subir alguém.

Previ, e agora já totalmente arrependido, que naquela “batida”, aquela distância que imaginei que seria percorrida no máximo em cinco horas, que não chegaríamos em nosso destino final antes das dez da noite. E, diga-se de passagem, também pelos meus cálculos, aquela segunda opção de ônibus que inicialmente eu embarcaria mais tarde na Rodoviária de Salvador, fatalmente ele ultrapassaria aquele que eu estava pelo caminho, e o que é pior, haveria um desencontro, pois meu irmão que não me veria desembarcando do ônibus anterior, não me veria também descendo daquele das vinte horas, e toda aquela minha programação de férias que eu havida feito a vida inteira, iria toda agora por água abaixo, pois eu não teria a mínima noção onde encontra-los naquela cidade depois daquela data. Já estava até mesmo me despedindo da Praia do Futuro em Fortaleza, da Boa Viagem em Recife, daquela de Ponta Negra em Natal. Meu encontro com aquelas localidades que se diziam paradisíacas, não iriam mais acontecer. Previa-se toda essa situação. Já estava também dando adeus àquela água de coco que beberia “passando aquelas tardes em Itapuã”. Adeus encontros com Amelinha, Ednardo, Caetano, Gal e Gil. Adeus Alceu Valença, Zé e Elba Ramalho. Adeus dunas de Natal, pontilhões de Recife e as praias divinas e maravilhosas das Alagoas. Adeus Campina Grande. Adeus João Pessoa com sua bandeira mais representativa da federação, depois da bandeira do meu estado, lógico. Adeus Nordeste.

Agora estava eu ali fazendo aquele tour. Entrava num lugarejo e dali saia, e quase que imediatamente entrava em outra vila, outra comunidade, saia dali e entrava em outro povoado, e eu ali impaciente dentro daquela Lata Velha. Aquele ônibus não podia ver alguém caminhando por aquela estrada que acionava sua buzina despertando sua atenção para fazê-la também se espremer por aquela lata de sardinha a dentro. Definitivamente tudo acabado! Com o andar da “carruagem”, não chegaríamos a Aracaju nem mesmo naquele dia. E era, à todo instante, aquela campainha sendo puxada entrando gente com tartaruga e saíndo gente com jabuti, e aquele mico me encarando como que lendo em meus olhos que eu não tinha nenhuma simpatia por ele. E nem pelo seu dono.

Que lástima!

Era um animal de barbas esbranquiçadas, compridas, e até mesmo “mal tratadas”. Asquerosas. O que comprovava sua velhice. E ficava pulando do colo de seu dono para o meu, e do meu para o colo de seu dono.

Que “daneira”!

Ali tinham patos, bodes e porcos misturados ao maleiro daquele veículo. Outros animais se espalhavam pelo chão daquele ônibus dentro de embornais. Pelo caminho, nos pontos de ônibus, crianças vendiam um tal de rolete, que não eram nada mais que gomos de cana de açúcar cuidadosamente recortados e amarrados com uma espécie de cipó. E tome-lhe aquela gritaria toda daqueles guris; - “olha o rolêêêête” ... estrada a fora. Os urros estridentes daqueles meninos vendedores daqueles roletes me irritavam.

Deixamos para trás cidades maiores do porte de Conceição do Jacuípe e Alagoinhas às quais, é lógico, por mais longe e de difícil acesso que fossem suas rodoviárias, acessamo-las mantendo todas aquelas “saíção e entração” de gente. E de animais. Para trás ficou também modestos barracos que serviam como rodoviárias de mais quatro ou cinco lugarejos, e agora já nos encontrávamos novamente estacionados em outro distritozinho do mesmo porte daqueles anteriores. E o mais incrível era a quantidade de pessoas que queriam viajar. E descia e entrava gente, descia e entrava animais, e ali junto a mim aquele passageiro dono daquele bicho liberava ainda mais a sua corrente, e aquele animal ia ficando cada vez mais íntimo de mim. E nada daquele dono daquela coisa abominável descer. Entramos novamente em outro “patrimoniozinho” cujo seu acesso era de terra, o que fazia com que aquela poeira levantasse, isso depois de visitarmos a Rodoviária de Inhambupe, e lógico, ter parado para subir e descer gente em mais uns dois ou três pequenos povoados.

Incrível, mas estava quase vencendo aquelas cinco horas por mim calculadas para chegarmos a Aracaju, e não tínhamos ainda chegado à metade do caminho. Aquele ônibus que saíra de Salvador no mesmo horário em que aquele que eu estava viajando, àquela altura, já deveria estar na garagem de sua empresa em Sergipe, e seus condutores gozando de uma merecida soneca. E eu ali tendo que suportar em ver aquele macaco comendo biscoito e esfarelando seus restos sobre minha calça. E ele pegava naquele biscoito tal qual gente. Que coisa abominável!!! Se pelo menos seu dono lhe tivesse ensinado comer com aquela sua boca fechada. Parecia uma leitoa gorda com seu focinho mergulhado num balde de lavagem. Que coisa mais odiosa e execrável.

Enfim chegou o momento da parada para o almoço. A cidade se chamava Olindina e a fome já me abocanhava. Lembrava-me que aquele atendente daquela lanchonete havia me dito um nome de uma cidade parecida com aquela. Iríamos permanecer ali estacionado por meia hora, o que seria um exagero, já que eu estava atrasadíssimo. Na realidade, quem estava atrasado naquela viagem era somente eu, aquele ônibus estava dentro de seu horário, além do mais, galinhas, porcos e marrecos não se atrasam. E muito menos macaco. Mas eu estava atrasado. Atrasado e deveras revoltado. Mas era assim que a desgraçada daquela coisa funcionava, não tinha solução para aquilo. Valha-me Deus!

Entrava em todos os locais e parava a todo o momento para descer ou subir gente. Não nego, em algum momento temi pela entrada de alguém ali com uma jibóia. Ou um rinoceronte, quem sabe? Àquela altura tudo era possível. E até passível, porque não? Tudo ali era válido. E nada e ninguém eram deixados pela estrada.

Naquilo que estava longe de ser um restaurante, pedi uma refeição. Na realidade ali era tudo bem asseado, pelo menos no que tange àquele seus modestos e limpinhos panos de mesa. Sobre ela, a mesa, havia três talheres, um garfo, uma colher e uma faca em cima um guardanapo aberto. Num dos cantos da mesa, dentro de um copo grande de cor marrom, tinha uns guardanapos enrolados em forma de canudo, um vidro enorme de pimenta e outro vasilhame de farinha de mandioca muito clara. Quando me assentei, "Eu, caçador de mim", era a música que estava tocando com o Milton naquela pequena caixa de som ali dependurada. Veio então aquela comida com aquele tempero sergipano o qual eu não tinha nenhum costume, aliás, nem o conhecia. Lembro-me que o coentro imperava naquele tempero. Ele e a danada daquela pimenta. Antes fui até aquele banheiro que não o recomendaria a ninguém, e tentei fazer seu uso com aquelas necessidades biológicas que surgem justamente naqueles momentos mais inapropriados. Mas nada consegui e fiz somente o de praxe. Urinei. Aliás, teria que fazer, pois naquele ônibus, embora fosse interestadual, não tinha banheiro. E que fique claro, cheio como estava, e não tinha toalhete. Ou eu dava aquela mijada ali, ou só a faria numa próxima parada a qual eu não tinha a menor noção quando poderia acontecer.

Sendo tempero conhecido ou não, comi toda aquela refeição, e não deixei sobrar nada daquele lombo de porco totalmente picante e saboroso que veio em grande quantidade naquela surrada bandeja, e ao lado em vasilhas simples e devidamente bem asseadas, o arroz e o feijão, esse também feito ao tempero deles. Ele, o lombo, foi servido bem tostado numa bandeja de tamanho médio com parte dele bem engordurada, e de um visual um tanto apetitoso. Lógico, o tempero era excelente, mas a pimenta reinava absoluta naquele espaço. Pimenta e coentro. Senti que seria um desperdício se antes de devorá-lo, que eu não tomasse um aperitivo. Pedi uma “pinguinha” da roça na chegada daquela refeição. Veio mais outra. Depois pedi mais uma e no fechamento da refeição mais outra. Para completar mandei "fechar" tudo aquilo com uma cerveja. Depois, e já terminado o almoço, tomei outra cerveja esperando o final do almoço do motorista e trocador.

Diria que depois daquela refeição regada à cachaça, pimenta, cerveja e coentro, eu estava de posse de todas as condições necessárias para que, mesmo se eu assentasse num desconfortável banco de uma praça aí qualquer, ali eu cairia num sono tão profundo que até mesmo o barulho de uma turbina de avião assobiando bem dentro dos meus ouvidos me faria acordar. E dormiria por longas horas, dias, semanas e até meses. Estava me sentindo como uma verdadeira jibóia depois de ter devorado um boi, e necessitando se hibernar por horas e mais horas. Mas eu sabia que não era nada desse conforto que me esperava ali do lado de dentro daquele ônibus; “Tinha um macaco no meio do caminho. No meio do caminho tinha um macaco”.

Suportar um mico feio, velho, repugnante, pulando pelo meu corpo, e o danado ainda me morder simplesmente porque eu não o queria ali comigo? Sim, e foi o que ele fez, ele “me deu uma dentada de lascar”. Depois do reinício daquela viagem, após o retorno do almoço, ele me travou seus dentes. Ele procedeu assim pelo simples fato de eu o ter empurrado da minha coxa aproveitando que seu dono estava roncando. Aquele sujeito ouviu meu grito e xingamento, deve ter imaginado o ocorrido, já que aquela deveria ser uma situação rotineira, e na mesma posição em que estava cochilando, continuou como se nada tivesse acontecido, somente espreguiçando, abrindo mais ainda aquela sua “boca de caçapa”, e dando umas duas ou três voltas naquela corrente em seu braço, prendendo aquele animal mais perto de si, depois de lhe passar um pito; - Sossega Chico!

Minha vontade ali seria esgoelar aquele desgraçado de bicho, enforcá-lo, torcer aquele seu pescoço tal qual se faz naquele movimento com um saca rolha para poder retirá-la de uma garrafa de vinho. Ou até mesmo, quem sabe, pisar em sua cabeça e fazê-lo transformar em pó, se dizimar, quem sabe, fazê-lo até mesmo deixar de ser considerado matéria no espaço. Com seu dono junto.

Aproveitei aquele momento de paz entre eu e aquele bicho danado, já que ele estava como que num castigo agora, e resolvi dar uma cochilada, até mesmo porque ler aquele jornal se tornara impossível, pois minhas mãos teriam que se avizinharem sempre daquele animal quando eu tentasse o manter aberto. Do outro lado, para me aporrinhar, o “proprietário” do descanso de braço da minha poltrona continuava com aquela sua bunda grande estufada naquele lugar onde o meu braço deveria estar, e contando casos de suas “caçadas de tatu, paca e cutia”.

Mal fechei os olhos e mal aquele ônibus arrancou de mais uma parada em um daqueles arraiais, senti que minha barriga não estava dando boas-vindas para aquele lombo demasiadamente gorduroso e apimentado. Aquele leite também mostrava sua razão de ser tão denso. Era um incômodo administrável. Insisti em manter-me com os olhos fechados, e novamente senti que estava havendo uma grande discórdia entre meu estômago, mais precisamente a minha barriga, com aquelas pingas, aquelas cervejas e aquele leite da nata amarelada. Agora tudo aquilo deixava de ser um incômodo e se transformava em uma dor de barriga de intensidade cada vez maior e ainda mais duradoura. Aquilo já era uma cólica.

Como se já não bastasse, isso mesmo, agora eu já me encontrava com uma terrível dor de barriga ali dentro. Era só o que faltava. E ela aumentava de magnitude a cada quilômetro que aquele ônibus preguiçosamente percorria, e veio então aquela vontade fatal de ser socorrido por um vaso sanitário, nem que fosse por um vaso turco, aquele cuja sua face superior fica no mesmo nível do solo, e que eram desumanamente comuns em canteiros de obras dentro da maioria das empresas de porte em que já trabalhei, pois suas necessidades eram feitas de cócoras, e muito das vezes “perna abaixo”. Um trabalhador que vai para seu posto de trabalho deixando para trás em sua casa o conforto de um vaso sanitário comum, e ter que fazer suas necessidades biológicas tais quais seus mais distantes ancestrais, é a mais evidente demonstração da falta de respeito com o ser humano. Mas naquele meu caso em especial, que viesse aquele vaso turco.

Eu teria que imprescindivelmente visitar qualquer tipo de vaso sanitário, e imediatamente. Tentei aliviar-me soltando dissimuladamente um ou outro peidinho, mas aquilo era um recurso paliativo, apenas mascarava a situação, e naquela circunstância essa atitude se tornava arriscada, não recomendável. Agindo assim eu poderia até mesmo cagar, literalmente, na calça dentro daquele ônibus. Mas aqueles peidos, meio que contra minha vontade, fluíam, como que se esvoaçassem sem o meu consentimento. Sentia que aquele caçador e aquele dono daquele macaco me olhavam e me viam como suspeito, até mesmo porque, tal qual existe o “olho do furacão,” eles me olhavam como se eu fosse o “olho daqueles peidos”, e que era da minha nádega que saiam todos aqueles gases, e que seria eu o epicentro de toda aquela "cantiga" tocada com um som um tanto quanto inaudível. E aqueles gases continuavam a infectar todo aquele ambiente. Às vezes eu olhava para um ou outro passageiro, e lá estavam eles com dois dedos de sua mão fechando a entrada de suas narinas, mal humorados, avermelhados, quase se arrebentando com suas bochechas infladas de tanto ar preso, como se fossem aqueles balões coloridos que enfeitam festas de aniversários. Inclusive já não se ouvia mais aquele “inglês” cantar na poltrona atrás de mim, que obviamente, e por questão de bom senso e precaução, preferia manter sua boca fechada.

E naqueles momentos em que aquele mau cheiro e o odor daqueles meus peidos predominavam e insistiam em permanecer inebriando todo aquele ambiente, só se via as expressões mal humoradas ali nas faces de todas aquelas pessoas, e deles, só se ouviam xingamentos e praguejamentos ao "sujeito oculto" autor daquelas desagradáveis “ventosidades” que mantinham naquele lugar um insistente desagradável cheiro de enxofre. Tentavam-se abrir mais aquelas janelas, que já se encontravam rigorosamente escancaradas, e acompanhados daqueles seus gestos, daquelas suas tentativas de um certo alívio, vinham os elogios à progenitora do autor daqueles peidos. E eu estava ciente que eram endereçados à minha mãe. Até questionava-me se ela era mesma merecedora de tudo aquilo que diziam ela ser. Vaca? Égua? Cadela? Por questão cultural, regional, eu desconhecia muitos outros tipos daquelas injúrias, mas creio, e disso não tenho nenhuma dúvida, ela foi insultada e distratada por impropérios de significados muito profundos. Razão pela qual eu nem me importava tanto, já que eu não sabia de que ela estava sendo acusada, e o verdadeiro significado de muito daqueles termos.

Parecia que até aqueles animais que se encontravam ali dentro sentiam também o efeito de todo aquele cheiro de enxofre que ali era exalado. E eu lá, sério, discreto e todo sisudo como se nada estivesse acontecendo. Por algumas vezes, e por disfarce, eu até levava meus dedos em meu nariz imitando alguns daqueles passageiros naquela mais indiscreta simulação. E nem me sentia incomodado, até estava gostando daquelas minhas importunações. Pena que aquele sagui também não se sentisse incomodado. Se sentia, talvez por orgulho, soberba ou arrogância, não deixava transparecer. Mas não nego, pelo que eu já tinha passado de raiva com aqueles três; macaco, seu dono, e o sujeito que tinha aquela bunda asquerosa, todos aqueles seus sofrimentos ali ainda eram poucos. Sua calça, e ele nem se incomodava, caía bunda abaixo deixando à mostra aquele seu “cofrão” nojento espalhado por todo aquele braço da minha poltrona me trazendo todos aqueles desconfortos, então, quanto a ele, todos os efeitos daqueles meus peidos foram poucos. Queria ver aquele mau cheiro que eu emitia impregnado em suas narinas pelo resto de sua vida. E na daquele macaco também.

Sentia que muitos tentavam me desmascarar me delatando com seus olhares e praticamente apontando seus dedos indicadores para mim. O desconforto que aqueles meus gases lhes causavam eram ínfimos em relação àquela raiva com que eles já haviam me feito passar dentro daquele lugar. Naqueles momentos me sentia vingado de todas aquelas pessoas responsáveis por aqueles meus dissabores. Era o prato da vingança sendo devorado rigorosamente frio, conforme aquela citação.

Por alguns momentos até fiquei feliz com aquela minha caganeira. Desforrei-me de tudo e de todos, até daquele motorista que enfadonhamente guiava aquele veículo que andava numa velocidade de uma tartaruga. Mas só fiquei feliz por alguns minutos, ou melhor, por alguns segundos, já que aquela vontade agora de ir ao banheiro e soltar aquilo tudo se tornara completamente insuportável, desumana. E eu não tinha o que fazer, nem a quem recorrer, não tinha para onde ir, para onde correr. E lá vinha aquela cólica, aquela insistente vontade, e que eu insistia em não a deixar prosseguir, continuar, isso quando eu conseguia dar umas “trancadas” lá em baixo.

Meu rosto pingava suor, sentia que eu deveria estar completamente pálido, e aquela dor mais e mais me atormentava. E eram cólicas seguidas de mais cólicas misturadas àquele sentimento de angústia, de aflição e de agonia. Aquela dor intensa que me provocava repetidos espasmos abdominais.

Tomei então uma decisão; Iria descer ali mesmo. Mas descer em uma estrada onde eu não tinha a menor noção onde estava e para onde ia? Mas eu desceria, e escolheria algum lugar depois que eu ali me encontrasse para poder defecar, jogar tudo aquilo fora, embora estivéssemos em pleno sertão baiano, e só existissem caatingas naquele lugar, vegetações completamente rasteiras, nenhuma moita, e não teria nem como me esconder para aquela necessidade.

E era aquele mar de gente subindo e descendo com aqueles animais dependurados, e aquela dor de barriga me castigando cada vez mais. Enfim chegara a um lugarejo.

Apearia ali

Tinha gritado para o motorista que iria ficar por ali, e pedi licença àquele povo todo que viajava em pé. Pelo caminho daquele corredor fui desvencilhando de um ou outro passageiro, e de aves e animais que se encontravam pelo chão dentro daquelas bolsas e embornais. Devo ter pisado no pescoço de dois ou três daqueles galos e patos que se encontravam pelo caminho. Não nego que depois que passava, mesmo que um tanto inaudíveis, ouvia algum tipo de apupo, ou uma provocação qualquer, e era merecedor também de alguns olhares desconfiados. Ali pude notar que, mesmo naqueles momentos, os quais eu tentei demonstrar isenção, naturalidade e sem uma menor culpabilidade, muitos daqueles passageiros tinham a certeza absoluta que teria sido eu o responsável por aqueles desconfortáveis momentos fétidos dentro daquele ônibus.

Mas eu estava concentrado, devidamente centrado naquele momento, pois todos sabem que quando estamos acometidos desse grande mal, é a proximidade daquilo tudo ser resolvido, que é o momento crucial, o momento de maior perigo, onde todo o cuidado é pouco, correndo-se o risco de se fazer tudo aquilo fora do tempo e do local adequado. E lá ia eu naquele corredor afastando gente, galinhas, porcos e papagaios da minha frente, e preocupado em não

cagar pelo caminho.

Enfim, coloquei os pés no chão e aquele ônibus se foi. Adeus macaco, adeus sujeito da bunda repugnante e daquele “cofrão” à mostra, e que se dizia ser caçador daquela bicharada toda.

DESARRANJOS

CAPÍTULO – III

Sensação de "Déjà Vu".

Desci e corri em direção ao banheiro daquele buteco dizendo ao seu dono que iria usá-lo, óbvio, sem esperar por sua permissão. Ali fiquei não por menos de meia hora. Quem por ventura ali batia eu fingia que não o ouvia. E só se ouviam queixas do lado de fora por aquela porta se encontrar o tempo toda fechada, já que aquele era o único banheiro daquele buteco, e nada impedia que outros que ali chegassem estivessem naquela mesma situação em que ali cheguei. Fiz da minha cueca o papel higiênico, já que ali não existia esse tipo de utensílio. A descarga levou consigo uma daquelas meia dúzia de cuecas novas, legítimas e caras da marca Calvin Klein, que eu havia adquirido exclusivamente para aquela viagem.

Já depois daqueles meus primeiros momentos de alívio, já mais tranquilo, como se já estivesse até mesmo, quem sabe, querendo demais, quis dar-me ao luxo de continuar assentado naquele vaso lendo aquele jornal que o tempo todo eu o tive em mãos. Foi quando dei por mim, ou seja, quando me lembrei de que toda aquela minha pressa me fez esquecer no bagageiro externo daquele ônibus minha mochila principal. Ao lembrar-me daquilo procurei ali por uma corda, jurava que subiria naquele vaso com ela no pescoço, e me dependuraria ali em uma daquelas madeiras que suportavam as telhas de amianto daquele banheiro encalorado. Iria me enforcar. Já não suportava mais tantos dissabores e contratempos. E me vieram então alguns devaneios;

- Se ao menos aquela descarga tivesse me levado junto àquelas fezes... e daquela cueca de marca tão famosa e cara.

Dentro daquela mochila estavam todos os meus documentos. E além deles, meus Cheques de Viagem e todas as minhas roupas. E roupas caras e de marcas que eu havia juntado dinheiro nos últimos tempos para adquiri-las exclusivamente para aquele passeio. E estava eu agora ali sem dinheiro suficiente, sem cheque, sem roupas, sem documentos e sem um norte. Saí daquele bar tendo o olhar raivoso de seu proprietário, e caminhei para o outro lado da rua que me parecia mais movimentada naquele pequeno arraialzinho perdido no mapa, que eu já não sabia se era da Bahia ou do estado de Sergipe. Se não era movimentado de gente e de casas, eram de galinhas, pintinhos, cachorros e porcos espalhando ainda mais um amontoado de lixo por aquela ruela. Ali galinhas espantavam gatos, porcos espantavam cachorros e urubus espantavam galinhas, invertendo uma ordem de grandeza, nem que fosse uma ordem de grandeza do volume dos seus corpos.

Fui caminhando mais para o interior daquele lugarejo cuja paisagem era de uma pobreza absoluta. Passava um pouco das duas horas da tarde e o sol continuava a pino. Segui por aquela ruela de terra batida. Ela era o único acesso àquele pacato lugarejo. Pelo caminho foi-me oferecido Doces Pés de Moleques e Cocadas que tinham dentro daquele asseado balaio coberto por um pano de uma brancura incomum. Aqueles doces foram me oferecidos por aquele molequezinho franzino que empurrava aquela bicicleta de pneus finos e remendados, além de completamente carecas, e que tinha aquele grande balaio devidamente amarrado em sua garupa. Dizia-me que aquelas guloseimas eram feitas pela sua mãe. Adquiri três deles sem nem mesmo saber o que faria com tudo aquilo. De formas irregularmente arredondadas, planas, de uma extraordinária brancura, as cocadas eram feitas com pedaços de coco passados por um moedor residencial. Os Pés de Moleques eram feitos de amendoins inteiros, e tinham a mesma forma. Ambos eram de tamanhos exagerados.

Para completar aquele quadro singelo e nostálgico daquele logradouro, um casal de sabiás dava seus acordes naquele abacateiro os quais, seus frutos, só existiam em uma altura inalcançável, e que deviam alimentar, quando maduros, os peixes daquele riacho que corria bem debaixo de seu pé. A cada carro, caminhão ou ônibus que passava, isso quando passavam, a poeira ia levantando, já que naquela rua não havia um só paralelepípedo calçando aquele chão castigado por todo aquele ardente sertanejo sol. Não era raro ver uma carroça de burro, ou mesmo uma charrete. Parecia ser o mais usual dos meios de transportes do lugar. Pelo menos ali não se via esgoto a céu aberto. Vendedores de verduras, provavelmente oriunda de alguma horta do fundo do quintal de alguma casa dali, também eram oferecidas pelo caminho, o que na realidade eu ficava pensando para quem eram vendidas aquelas hortaliças, quem eram os seus fregueses num lugar tão desprovido de recursos como aquele aparentava ser. O leite era entregue na porta, ou mais precisamente nas janelas das casas. Muito das vezes o leiteiro nem descia daquele velho burro para despejá-lo sobre aquelas vasilhas que se encontravam sobre o parapeito daquelas janelas, ou no muro de seus alpendres. Moscas e mosquitos disputavam espaços nas tampas daqueles vasilhames depois de ali ele ser colocado.

Pela rua misturavam-se casas demasiadamente humildes, e outras muito velhas, descoradas, desbotadas, muitas, às vezes, só no reboco. Tinham também aquelas cujas suas paredes, e via-se à olho nu, eram alicerçadas por bambus e barro amarrados por cipós, o que parece, eram chamadas de taipas. Mais afastado do alinhamento daquelas casas existia uma pequenina igreja que tinha sobre um pedestal a imagem de um santo em tamanho natural tinha seu corpo atravessado por uma lança quebrada. No fundo de algumas casas existiam fogões à lenha cuja suas coberturas eram feitas por folhas de coqueiros de uma forma engenhosamente entrelaçadas. Já aqueles fogões eram cobertos por um barro branco. Do fundo, no quintal de uma daquelas casas, e de um daqueles fogões saia uma fumaça que cheirava forte, oriunda de uma torradeira de café manual. Via-se claramente a dificuldade de manuseio daquela engenhoca, já que aquela senhora de idade avançada e de lenço branco na cabeça, teria que enfrentar o calor infernal daquele sol e daquele fogo escaldante que aquecia aquela torradeira. Ela ainda encontrava tempo para dar umas baforadas naquele seu cigarro de palha. E o que era pior, aquela fumaça daquele cigarro ainda encontrava meu nariz pelo caminho.

Um carro de boi, algo completamente insólito já naquela época, me ultrapassou pelo caminho abarrotado de lenhas devidamente cortadas e amarradas por cipós sobre sua carroceria. Aquela dupla de animais, além de ter que carregar toda aquela carga, carregava também o peso daquele cocheiro, e eram constantemente incomodados por esse guia que usava um chapéu bem ao estilo Lampião, o "Rei do Cangaço". Pensava eu que esse personagem, Lampião, poderia ter estado sim por aquelas bandas um dia, e porque não? Esse "nosso" Lampião tinha em mãos uma vara cortada num matagal ali qualquer do tamanho de um cabo de vassoura, já seca, comprida e arredondada, e na sua extremidade existia algo que parecia um prego fixado ao contrário. Farofa e Azeitona, aqueles animais eram tratados por esses codinomes por aquele algoz que os martirizavam, já que ele ficava fincando o prego da ponta daquela guiada em suas ancas ordenando-os para que tivessem pressa naquele frete.

Em quase todas as janelas e varandas daquelas casas existiam plantas e trepadeiras, ou seus vestígios, que muito das vezes eram cultivadas em latas de diversos tipos e tamanhos. Ora latas de tinta, de doce, ora de cera, de óleo comestível, como também tinha uma que tinha aquela lata um tanto podre de cinco litros de querosene da cor vermelha, branca e azul com a figura de um jacaré e da marca Esso. Ela era uma das únicas ali que conseguia ainda ser perfeitamente identificada. Via-se também baldes de lubrificantes que deviam ter sidos promovidos a vasos de flores um dia, mas que só tinha terras. Aliás, em geral, aquilo lá poderia ser considerado, se é que se pode dizer assim, um “jardim de terras”. Partes de pneus de automóveis cortados ao meio desempenhavam a função de um berço e eram dependurados em árvores por duas cordas laterais, mecanismos esses parecidos com uma gangorra infantil. Via-se claramente que já não se cultivavam nenhuma planta mais em seu interior, mas eles continuavam ali intactos, o que não poderia dizer o mesmo de suas cordas de sisal. Muitas daquelas latas de flores que ficavam pelas janelas ou pelos muros daquelas varandas já estavam completamente deterioradas, o que as impediam até mesmo de serem trocadas de lugar. Sorte daqueles calangos que ficavam pra lá e pra cá sobre aqueles que um dia deveriam ter sidos belos arranjos florais, e que daquilo tudo só lhes sobraram suas terras. Toda aquela indigência me trazia um sentimento de nostalgia e tristeza. A visão daquilo tudo era demasiadamente melancólico. Não que as pessoas que ali residiam eram necessariamente tristes ou tinham que obrigatoriamente serem tristes para completar aquela paisagem. E muito menos viverem melancolicamente. Elas possivelmente não viam aquele quadro da forma com que ele estava sendo devidamente pintados para mim. Tudo aquilo me dava depressão, ou um estado de nostalgia qualquer. Ou até saudade. Mas saudade de que?

Não sei o porquê de eu ficar demasiadamente impressionado com uma pequena e humilde casa de uma pequena porta lateral em que sua cerca de bambu ao fundo era invadida por ramagens de plantas trepadeiras, com folhas e grandes flores amarelas, que nada mais era que um pé de bucha. Em sua frente duas singelas janelinhas de madeira de um azul desbotado, muito desbotado mesmo, pareciam estar há muito tempo fechadas, ou nunca teriam sido abertas. Existia ali um ar de abandono. Em sua lateral existia uma velha parreira de uva de galhos grossos e aparentemente secos que iam se esconder por detrás dela. Parte de sua ramagem penetrou por aquela varanda lateral da casa em que suas paredes eram cheias de imagens de santos já amareladas pelo tempo, e que um dia devem ter sido ali criteriosamente pintadas, e motivo de fé daquelas pessoas que ali viviam, ou frequentavam. Naquela varanda, e que seu pequeno portão de ferro dava para a rua, no alto, na parede ao lado de sua porta de entrada principal, tinha engastada uma placa de mármore preta do tamanho de uma caixa de sapatos adulto, e sobre ela a imitação de uma gruta sem mais nenhum santo em seu interior. Restos de respingos enegrecidos de velas que ali um dia foram acesas, ali permaneciam, tais quais lavras que um dia brotaram de um vulcão e viraram pedras. Parte do forro branco daquela varanda que aquela gruta se situava por debaixo estava escurecida pelo efeito das fumaças daquelas velas que foram acesas ali um dia, e que demonstravam a crença de quem naquele local por algum tempo residiu, ou frequentou. Toda aquela visão me fazia lembrar das estrofes de uma música do Caetano:

"As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar

Os dois lados da janela,

E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há

Azul que é pura memória de algum lugar." (Trem das Cores)

Aquela casinha era sim o símbolo maior daquelas moradias. Toda aquela videira que por sinal há tempos não deviam dar mais frutos, era avistada ali do lado de fora, já que aquela cerca de bambus podres em sua frente que um dia ali foram colocadas para protegê-la, sofria severamente a degradação por seus longínquos anos de existência.

O que aquilo me fazia recordar, ou com o que a minha vida estava associada àquilo que eu via e sentia naquele instante, eu não sabia explicar, e muito menos entender, como não sabia também o porquê de tudo aquilo me trazer tamanha melancolia. Recordava de quê? Às vezes temos algumas visões e recordações que nem a gente mesmo consegue explicá-las, ou mesmo decifrá-las. Umas trazem alegria, contentamento, outras algum júbilo, mas aquelas, e naquele momento, só me traziam consternações e tristezas. Além de entristecimento e melancolia. Aquele lugar me era tão familiar que às vezes pensava que eu já deveria ter estado ali em algum momento de uma outra vida minha qualquer, ser um daqueles, ou que eu já tivesse até mesmo morado naquele lugar e naquela casa em algum outro instante. E quem sabe, teria sido eu mesmo que um dia teria fechado definitivamente aquelas janelas? Verdade é que, eu não estava conseguindo entender tudo aquilo que eu estava sentido, aquela minha emoção, aqueles meus devaneios. Não conseguia descodificar aquele enigma. Não conseguia decifrar aquela sensação de achar que ali eu morei um dia, ou por uma outra vida toda. Nunca fui adepto de teses de existência de vidas anteriores, assim como também de reencarnações, ou eu estava mesmo é tendo aquela sensação do que a psicologia chama de “Déjàvu”, que é aquele sentimento de achar que você já viveu aquele momento antes? Não! Não sei. Preferi então contra uma vontade que insistia em não me atender, desviar a atenção e os olhos daquela casinha. E seguir.

Muitas daquelas moradias da rua tinham em suas frentes enormes amendoeiras com suas sombras e suas folhas secas que forravam aquele chão, transformando-as em tapetes naturais daquelas folhas da cor de cobre. Muitas delas nem tão secas, poderiam estar ali por obra de formigas, e que se aglomeravam e se misturavam àquelas folhas por debaixo daquelas copas, e ao menor sinal de um vento qualquer, aquelas folhas já se esvoaçavam umas sobre as outras. Embaixo daquelas árvores existiam banquinhos de madeiras construídos em meio às suas raízes que não se satisfaziam em viver somente como raízes, já que insistiam em se aflorarem daquele chão. Uma idosa senhora com uma vassoura construída de ramagens varria todas aquelas folhas de defronte sua casa para junto de um grande tambor de lixo. O vento as trazia de volta.

As tardes e noites naquele lugarejo deviam se findar com aqueles moradores assentados naqueles banquinhos, e um rádio de pilha à mão do chefe da família pra se ouvir A Voz do Brasil. Todas as noites implacavelmente se ouviriam ali e no mais alto dos volumes a música O Guarani de Carlos Gomes anunciando a abertura daquela maçante programação. E o áudio daquele rádio deveria se reverberar por toda aquela vila de humildes moradores.

Televisão, já mesmo naquela época, ainda não era um artigo comum na maioria daquelas moradias, até mesmo porque algumas nem luz tinham. Aliás, a sua maioria não tinha energia elétrica. Tudo aquilo mostrava a forma singela e simplória de se viver a vida naquele lugar. Para mim aquele visual me trazia tédio e acabrunhamento e tornava-se um verdadeiro e execrável aviso de uma depressão que ali eu já poderia estar começando a sentir seu efeito por não conseguir enxergar tudo aquilo ali naturalmente. Não era a pobreza e simplicidade das pessoas e do lugar, mas a indelével sensação de sentir que todos os dias ali deveriam ser inalteráveis e completamente imutáveis. E exaustivamente melancólicos. Não sendo tão extremista, não sendo também trágico, se ali eu residisse diria que a vida não estaria me fazendo nenhum favor em deixar com que eu continuasse vivendo. Ali, agora, eu já sentia que tinha que obrigatoriamente fugir daquele lugar o mais rápido possível. E teria que ser ainda naquela tarde. Não poderia mais continuar naquele lugar, naquela prostração. Eu teria que ir embora.

À medida que eu caminhava as pessoas iam aprecendo em suas janelas, e aquelas que ali já se encontravam quando delas eu me aproximava, elas retornavam pra dentro de suas casas. Eu tinha sempre atrás de mim a companhia de três vira-latas que pareciam estar fazendo a função de mestres de cerimônias do lugar. Eu parava, eles paravam...eu andava eles andavam...e o mais curioso daquilo tudo era que ao parar, eles faziam o mesmo, e quando eu olhava para eles, eles dissimulavam, como se nada tivesse acontecendo, ou que eles nem haviam notado a minha presença naquele lugar. Então eu seguia naquela minha lenta caminhada, e eles vinham atrás.

Em uma daquelas janelas três moças se exprimiam, se empurravam, davam risadinhas e gritinhos um tanto que histéricos para chamar minha atenção. Dei-lhes um “adeusinho” com aquela minha mão que não segurava minha mochila. Elas se afastaram envergonhadas. Assim que passei em frente àquele buteco que o Altemar Dutra dizia “que era sentimental demais”, um desdentado que fedia cachaça pediu-me que lhe pagasse “uma”. Dei-lhe um valor que provavelmente equivaleria ao preço de não menos que umas três doses. Seguia em frente quando poucos metros depois bateram em minhas costas, e era outro requerendo aquela mesma benesse. Dei-lhe também o mesmo valor. Apressei o passo para que um terceiro não me apanhasse, aí me perguntei:

- O que fazer nesse lugar que não fosse beber?

Então recolhi meu caminhar, olhei para trás, retornei aquele buteco do “Altemar”, postei sobre o balcão uma nota maior, recolhi o troco, e pedi que entregasse aquele litro de cachaça para aqueles mesmos pedintes. Ali já não eram mais somente dois, já eram três. Senti um leve oportunismo de um deles quando me pediu que lhes pagassem uma pequena porção daquele torresmo esfarelado que tinha dentro daquela bandeja amassada naquela vitrine de vidros embaçados e amarelados. Arrematei logo tudo aquilo e mandei que fossem distribuídos para aqueles cachaceiros.

Logo na saída fui alcançado por uma charrete cujo seu dono quis me vender um litro de mel garantindo ser ele de procedência legítima. Ele o alçou até minhas mãos e o apanhei sem que nem eu mesmo soubesse até mesmo o porquê de assim eu ter procedido. Foi algo automático como uma defesa prévia de alguma coisa que vem em sua direção. Disse-lhe não estar interessado. Ele insistiu. Nele, em meio aquele líquido denso e amarelado, tinham duas abelhas mortas, o que talvez até fossem colocadas ali propositadamente para dar autenticidade àquela mercadoria. Estava eu agora lá caminhando sem saber para onde e com um litro de mel nas mãos, e três barras de doces. O dono daquela charrete quando por mim passou distribuía no lombo daquele animal uma sequência de relhadas em que até estalavam quando iam de encontro ao corpo daquele animal. Se eu previamente conhecesse aquele "script", era certo que eu não teria adquirido aquela sua mercadoria.

Impacientei-me com a atitude daquele algoz charreteiro e abandonei aquele mel nos pés de uma daquelas árvores ali da rua. Senti que aquele pouco dinheiro que tinha no bolso a cada momento se encurtava ainda mais e decidi que a partir daquele momento não faria mais nenhum gasto desnecessário. Quanto aos doces, não foi difícil achar dois guris para presenteá-los, e ver as indescritíveis caras de satisfações que fizeram. Sobravam-me agora, provavelmente, pouco mais do que o suficiente para se pagar a passagem daquela cidade até a capital sergipana.

Do alto de uma ponte de madeira e em péssimo estado de conservação, três garotos completamente nus subiam e desciam por ela para saltarem para dentro daquele riacho que deveria cortar todo aquele lugarejo. Muito das vezes eles subiam naquele galho daquele pé de goiaba e faziam com que o peso dos três envergassem aquele galho até ele quase facear com a água daquele córrego, para depois pularem para dentro dela. Dois pescadores já de idades avançadas cruzaram por mim com suas varas de pescar e enormes embornais que se viam ser rigorosamente desproporcionais à quantidade de peixes que deveriam conseguir pescar, se seus pesqueiros fossem mesmos aquele pequeno córrego. Passei defronte uma pequenina farmácia que tinha suas prateleiras vazias. Uma Rádio Patrulha passou por mim com seus policiais me encarando e depois voltou, e dessa vez sem olharem em minha direção. No caminho outra venda, e no fundo daquele seu lote tinha uma pequenina fábrica que parecia ser de tijolos. Um automóvel Vemaguet estava “atolada” em uma garagem e que passava a impressão de que há séculos ela não era retirada daquele lugar, já que matos cresciam por debaixo dela e em volta de seus murchos pneus. Prova que há tempos dali ela não saia era que existia um pé de manga bem crescido ali atrás, que a impediria de sair daquela garagem construída no fundo de um lote totalmente coberto por um grande matagal. Tudo aquilo eu fui deixando para trás.

Um pouco mais à frente parei, olhei para trás, para os lados, e estava eu ali agora estacado, empacado em um local inteiramente perdido no mapa. E eu dentro daquele mapa. E agora somente acompanhado por dois daqueles cães. Caminhei uns trezentos metros e cheguei a um lugar que se destoava dos outros comércios do lugar por sua limpeza e organização, e onde trabalhava uma menina que provavelmente deveria ser um pouco mais nova que eu. Se fosse.

DESARRANJOS

CAPÍTULO – IV

A fina flor do semiárido.

Pedi licença àquela garota que estava assentada atrás daquela mesa no fundo daquela sala, adentrei àquele estabelecimento e lhe cumprimentei. Assim que me aproximei, ela retirou aquele fone de seu walkman em forma de arco de seu ouvido, deixando-o dependurado em seu pescoço. Logo em seguida arriou sobre aquela mesa aquele livro que tinha em mãos lições de inglês, cuja suas respostas estavam escritas a lápis. Em sua capa tinha a Bandeira da Inglaterra e dos Estados Unidos lado a lado. Continuou cantarolando um tanto quanto desafinada uma música do Caetano que eu a conhecia bem e de nome Lua e Estrela. Cantarolava apenas aquela parte que ela deveria conhecer de cor naquela música, já que ela repetia a todo momento somente aquele mesmo trecho.

Ali deveria funcionar o posto de vendas de passagens daquela cidade. Tinha bem ali em minha frente naquela parede sobre sua cabeça um quadro de horários e de preços de passagens. Fixei meus olhos naquela relação, e ela em mim, mas não existia ali horários de ônibus para a capital sergipana, embora eu insistisse em continuar fixando meu olhar naquele quadro, já que eu sabia que estava sendo observado por ela. E então ela interrogou-me meio que imperativamente:

- Diga aí “my brother”!

Gostei daquela sua forma um tanto quanto íntima de ter me interpelado, como também de tê-la visto parar com aquela sua insistência em estar sempre cantarolando aquela mesma estrofe daquela música, ou mesmo tentar "caetanear" aqueles versos. E sem baixar os olhos daquela tabela, e nem mesmo direcionar-lhe o olhar, perguntei-lhe então se ela saberia qual o primeiro horário de ônibus para Aracaju, e ela me respondeu que seria às nove horas da manhã do dia seguinte. Confesso, quase caí de costas ao ouvir aquilo. Dissera-me que passaria ali ainda uns cinco ou seis ônibus para aquela cidade oriundos de centros maiores, mas seriam diretos, e que nada nesse mundo os fariam parar pelo caminho. Pediu-me licença para atender aquele telefone que insistentemente tocava dizendo para seu interlocutor que da próxima vez que ele lhe fizesse daqueles gracejos, que “ela iria sair dali imediatamente e iria em Feira ter uma "conversinha" séria com sua mulher." Desligou aquele aparelho sem o bater no gancho dizendo como que para si mesma: “cretino!” E para mim ela disse: “meu ex-professor de física”. Depois se desculpou.

Ainda sofrendo as consequências do susto daquela sua informação, perguntei-lhe também se existia hotel ou alguma pensão naquele lugar, e ela me respondeu que não, que até a pouco tempo existia, mas a mulher do dono fugiu com um hóspede, e seu proprietário de vergonha abandonou tudo aquilo do jeito que estava, e nunca mais pôs os pés naquele lugar. E riu sarcasticamente de tudo aquilo que ela falou. Poderia ter sido mais objetiva somente tendo me respondido que sim ou que não, sem ter que me contar tudo aquilo em um momento tão inapropriado.

Pude comprovar que além de bonita, bem humorada, era também brava. Há pouco, e naquele telefone, esbravejara sem gritar, e sem a mínima mudança em seu semblante com aquele seu ex-professor. Misturava bravura e um gênio brincalhão, pois sem me conhecer, sem ter intimidade comigo, já que não tinha mais que dez minutos que eu ali me encontrava, chamou-me de “mineirinho come-quieto”. Questionei-lhe como sabia de minha origem e assim ela respondeu-me;

- Com esse sotaque...

Agora estava eu ali em num lugar onde não tardaria para a noite chegar, perdido, sem conhecer ninguém, sem ter nem mesmo como sair dali ou mesmo passar a noite. Continuei conversando com aquela garota, algo que já acontecia animadoramente há bem uns quarenta minutos. Na realidade ela deveria ser a mulher mais bela e graciosa daquele lugarejo, ou melhor, não somente daquele povoado, como também das cidades que existissem nas proximidades. E veio de dentro de mim um questionamento: haveriam mais daquelas formosuras por outras cidades nordestinas, ou "aquilo" era mesmo uma produção limitada? Dizer que ela era dotada de um grande senso de humor, uma das maiores virtudes que eu vejo numa pessoa, seria desnecessário, basta relembrar toda a história que me contou para responder-me apenas sobre a existência ou não de dormitórios naquele lugar, para depois finalizar todo aquele seu caso com aquele sorriso irônico e mordaz.

Via-se que era uma mulher de estilo marcante e diferente das demais que deveriam existir naquele lugar. Havia um suave batom em sua boca, e algo também muito básico em torno dos olhos. Trajava simples, porém em estilo moderno. Usava um top preto, e seu shorte jeans era aparentemente duas numerações abaixo de seu verdadeiro manequim, o que fazia parecer sufocar aquelas suas ancas avantajadas, deixando ficar à mostra também um roliço par de pernas douradas por aquele escaldante sol do sertão baiano.

Vestia simplesmente com essas duas peças de roupas, e sua blusa era um tanto curta na região de seu abdómen. Isso deixava aquela região de seu corpo propositadamente mais desvestida, para que assim todo aquele monumento pudesse ser admirado por todos os homens, e invejado por todas as mulheres que por ali passassem . E por mim, lógico. Tinha cabelos castanhos, longos, anelados e encaracolados em suas extremidades. Parecia frequentar salões de beleza assiduamente. Cabelos e olhos de uma mesma cor. Se muito fosse, seriam uns dois dedinhos mais baixa que eu, um belo corpo e um sorriso deslumbrante. Sabia colocar as palavras pausadamente, não tinha dificuldades quando buscava uma palavra menos comum para ilustrar um assunto, sabia falar e sabia ouvir no momento certo, e já àquela altura se dizia enjoada daquele seu namorado morador em uma cidade vizinha, e que queria a todo custo que ela se casasse com ele ainda naquele ano, e coube a ela mesma comentar: - que ele vá querendo...

Ficamos ali conversando e já faziam quase duas horas que ali eu permanecia, e a “confabulação era total” entre nós. Discorríamos, discutíamos, e a cada momento mais o dia ia avançando e mais as portas iam se abrindo para a noite. E eu lá! Muito das vezes a conversa precocemente ia-se debandando para assuntos mais embaraçosos sexualmente, mais liberais e meio que sem censura, e eu óbvio, não poderia me passar por um inocente, casto, e fui deixando com que aquele tipo de conversa fluísse naturalmente. Com certeza absoluta os elogios que lhe dirigia a todo o momento não deveriam ser nenhuma novidade, nem mesmo naquele dia, até mesmo por que, com certeza, todos os termos elogiosos que se dirige a uma bela mulher, deveriam ser-lhes comuns a partir do momento que ela colocasse seus pés na rua. Que o diga aquele seu professor de física. Mesmo assim, eu insistia em elogiar aqueles seus dotes desde sua inteligência e óbvio, aqueles seus atributos, aquela sua cor, e todos aqueles seus monumentais atrativos físicos que muito das vezes desfilavam em minha frente, quando era necessário com que ela se levantasse daquela sua cadeira.

Notava-se claramente que ela também se interessava pelo que eu falava, meus casos, minhas histórias, minhas colocações, mas havia um grande empecilho, um bloqueio, e que a todo momento vinha em minha cabeça. Eu teria que ir embora daquele lugarejo, não poderia me acomodar, teria que seguir viagem, não poderia me dar ao luxo daquela amnésia proposital, caso contrário toda aquela viagem por mim programada anos e anos deixaria de acontecer quanto mais tempo eu ali permanecesse. Com ou sem dinheiro, com ou sem cheques, com ou sem roupas, mesmo se eu não conseguisse mais encontrar aquilo que deixei no ônibus, eu teria que seguir viagem. Além do mais, não poderia desprezar o fato de saber que seu noivo já tinha até lhe empenhando um pedido de casamento, e isso já era um estorvo. Por essas e outras razões, por mais que me atrevesse, o limite para por fim àquele meu entusiasmo estava muito próximo, ou deveria estar! Além do mais, não havia possibilidade de ocorrer algo entre eu e aquele “Lírio do Semiárido”, não teria como, o local nada oferecia, era um mísero lugar e cheio de gente pelas janelas, e tudo que se fizesse ali, toda aquela comunidade tomaria conhecimento imediatamente. Por mais que me atrevesse, não passariam daquelas preliminares, ficaríamos naqueles bate-papos.

Eu teria que arrumar uma forma de sair daquele lugar, do contrário teria que passar a noite toda assentado num banco daquela singela pracinha. E o pior, o dinheiro que eu tinha no bolso era curto. Não tinha mais comigo ali aqueles Cheques de Viagem, mesmo se os tivessem, ali não tinha Banco do Brasil para descontá-los. As localidades mais desenvolvidas tinham ficado para trás, e estavam distantes. As próximas, informaram-me, tinham aquela mesma estrutura, não resolveriam o problema, mesmo se eu tivessem ainda aqueles cheques em mãos.

Às vezes até me dava um branco. Uma acomodação. Um esquecimento. Eu não poderia acostumar com aquela situação. Era certo que a presença daquela garota não estava me deixando encarar a realidade dos fatos, ou seja, eu colocar os meus pés no chão. Mas reconhecia estar gostando daquelas fantasias junto àquela mulher, daqueles devaneios.

A Janaína, belo nome por sinal, assim ela se chamava, morava ali pertinho com os pais, duas irmãs e um irmão, todos mais velhos, excetuando o irmão, e não teria como ela levar um desconhecido para dormir em sua casa, principalmente pelo fato das famílias, sua e de seu namorado, serem amigas de longa data. Além do mais, eu jamais aceitaria tal convite. Esse tipo de procedimento nunca foi do meu feitio.

Ausentei-me então daquele ponto de vendas de passagens por alguns instantes e fui àquela mesma farmácia perto onde provavelmente nada se vendia devido à falta de mercadorias e clientes. Comprei um sal de fruta, embora minha barriga tivesse melhorado, eu ainda me sentia um tanto quanto enjoado com aquela comida do almoço, como também do efeito daquelas cachaças que exageradamente o acompanhou. Quando voltei já encontrei aquela mulher em alvoroço, pois havia desaparecido um determinado valor em dinheiro de seu caixa. Ela dizia aquilo e olhava para mim, e ao mesmo tempo revirava toda aquela gaveta. Naquele momento comecei a imaginar que sérios problemas eu iria enfrentar dali para frente, isso porque eu era uma pessoa que inexplicavelmente tinha parado naquela cidade, um forasteiro, e seria o principal suspeito. Quem em sã consciência acreditaria que uma pessoa que saiu de Minas iria ter a coragem de descer de um ônibus naquele local por causa de uma dor de barriga e ficar perdida em um lugarejo daquele?

Eu não tinha nenhum documento no bolso. Já até havia confidenciado àquela atendente sobre o esquecimento de minha mochila principal naquele ônibus e dito-lhe que todos meus documentos e cheques se encontravam em seu interior. Previa que o sumiço daquele dinheiro ali naquele posto de vendas de passagens poderia me colocar em maus lençóis. Havia probabilidade de estar vindo grossas encrencas pela frente.

Não demorou muito aquela mesma viatura da Polícia Militar parou em frente aquele estabelecimento no momento exato em que aquela atendente tinha saído. Não que aquela garota a acionara, uma tia que soubera do ocorrido arbitrária e precipitadamente comunicou àquela delegacia que dentro daquele estabelecimento tinha um “sujeito cabeludo mal encarado”, e lógico, seria eu o ladrão. Aqueles policiais pediram para que eu apresentasse meus documentos e me mantivesse virado de frente para a parede, e com minhas duas mãos atrás da cabeça. Como apresentar meus documentos se eu não estava de posse deles? Tentava convence-los da razão de eu estar ali naquele momento sem documentos, após me perguntarem o eu fazia naquele local. Depois que lhes respondi, um deles assim falou.

- Conta outra!

Colocaram-me uma algema, me chamaram de “ladrãozinho folgado” e me disseram que no posto policial iriam me fazer confessar. De um deles ouvi:

- Vou enfiar um cabo de vassoura no seu rabo, vamos ver se esse dinheiro não aparece.

Falaram que nem o governador de Minas me tiraria daquela enrascada, e diziam não entender o fato de “eu sair de tão longe para roubar em um lugar de merda daquele”.

- Vai ter carne fresca no xadrez. Disse um deles. E de outro:

- Vai aprender com quantos paus...

E nesse instante, antes mesmo daquele policial acabar de proferir aquela sua fala, ele foi bruscamente interrompido, já que uma voz interferiu vindo daquela única porta:

- O que está acontecendo aí?

E continuou:

- Por que a Invasão de Domicílo?

Era a Janaina.

E já da entrada daquele estabelecimento ela disse para aqueles policiais que todos ali poderiam ser suspeitos, menos eu, chamando aquele policial mais graduado de tenente. Caminhando para o interior daquela loja, apontou para aquela algema e disse como que numa ordem;

- Tira isso dele!

E continuou adentrando por aquele imóvel dando um giro sobre aquela sua mesa e se assentou colocando seus dois cotovelos naquela mesa, e as duas palmas de suas duas mãos apoiando sua testa com ares de quem não estava com muita paciência.

Na realidade, e até mesmo por questão de lógica, teria que ser eu sim o principal suspeito daquele roubo, e vem aquela mulher me isentar de toda aquela culpa? Que não foi eu, óbvio, eu tinha consciência disso, mas como que ela tinha tanta certeza assim, já que ela não me conhecia, a não ser por aqueles parcos momentos em que estivemos ali conversando. E não poderia ser o fato de que muito das vezes, e desde que ali cheguei, que ela sempre saia de dentro daquele recinto para resolver algum problema quando um ou outro ônibus de sua linha chegava me deixando sozinho ali dentro, ou que deixava recados comigo para que, se procurada, que dissesse que ela voltaria em minutos, ou mesmo que pedisse que eu atendesse aquele telefone se ali procurassem por ela, que eu poderia ser visto como inocente, e não ter me apossado daquele dinheiro. Mas felizmente ela mesma atuou como minha testemunha de defesa.

Aqueles policiais se desculparam, e a Janaína então me serviu um copo d’água, já que eu me sentia um tanto quanto acuado e embaraçado naquele momento. Ali, logo após aquele acontecimento, ironicamente falei-lhe que ela tinha mais poder que o governador do meu estado, e ela então perguntou o porquê. Expliquei-lhe a fala daquele policial que me dissera que, “nem o governador do meu estado me tiraria daquela enrascada”. E indaguei-lhe em forma de zombaria:

- Devo ter sido sua primeira causa, não Doutora?

Ela sorriu um tanto que sem graça e me pediu desculpas.

E cortou o assunto falando dos policiais dizendo que aquilo era obra de uma tia solteirona sua, septuagenária frustrada e beata fervorosa. Morava em sua casa, e quando ela, a Janaína, estava ali de férias, era vigiada às 24 horas do dia por aquela velha. Era de natureza azeda e implicante. Há tempos aposentara-se pelos correios e não tinha outra ocupação que não fosse passar o dia lhe mandando ir para a igreja. Que falava de suas roupas dizendo para sua mãe, que é sua sobrinha direta, que ela, a Janaína, gostava de ficar andando com a bunda de fora pela cidade. E concluiu, agora já retornando o assunto para aqueles policiais:

- Há tempos vejo que esse tenente aí anda “ciscando” para meu lado.

E continuou:

- Finjo que não estou entendendo, ou tento uma desfaçatez qualquer. Esse local não cabe um profissional de sua envergadura, o contingente policial daqui não necessita de um tenente. Já chegou até a mim que a razão pela qual ele está sempre nesse lugar sou eu. É o que dizem. Não posso afirmar. Qualquer atrevimento ou ousadia que dele partir em minha direção ele vai ouvir “umas boas.”

Agora a coisa estava se degringolando de vez. Eu sem saber como sair daquele lugar, tendo a companhia de uma mulher que subitamente me interessara demasiadamente, sentido que tudo aquilo ali era recíproco, e eu não conseguia me desgarrar daquele lugar, daquele estabelecimento, daquela jovem. Era sabido que aquele ônibus que saíra de Salvador em direção à capital sergipana já deveria ter se encostado àquela rodoviária e meu irmão ter deduzido que eu chegaria no outro, e o que era pior, eu já ciente da realidade dos fatos, e sabedor que nem mesmo nesse outro ele me veria chegar, e eu sabedor de que aquela minha viagem iria terminar por ali mesmo. Para ele ainda havia uma segunda opção de horário, mas para mim seria o fim de tudo, pois mesmo se eu conseguisse dar continuidade àquela viagem a partir daquele momento no mais ligeiro dos ônibus, creio, eu não conseguiria chegar em tempo hábil, ou seja, antes do horário daquele último ônibus por nós combinado. O desencontro seria inevitável.

Já mais calmo depois daquele episódio dos policiais, fiquei contemplando aquela mulher toda vez que ela abaixava a cabeça para destacar alguma passagem, posto que, a Janaína era mulher para ser admirada e desejada. Conversava naturalmente com todas aquelas pessoas simples que ali se encontravam com uma paciência que lhe era peculiar.

Todos, sem exceção, lhe chamavam pelo próprio nome como se lhe tivessem as maiores das intimidades, e ela os deixavam sentir assim, e ia atendendo a todos um por um pacientemente. Alguns ela os chamavam pelo próprio nome, outros pelo apelido, e assim a Janaína ia vendo crescer-lhe a admiração dos moradores daquela comunidade quase que lhe fazendo reverência. Era conhecida e respeitada no lugarejo. Tinha um carisma imensurável. Respondia pacientemente uma ou outra pergunta mesmo que tivesse que repeti-la milhares de vezes. Ria espontânea e respeitosamente de tudo aquilo, muito das vezes colocando o braço no ombro daquelas pessoas, o que lhes faziam se sentirem íntimos e convictos de sua amizade. Talvez fosse essa sua forma de agir, de proceder, que a fazia querida e respeitada por todos naquele lugar. Era por essa razão que ela demonstrou tanta autoridade junto àqueles policiais dando-lhes até ordem para que me soltassem as algemas. E foi uma ordem! Fez aquilo com propriedade proferindo uma expressão imperativa. Não pediu. Mandou! E convenhamos, não existiria um suspeito maior naquele episódio.

Disse-me que estudava Direito em Governador Valadares. Falou-me que estava ali naquela cidadezinha pelo fato de serem férias de julho, que seus pais ali residiam, e que ela atualmente morava em Feira de Santana em um apartamento adquirido pelo pai, para que ela, suas irmãs e seu irmão, pudessem estudar em boas escolas. Que mesmo depois de ali se formar em Psicologia em uma escola pública, combinou com os pais que continuaria morando no apartamento de Feira para continuar fazendo aquele seu curso de inglês, como também fazer cursinho preparatório para o concurso de Juíza de Direito. Não deixou de dizer, e com muita simplicidade, que seu pai tinha um apartamento no Bairro Pituba, em Salvador, e que praticamente passava o verão lá.

Seu pai tinha ali perto daquele lugarejo uma fazenda onde era produtor rural e principalmente criador de gados e cavalos de raça, e era o lugar onde ela escolhia para passar suas férias. É de se deixar claro que tudo dito de uma forma simples, sem nenhuma ostentação ou mesmo arrogância.

Que completou seu segundo grau quando mal fez dezesseis anos e que já estava findando o curso de Direito. Depois disse-me que saía de Feira de Santana todas as sextas feiras fazendo aquele mesmo percurso que eu havia acabado de completar, e que me deixara exausto. Falou-me que já tinha acostumado com tudo aquilo, e que nem via aquela viagem passar. Dizia-me tomar alguns tipos de remédios e que passava a viagem praticamente toda ela dormindo. Apanhava o ônibus que saía da Rodoviária de Feira de Santana às quatro horas da manhã, e bem a noitinha já entrava para aquele seu hotel na mineira Valadares. Falou-me ainda que quando existia algum tipo de programação que lhe agradava, ia ainda naquelas sextas feiras para as baladas, e muito das vezes assistia às aulas aos sábados o dia inteiro sem ter nenhuma condição física. Mas estava sempre presente. Dizia não justificar sair de tão longe e não assisti-las, e além do mais, sentia-se na obrigação de ser aprovada em todas as matérias. E dizia ser. E com as melhores notas.

Dormia então naquele hotel de sábado para domingo, isso quando não tinha condições físicas para curtir os barzinhos da noite valadarense, e se necessário, emendava tudo aquilo com o horário do ônibus que lhe traria de volta para Feira de Santana já na manhã de domingo. Embarcava naquele mesmo ponto de apoio onde dei início àquela minha viagem.

Assumiu que já tinha ouvido falar de minha cidade, e que naquela faculdade existiam diversas pessoas dizendo ser dali também. Não sabia seus nomes, até mesmo porque eram pessoas bem mais velhas as quais ela não tinha nenhuma ligação. Via-se claramente que sempre que tentava dizer o nome da minha cidade, Inhapim, enrolava em sua pronúncia, e eu tinha que socorrê-la.

Perguntou-me então;

- É coisa de comer?

Disse-lhe ser um pássaro.

Novamente, e sem assunto, comentei ser muito cansativo tudo aquilo, mas ela falou-me que em suas férias aproveitava para recuperar as baterias na fazenda de seus pais, e assim, se espairecer. E complementou dizendo que estar ali naquele ponto de venda de passagens mantendo contato com aquele povo era uma diversão para ela. Que raramente ficava ali naquele lugarejo e que aquele posto foi colocado para seu irmão mais novo trabalhar, e com sua ida também para Feira, sua mãe o assumiu colocando ali um funcionário que coincidentemente naquele dia não comparecera àquele local, razão pela qual ela ali se encontrava. Abriu aquele posto de vendas de passagens naquele dia sem nem mesmo comentar com sua mãe de sua intenção. Falou sobre suas irmãs, e que uma delas morava na Suíça, sem especificar a cidade, e que sua mãe era diretora da escola estadual local. E também psicóloga.

Na realidade aquilo não era uma cidade, e sim um distrito de uma cidadezinha próxima. Dizia que eram os carros de sua família que funcionavam como ambulância naquele lugar e que seu pai incansavelmente era convidado para se candidatar a vereador por aquela vila, ou até mesmo a prefeito pela cidade que originou aquele povoado, Olindina. Que o pai distribuía gratuitamente tijolos, cimentos e telhas para quase que a toda aquela comunidade há tempos, e além de tudo, era compadre de quase que do povo todo daquele lugarejo. A família tinham lojas de materiais de construção nas cidades próximas.

Tínhamos quase a mesma idade, tínhamos também os mesmos gostos musicais, gostávamos das mesmas coisas e falávamos dos mesmos livros que líamos. Falou-me sobre seu namoro, quando começou e porque começou, deixou-se entender que era uma coisa meio que de conveniência, e deixou claro sua total falta de entusiasmo em se casar já. Disse-me que tinha uma vontade enorme de ir embora para fora do país, morar na França ou na Itália, ou numa cidadezinha qualquer da Europa. Aprender um ou outro idioma, voltar para o Brasil, passar num concurso público, e se possível, realizar seu sonho que seria morar na cidade do Rio de Janeiro. E acrescentou no final daquela sua conversa em tom de brincadeira:

- Vamos?

Eu que já tinha me interessado por aquela mulher bem antes dela me contar tudo aquilo, de se mostrar completamente liberal, independente, agora ela me enclausurava completamente, e eu achava tudo aquilo estranho, de vir me encantar por uma mulher a mais de mil quilômetros de distância, numa condição insólita, num lugar onde eu nunca imaginaria que um dia iria colocar os pés, e que o acaso nos colocara frente a frente.

Contei-lhe sobre o incidente na estrada e sobre o caso do macaco dentro do ônibus. Talvez por algum momento eu tenha até me arrependido, pois sobre o tal incidente, ela me fez diversos questionamentos, mas sobre o caso do danado do mico, sobre o meu relacionamento ali com aquele animal dentro de um ônibus lotado, aquela minha convivência, aí sim, ela ouviu atentamente tudo aquilo e não parava de rir. Olhava-me e ficava dando risadas e mais risadas. Eram crises de risos. Pedia-me desculpas por não conseguir parar de rir, mas seu pedido de desculpas era carregado de gracejos. Assumiu querer parar com tudo aquilo, mas dizia também imaginar aquela cena me vendo expulsando aquele macaco do meu colo, ele me mordendo, seu dono sabendo do ocorrido e fingindo dormir, e eu revoltado lá dentro daquele coletivo sem poder fazer nada.

Ria até mesmo chegando às gargalhadas. Depois mudava o foco para o caso da minha dor de barriga, minha intenção de descer pelo caminho e o momento que quase não deu tempo de eu entrar no sanitário daquele boteco naquele distrito. E ela voltava ao caso daquele atrevido animal. E não enjoava. Ficava séria. Depois voltava a rir, e muito das vezes seus clientes ficavam sem entender o que estava acontecendo ali dentro. Na realidade, creio que em minha vida nunca tinha visto pessoa com tanta presença de espírito. Muito das vezes ela ficava séria anotando algo de seu serviço, mas quando olhava para mim, davam risadas que chegavam a arrancar-lhes lágrimas pelos cantos dos olhos. Dizia-me que teria que parar com aquilo tudo, que não estava conseguindo, e que aqueles casos lhes faziam chorar de tanto rir.

Pediu-me um pouco de paciência para esperar-lhe, pois iria em sua casa que era logo ali em frente. Foi e imediatamente voltou nas mãos com um pequeno prato onde uma fatia de torta salgada cobria-lhe toda a extensão. Disse-me que foi lá buscá-la justamente para que eu pudesse “recuperar as minhas forças depois de ser mordido por aquele bicho”, e depois de assim dizer, quase deixou com que aquele prato caísse no chão ao me dizer aquelas palavras. E voltou-lhe aquela crise de risos. Depois pediu-me que experimentasse também aquele suco feito com uma fruta nativa, e proveniente de um pé plantado no fundo do quintal de sua casa, e que me dissera o nome, mas que logo depois eu já o havia esquecido.

Depois o assunto fluiu para outras situações, outros fatos, mas de vez em quando ela me olhava nos olhos e não deixava de dar sonoras gargalhadas. E eu lá preocupado como que faria para sair daquela cidade ou como que me pernoitaria ali, já que a única opção que eu tinha, e que estava ao meu alcance, seria forrar minha toalha naquele banco daquela praça e ali passar a noite. Mas seria uma noite passada em um banco forrado por uma toalha molhada, já que ela me oferecera para tomar um banho em algum momento naquele seu estabelecimento, e eu aceitei. Naquele cômodo tinha um banheiro anexo, tudo rigorosamente limpo, asseado e confortável, e que eu deveria usá-lo para melhor descansar. Primeiro ela me ofereceu, depois insistiu, e que iria em sua casa apanhar toalha e sabonete. Impedi-lhe dizendo-lhe que eu tinha ambos ali comigo. Ela então me questionou pelo fato de usar a minha toalha e depois ter que guardá-la molhada, mas disse-lhe que de imediato eu não faria aquilo, deixaria com que ela secasse sobre minha mochila, e fazendo-lhe troça, falei-lhe que eu tinha tempo, pois não tinha a menor noção de que horas e que dia eu sairia daquele lugar, e que se ela prometesse terminar aquele seu namoro, eu não mais viajaria, e me comprometeria a morar naquele local pelo resto da minha vida, desde que ela se casasse comigo. E ela então me respondeu:

- Com você eu caso!

De repente aquela mulher surgiu em minha vida. Se fosse uma mulher idosa diria que os deuses me mandaram outra mãe em pleno sertão baiano, mas não, o que se tinha em minha frente não era precisamente uma segunda mãe. Era uma jovem. Intrigava-me o fato de o dia estar indo embora, à noite se avizinhando, e ela não ter a mínima preocupação com aquela situação de eu estar me sentindo perdido, meio que desamparado, sendo que da última vez quando lhe disse estar preocupado com tudo aquilo, peremptoriamente ela me respondeu:

- Fique tranquilo!

Como ficar tranquilo mulher, pensava comigo. Era fácil para ela. Mandar-me ficar tranquilo num lugar onde eu não tinha a mínima noção de onde estava, o que me esperava, e o que viria acontecer dali pra frente.

Parecia que minha presença ali também era de sua total satisfação. Inclusive em alguns daqueles momentos os quais lhe contei o caso de minha dor de barriga logo após o caso do mico, num momento de lucidez, onde ela conseguia por alguns momentos parar de rir, ela disse-me assim:

- Bendita aquela sua dor de barriga.

Ouvi aquilo e me senti um tanto feliz, já que ela fazia-me entender que foi aquela tal dor que me fazia estar presente ali naquele momento. Estava existindo entre nós dois um entrosamento, uma harmonia, uma perfeita sintonia. Agora o que me entristecia e com certeza a ela também, era que tudo aquilo ali seria passageiro, teria um fim. Eu teria que ir, e ela teria que ficar. Essa constatação nos aborreciam, nos chateavam, embora ignorássemos essa certeza e evitássemos inclusive dela nos lembrarmos.

Em um dado momento, do nada e inesperadamente houve um momento crucial entre nós. Decisivo. Imperioso. Talvez, quem sabe, até mesmo pela aproximação do momento daquele comércio ter que encerrar suas atividades naquele dia fechando suas portas. Ela simplesmente apresentou uma solução para aquela minha perturbação, aquele meu desassossego, que seria aonde passar a noite naquela cidade. E decidiu de maneira corajosa, surpreendente e dita de uma maneira firme, sutil, própria daquela mulher, como que resolvendo de vez toda aquela minha aflição, e que me surpreendeu. E tudo dito depois de lhe dizer novamente sobre minha preocupação e desconforto naquele instante de não saber aonde passar aquela noite, e ela naturalmente respondeu-me que não teria problema, e que já havia me dito por várias vezes para eu ficar tranquilo, não me preocupar, pois eu iria passar a noite naquele mesmo local onde eu me encontrava. Olhei meio que sem entender em sua direção, e ela naturalmente complementou aquelas suas palavras dizendo-me um tanto que imperativamente:

- Sim, aqui!

E continuou;

- E vamos passá-la juntos!

Óbvio que ela deve ter reparado que eu ficara totalmente surpreso, meio que pasmado, desconcertado com aquela suas palavras, com aquela sua decisão. Assustei-me sim com tudo aquilo. Com sua coragem, com seu destemor, também com aquela sua astúcia e a simplicidade com que resolveria aquele problema. Tinha um ar ingênuo, inocente ao me dizer aquilo, mas não pouco malicioso.

Perguntei-lhe então como que ela faria para dormir fora de casa. Ela então me respondeu que esse tipo de satisfação ela teria que dar somente se sua mãe estivesse em casa, já que seu pai em dias de semana dorme é na fazenda. Ainda afirmou que, por precaução, traria as duas chaves daquela porta “para que não tivessem surpresas desagradáveis”, e que não poderíamos acordar muito depois das sete horas, pois o Júlio, aquele funcionário da loja, chegava para trabalhar às oito horas da manhã. E que quando ela arreasse aquela porta, eu permaneceria dentro daquela casa onde eu já teria todo conforto necessário, pois havia o que se comer e beber na geladeira e naqueles armários. E que eu poderia até mesmo ligar a TV lá do quarto, enquanto estivesse me esperando.

Parecia tudo muito simples para aquela mulher. Há pouco me livrara de uma grande enrascada nas garras daqueles policiais, sem se dar ao luxo de ouvir deles um simples questionamento sequer, sendo até muito imperiosa naquelas suas palavras. Agora resolve todo aquele imbróglio pronunciando menos que meia dúzia de palavras, e falando e escrevendo ao mesmo tempo.

Não poderia perder a oportunidade de dizer-lhe que sua companhia, nem que fosse por uma noite apenas, seria o que de melhor poderia acontecer naquelas minhas férias. E eu não estava mentindo, pensava assim mesmo. Ela simplesmente olhou-me por algum momento, e deu um breve sorriso. Daqueles sorrisos que apenas se comprimem os lábios. Nele parecia expressar alguma carência, receios, sei lá, quem sabe, ou alguma contestação de se ter apenas aquela noite pela frente. E dali continuou naquelas suas anotações.

Um tanto pensativa, voltou a si, e foi me dizendo que aquela porta ao lado e que se encontrava trancado era a entrada de uma casa muito boa existente nos fundos, e que na sua suite existia um belo sofá novo e confortável, e que se transformava numa cama de casal não muito larga, mas que caberíamos confortavelmente nele. Na realidade aquele posto de vendas de passagens funcionava como um pontro de comércio na frente daquela residência. Aquele sofá foi adquirido recentemente, segundo ela, fabricado especialmente a seu pedido, e que seria levado para seu apartamento em Feira de Santana quando para lá ela retornasse no segundo semestre.

Ela ainda me disse que gerenciava uma cooperativa da família em Feira, assim como também uma lanchonete que se localizava na rodoviária daquela cidade. Aproveitei para dizer-lhe que foi o leite daquela sua lanchonete que me ajudara trazer aquela minha dor de barriga, e ela me respondeu que não gostava de frequentar aquele ambiente da rodoviária, e que ali ela passava apenas uma vez ao dia, resolvia rapidamente seus problemas, direcionava e delegava ordens aos seu gerentes, e que passava a maioria de suas horas mesmo era em uma sala daquela cooperativa onde tinha seu escritório.

Sobre passarmos a noite naquele lugar onde estávamos, falei-lhe como que numa chacota, e porque não, até mesmo para expressar ciúmes, que agora eu sabia onde ela tinha seus encontros amorosos e secretos com seu namorado, e ela me respondeu que não, que não se fazia sexo em seu relacionamento, pois ele insistia em se manter casto, virgem, até o dia de seu casamento. Ela disse-me aquilo com tanta naturalidade sem se notar uma gota sequer de ironia em suas palavras. Para depois emendar tudo aquilo dizendo: - Ele né!

Disse-me ainda que quando saísse de casa a noite com sua bolsa, que ali se encontrariam alguns lençóis de “nossa cama”. Estava se tornando tudo muito cúmplice, tudo muito natural, tudo muito íntimo entre nós. Que eu não me preocupasse com nada daquilo, pois ela saberia como fazer. Como não poderia deixar de ser, já que bom humor era o que ela tinha em demasia, falou-me ainda que nossos travesseiros seriam nossos próprios braços e cotovelos, pois aqueles que ali tinham, ela os levou para sua casa, e não teria como ela fazer-lhes caber em sua bolsa de volta, e ela não queria chamar a atenção atravessando aquela rua nove horas da noite com uma bolsa tão grande.

Agora era eu que me encorajara dizendo-lhe, sem ser interrompido um instante sequer, que na realidade, e para ser sincero, já estava até esquecendo-me de viagem, de ônibus, de documentos, de Nordeste, de tudo aquilo que existisse. Depois, falando comigo mesmo, ou até mesmo divagando, imaginando, num desvario absoluto, que eu passaria ali todos os meus dias da vida junto a ela.

Vi-lhe sentir-se um tanto quanto perturbada, emocionada, mesmo sabendo da firmeza daquela mulher. Ela não me disse nada disse. Também nada perguntou. Somente postou-me os olhos com afabilidade. Como que voltando a si, depois de um momento imóvel e pensativa, tornou-se a atender aquelas pessoas. Já desde o final do episódio do sumiço daquele dinheiro, e digamos assim, por ordem dela, eu já me encontrava assentado num banquinho redondo do lado daquele móvel onde ela ficava assentada numa cadeira de um acolchoado simples atendendo naquele stand de vendas de passagens regionais.

De uma hora para outra notei também que ela ficara mais séria, pensativa, e preferia o silêncio, como que querendo aproveitar mais aqueles momentos que teve a sua hora para começar, e já sabíamos, teria também a sua hora para terminar.

Não tardou muito encostou um caminhão tanque de aço inoxidável em frente daquela loja e dele desceu uma elegante senhora que a Janaína disse-me ser sua mãe. Já do outro lado do motorista desceu um rapaz. Senti claramente sua decepção, seu desapontamento ao me dizer-me:

- Meu namorado.

Sua mãe chegou da cidade de Feira de Santana, e numa viagem antecipada do dia seguinte, acompanhada nada menos do que do namorado da Janaína. Namorado esse que, como regra, e assim ela dizia, ela só o encontrava nos finais de semana. A mãe foi levada por um motorista da família àquela cidade naquela manhã, e retornara de carona com ele naquele mesmo dia, posto que, sabedor pela “Jana,” que a sogra se encontraria em Feira de Santana naquele dia, e com intenção de poder ver sua namorada num dia incomum, ele mesmo se encarregou de levar um daqueles caminhões de leite da firma de seu pai à cooperativa do pai de sua namorada naquela cidade, já com o intuito de na volta, e como um favor, e sem mesmo avisá-la, passar no apartamento da família da Janaína naquela cidade e dar carona de volta à sogra, mesmo sabedor que ela já viajara com a intenção de só voltar daquela cidade no dia seguinte. Dizia-lhe querer fazer algumas compras. Mas a insistência do futuro genro que ela retornasse com ele naquele dia foi tanta, que ela condicionou a sua volta, desde que ele a esperasse por pelo menos umas três horas naquela tarde para que ela concretizasse suas compras. E ei-los ali agora, namorado e sogra. E eram justamente eles a razão da decepção que se via na cara daquela mulher.

Ela confirmou que nenhum dinheiro havia desaparecido dali quando lhe chegou tal comentário, e sim, ela, o apanhou na noite anterior, já que ela teria que ir ao seu dentista em Feira no outro dia. Não lhe avisou simplesmente porque pensou que aquele comércio iria ficar fechado nesse dia, já que seu funcionário lhe tinha avisado no dia anterior, que não iria trabalhar no dia seguinte. Ainda disse para sua filha que ela, a Janaína, sabia que seu pai não gostava que ela frequentasse aquele lugar. Essa respondeu para aquela que não via razão de se manter aquele comércio fechado com ela à toa dentro de casa, e ainda disse para sua mãe, agora com seu namorado distante e do lado de fora, e fazendo-lhe graça, pilhéria, de que “não era todo dia que ela dava sorte”. Continuando com aquela brincadeira, falou ainda para sua mãe que eu tinha ido lhe buscar “num cavalo alado”, e que iríamos fugir, o que a outra lhe respondeu que eu poderia lhe levar a hora que eu bem quisesse, e ainda completou em tom de brincadeira;

- Só não vá me parar dentro do apartamento em Feira.

Parecia que ambas eram muito amigas, confidentes, adeptas a diálogos e que tinham muita liberdade uma com a outra. Afinal de contas,ambas eram psicólogas. Não sei se por ciúmes, raiva e até revolta em ver aquele sujeito ali em minha frente, mas via-se claramente que ele não se enquadrava no perfil de namorado daquela mulher. Não se tinha dúvida, aquele era um namoro arranjado, forjado entre famílias, em que se tinha certeza que em algum momento a Janaína daria cabo naquilo tudo.

Confesso que preferiria continuar sendo um suspeito, que aqueles policiais ali me açoitassem, que minhas férias fossem para os diabos, mas o que eu não queria era deixar de estar com aquela mulher naquela prometida noite. E o início daquela noite era também o início do momento que eu comecei a perdê-la, já que seu namorado, além de ter chegado inesperadamente, como de praxe, ele só iria embora para a cidade de Olindina no dia seguinte. Dormiria na casa da “Jana”, como aquele “imbecil” a chamava. E ela me deixava claro: - dormia na casa, não comigo!

Chegou o momento de aquele comércio fechar e assim a Janaína, depois de uma fria despedida, encaminhou-se juntamente com sua mãe e aquele sujeito para sua casa, e eu fiquei sem saber o que fazer e para onde ir.

Pouco tempo depois ela voltou me encontrando naquela pracinha. Comunicou-me que decidira levar-me para dormir em sua casa, mesmo depois de uma conversa franca com sua mãe que tentou lhe persuadir e convencer-lhe de que seu namorado ficaria insatisfeito com aquela sua decisão. Insistiu em dizer-me que não estava lá muito preocupada com o que seu namorado iria pensar, e que até disse isso para sua mãe que se coragem eu tivesse, ela enfrentaria tudo aquilo e me colocaria para dormir justamente no mesmo quarto em que ele se hospedava. E ainda completou dizendo que se pudesse, e se não fosse pelo pai, ela me colocaria para dormir nem que fosse junto a ela em sua cama.

Que mulher de fibra! Quanta coragem! Essa era a Janaína!

Que lamentava por tudo aquilo, pelo imprevisto, pelo repentino, e perguntou-me se eu aceitaria aquele desafio de pernoitar em sua casa naquelas condições. Respondi-lhe que de maneira alguma e falei-lhe que quando ainda nos encontrávamos naquele seu comércio, notava-se claramente a desconfiança dele com relação a nós, o que ela respondeu-me que "o problema era dele".

Estava evidente seu descontentamento por aquele seu namorado se encontrar naquele lugarejo e atrapalhado toda aquela nossa programação. Ela então me disse que esperava com que eu negasse em lhe seguir, e quis me entregar as chaves do portão de sua casa mais outras de uma Kombi que se encontrava estacionada na parte dos fundos do quintal de sua residência dizendo-me que ali era um lugar seguro para eu pernoitar, e que todas as roupas de cama necessárias elas já tinham sido providenciadas, e já se encontravam dentro daquele veículo, inclusive “travesseiros”, e deu um sorriso irônico e meio que sem graça ao citar aquele utensílio que momentos antes tinha sido objeto de piada em nossas conversas.

Disse-me ainda que tudo aquilo teria que ser feito de uma forma oculta, camuflada, pois já estava enjoada de tanto ouvir seu namorado lhe perguntar quem era eu, e que não queria vê-lo vigiar-lhe por uma noite inteira naquela casa. E ainda completou, já que aquela era a Janaína:

- Por acaso você tem medo de ser visitado por alguma “assombração” quando naquela kombi estiver dormindo?

Entendi totalmente aquele seu propósito, sua coragem, e senti que não havia nenhuma troça ou zombaria naquelas suas palavras, e vi que seria rigorosamente arriscado aquele seu intento. Agradeci-lhe com certo ardor, e via que ela não se satisfazia com aquelas minhas renúncias, e agora já se sabia que ali estaríamos nos despedindo definitivamente. Recusei aquelas chaves, não lhe queria embaraços. Apertei-lhe suas mãos como numa despedida e sendo-nos insistentemente assistidos da janela de sua casa pelo seu namorado. Disse-lhe estar preocupado com tudo aquilo, o que ela me respondeu secamente que o problema seria dele. Desejou-me sorte e se foi.

Atravessei a rua e fui então onde estavam encostados aqueles cavalos. Era um boteco no melhor estilo “copo sujo”. Preocupava-me novamente o fato de não ter onde pernoitar. Meu dinheiro vivo ali era o suficiente para comer algo, e pagar a passagem do ônibus no outro dia. Podia ainda beber alguma coisa. Nem fome eu tinha, além de ali não se ter também o que comer, além de carne seca, salsicha, sardinha, entre outros enlatados. Estava ali chateado e desiludido por tudo aquilo. Confesso que não estava minimamente preocupado com o que seria de mim no outro dia, sem roupa, sem cheque, sem documentos e sem dinheiro em Aracaju. Veio então em minha lembrança que àquela hora, oito horas da noite, estaria encostando-se àquela Rodoviária de Aracaju minha última e derradeira oportunidade de encontrar meu irmão. Mesmo assim decidi que seguiria viagem no outro dia, mas reconhecia que seria uma coisa totalmente imprevisível. Naquela situação, e estando em Aracaju no dia seguinte, não sabia a quê e nem a quem recorrer. Ligar para casa e pedir para fazerem algum tipo de depósito pra mim, eu não tinha documentos para resgatá-lo no banco. Não adiantava. Mas seguiria em frente. Tomei então uma decisão importante. Resolvi que cada problema deveria ser resolvido cada qual em seu momento adequado, e que, a prioridade ali agora era saber onde passar aquela noite, já que tudo tinha voltado à estaca zero.

Nisso encostou um caminhão desses que transportam animais. Pude notar que transportavam cavalos. Entraram três rapazes, me desejaram um boa noite, respondi-lhes o mesmo, e foi pedida uma dose de cachaça para cada um deles. Ofereceram-me, agradeci-lhes e neguei. Nenhum tinha mais que 23, 24 anos. Beberam-na e pediram uma cerveja. Ofereceram-me também, e repeti aquele mesmo ritual anterior. Aproximaram de mim e quiseram saber de onde eu era e de onde eu vinha, isso por causa do meu sotaque quando conversava com o proprietário daquele boteco. Expliquei-lhes tudo detalhadamente e até mesmo a razão por me encontrar ali naquele momento. Riram, lógico, não deixava de ser curiosa aquela minha história. Em princípio não acreditaram no que lhes contei e que a principal causa de ali eu me encontrar tivesse sido uma disenteria brava.

Com seus copos em mãos, os três foram até a porta daquele estabelecimento. Um deles apontou o dedo para uma imponente casa de um muro alto do outro lado do jardim onde uma escada lateral servia de comunicação aos seus dois pavimentos. Era a casa da Janaína. E disse em voz alta;

- Ali mora a mulher mais bonita da Bahia. O nome dela é Janaína. E arrematou;

- Todos os homens da região sonham passar nem que seja apenas uma noite em sua companhia.

Naquele momento senti em mim o intrigante olhar do dono daquele boteco, já que naquele lugar nada escapulia aos atentos e curiosos olhares daqueles moradores. Nada que ali acontecesse durante o dia, nada que fosse de encontro àquela paz sepulcral daquele acanhado lugar, passaria incólume. Ainda mais estando na cidade um forasteiro, “um cabeludo mal encarado”, e porque não, o conquistador da mulher mais cobiçada da região, e que inclusive ocasionou uma ocorrência policial, consequência de um tenente enciumado. Obviamente em nenhum momento olhei para o lado daquele proprietário, simplesmente dissimulei. Ele também.

Eu olhava também para aquele lugar, para aquela mesma casa, já que eu me encontrava naquele momento também do lado de fora daquele boteco, e prestava atenção naquela conversa. Dali, e daquele lugar, via-se as copas de várias árvores do lado de dentro daquele imenso muro que circundava toda aquela mansão, entre elas mangueiras, cajueiros, goiabeiras e uma quantidade maior de coqueiros. Ali deveria ser sua garagem. Eu sabia que ali debaixo daquelas árvores tinha uma Kombi estacionada e devidamente arrumada com lençóis e travesseiros, e que se decepcionariam por acharem que seriam testemunhas de uma noite voluptuosa. Ali, entre nós, só eu sabia disso. Só eu! Eu e a "Jana".

Voltaram para o interior daquele bar. Não os acompanhei naquele momento.

Fiquei ali do lado de fora observando aquela casa, aquele portão, aquele arvoredo novamente, e meio que absorto. Repassei então alguns daqueles momentos que vivi junto àquela mulher. Relembrei-me então do que disse aquele rapaz ainda há pouco; que “todos os homens da região sonham em passar nem que seja uma noite com ela.” E eu insistia em continuar olhando naquela direção. E novamente veio a imagem daquela perua devidamente preparada à minha espera, como também a espera daquela “assombração” que apareceria para mim na madrugada daquela noite.

Virei as costas e fiz o mesmo que eles. Voltei para dentro daquele boteco.

Lá dentro ouvi-lhes dizer para aquele comerciante que estavam transportando cavalos de raça. E que eram éguas campolinas. Um deles ainda disse;

- Ali em cima tem animal que vale muito mais que um carro zero.

Depois se voltaram para mim;

Como já sabiam para onde eu ia, como também que eu não tinha onde passar aquela noite, e principalmente estarem cientes que a cabine daquele caminhão estava lotada, falaram-me em tom de brincadeira que me levariam, desde que eu fosse junto àquelas éguas lá em cima.

Rimos.

Nisso aquele mais falante, autor daquela “pérola” sobre aquela garota, e que era o motorista daquele caminhão, virou-se em minha direção, e sem nenhuma intenção em humilhar-me, disse-me:

- Sujeito, você não tem onde passar a noite, aqui não tem hotel, não tem pensão, não tem nenhum tipo de dormitório. Você terá que passar a noite em pé junto a algum poste, ou então dormir perigosamente num banco daquela praça, pois ninguém num lugar desse vai lhe oferecer pousada.

E continuou:

- Porque então não passar algumas horas junto àqueles animais lá em cima, já que temos uma baia vazia? E concluiu:

- É sério!

Daí continuou:

- Você não terá contato direto com nenhum daqueles animais, pois cada qual está em uma baia. Forraremos lá onde você vai ficar com uma lona limpa e colocaremos papelões nas laterais, assim você não terá nenhuma comunicação com eles e com a palha de arroz que existe ali para protegê-los. Terá uma noite melhor e mais segura que ficar nessa cidade. Mesmo que você chegando lá, tenha que ficar naquela rodoviária, mas lá é mais cômodo, mais seguro. E além do mais, e o mais importante, daqui no máximo três horas estaremos entrando em Aracaju e o deixaremos na porta da rodoviária. Se precisar, lhe repasso “algum” pra vc. pagar um hotelizinho.

- Disse-lhe não precisar daquele dinheiro, agradeci-lhe, e complementei tudo aquilo dizendo que para aquilo eu ainda tinha dinheiro.

Convite feito, convite aceito. E fui eu lá fazer companhia àquelas éguas e rumo a capital sergipana. Disseram-me ainda para que eu não me assustasse se em algum momento um ou outro animal daquele relinchasse, ou coisa parecida. Aquele engraçadinho ainda falou:

- Não vá se atrever em meter a cara com as minhas éguas, heim!

- Eu ri.

Já me encontrava agora naqueles “meus novos aposentos” e estava ciente de que aquele sujeito sabia que eu tinha ouvido aquele seu comentário sobre a Janaína naquele momento do lado de fora daquele boteco. Ele falara aquilo com propriedade, já que era também criador, ou filho de criador de cavalos de raça, e deveria conhecer bem o pai daquela garota, e lógico, ela, e quem sabe, no mínimo, já te-la visto algumas vezes naquela casa ou na fazenda de seus pais.

Agora ele já sentado e pronto para arrancar aquele veículo, arrumou um jeito de enfiar sua cabeça para o lado de fora da janela daquele caminhão, e gritou lá de baixo numa tonalidade mais alta, e em minha direção;

- Essa Égua Campolina marrom aí se chama Janaína. É uma homenagem a ela. Finja que ela seja a original, a homenageada, e que estará passando essa noite em sua companhia. Boa sorte!

A mim só coube rir. Só rir. Riu-se todo mundo.

Precisamente três horas depois estava eu descendo daquele caminhão e entrando no interior daquela rodoviária. Agradeci-lhes imensamente e lá se foram àqueles jovens, sem antes um deles insistir com que eu pernoitasse em sua casa.

Enfim me encontrava dentro da Rodoviária de Aracaju. De uma forma ou de outra, cedo ou tarde, estava eu ali agora. Parecia que o grau de dificuldade para se chegar àquele lugar era o mesmo que alpinistas tinham para se chegar ao topo do Monte Everest. Disse a mim mesmo – Que Aracaju difícil!

Deus está mesmo em todos os lugares. Aliás, nunca tive dúvida, razão pela qual sempre acreditei, tanto que, tal qual Cristo quando nasceu, eu tive também a companhia de animais dormindo junto a mim naquela noite, e os três Reis Magos dos tempos modernos seguiram naquele caminhão. E Deus estava ali agora ao meu lado. E queira ou não, não passei uma noite com a Janaína, mas algumas horas, mesmo que não tenha sido com a original.

Ao sair do banheiro fui chamado pelo meu nome. Era o meu irmão ali mais de três horas depois do combinado. Ele me disse que achou que eu teria desistido da viagem, posto que, ele compareceu àquela rodoviária naqueles dois horários acordados, e não me encontrou. Por descarrego de consciência, e em último caso, resolveu que próximo das onze horas compareceria ali novamente, já que tinha previsão da chegada de um ônibus vindo de Belo Horizonte naquele horário, e mais uma vez não me viu descendo de ônibus algum. Concluiu aquela conversa dizendo-me que naquele momento ele já estava a caminho daquele seu hotel.

Falei-lhe sobre a mochila. Fomos então até o guichê daquela empresa de ônibus. Lá estava ela em um canto daqueles. Sobre ela um guarda-chuva, e ao lado uma gaiola com um pássaro amuado, que parecia ser um Trinca Ferro. Com meus documentos que lá dentro se encontravam, provei-lhes ser aquela bolsa de minha propriedade, e a apanhei de volta. Documentos, dinheiro, tudo, tudo, continuavam ali dentro "imexíveis". Disse ao responsável por aquele setor não serem meus os outros objetos ali existentes, depois de questionado por ele.

Seguimos então para aquele hotel onde lá encontrei o César e o Tarcísio, aqueles dois amigos nossos que viajariam conosco. Bebiam cerveja, e já pareciam bastante alcoolizados. Serviram-me então um copo daquela bebida. E depois mais um, mais um, mais um e outros mais. Contei-lhes detalhadamente sobre o ocorrido. Assim que terminei toda aquela minha narrativa mantendo-os o tempo todo interessadíssimos naquele desfecho, meu irmão voltou novamente da geladeira trazendo mais uma cerveja aberta. E aquela já era a décima oitava cerveja da noite.

Depois de ouvirem aquele meu relato, eles simplesmente me chamaram de mentiroso. E às gargalhadas, “mortos de tontos”, me perguntaram se eu achava que eles tinham caras de otários.

Nem insisti. Ninguém acreditaria em todas aquelas histórias mesmo...

Renato Sturzenecker
Enviado por Renato Sturzenecker em 28/05/2022
Reeditado em 20/09/2023
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