ESMOLA NO FAROL

Eram quase sete da noite quando o semáforo fechou pela terceira vez naquele curto espaço a ser percorrido, da metade do quarteirão até o cruzamento daquela avenida. Significava mais alguns vários minutos até que o motorista conseguisse vencer o maldito semáforo e ganhar a liberdade do pós cruzamento. O trânsito, como sempre naquele horário e naquela avenida, estava infernal e vencer aquele semáforo, era no mínimo um suplÍcio diário. O cenário que se formava todos os dias favorecia o aparecimento de pedintes, limpadores de para-brisas, vendedores ambulantes e tudo mais. A lentidão do tráfego e o semáforo lento em seus abre-e-fecha, contribuíam e muito para essas pessoas exercerem seu “oficio” diário, tentando angariar trocados, vender chocolates ou qualquer outra coisa naquele cruzamento. O motorista, cansado pelo dia de trabalho só pensava em conseguir cruzar a avenida e sair daquele engarrafamento para chegar em casa.

O pedinte, como muitos que ele via todos os dias ali naquele cruzamento, sentado na beira de uma porta de comércio já fechado, chamou a atenção. Todos ali, rodeando os carros parados no cruzamento, em meio ao transito, e só aquele ali, sentado sem pedir nada. O semáforo demorava a dar sinal verde. Havia ainda uns três ou quatro carros à frente do motorista, o que seguramente faria com que ele ainda tivesse que esperar mais uns dois ou três ciclos daqueles semáforos para atravessar o cruzamento. Então, o rosto apoiado em uma das mãos, mesmo pelo vidro fechado do carro, conseguia ver o pedinte ali. Passou, então, a observá-lo com mais cuidado.

A figura sentada claramente morava na rua. Barba e cabelos longuíssimos – cabelos que inclusive estava enrolados em pequenos tufos sebentos devido à falta de agua e sabão de há muito – eram cobertos por um chapéu amarfanhado e roto. Os olhos baços pareciam não enxergar direito, pois olhavam fixos sempre para o mesmo ponto à frente, meio catatônicos. Vestia andrajos, o que parecia ser uma camisa velha e suja, um paletó puído por cima, e um sobretudo bastante gasto e descosturado nas juntas dos ombros, por cima de tudo. As calças, sujas e rasgadas, ele usava dobradas nas barras, expondo as canelas contaminadas talvez por alguma enfermidade de pele. Os pés calçados por sapatos velhos, de modelos diferentes e furados nas pontas, mostravam as unhas pretas e curvadas para baixo devido ao tamanho. Tinha ainda uma espécie de saco de pano encardido amarrado com pedaços de cordões de vários tipos, atravessado nas costas por um dos ombros. Na mão esquerda um cajado – acho que era um cabo de vassoura – e na mão direita, um cordão um pouco mais grosso que na outra ponta estava atado a uma coleira e consequentemente a um cachorro. O cachorro era obviamente um vira-lata. Desses típicos que acompanham os mendigos e catadores de sucata pelas ruas. Branco com manchas pretas pelo corpo e uma maior que circulava um dos olhos, rabo curvado para cima, enfim, um perfeito vira-lata. E tudo isso o motorista do carro reparou em alguns segundos de observação. E foi num segundo, entre a observação e a reflexão, que o homem então se levanta. O motorista tinha visto o cachorro, que estava sentado ao lado do homem, levantar-se também, olhar para um lado e para o outro, para o homem, virar-se de costas para o trânsito e colocar suas duas patas na perna do homem. Viu que abanou um pouco o rabo e então viu o homem hesitar e se em seguida se levantar com alguma dificuldade. Observou então que ele caminhou pela calçada até onde estava o primeiro carro parado no semáforo, levou a mão à cabeça e tirou o chapéu puído da cabeça e, enquanto caminhava à beira da calçada, estendia o chapéu aos motoristas dos carros da frente, mendigando uma esmola. Caminhava lentamente, arrastando os pés, com o olhar baço e uma expressão hipnotizada. Às vezes era atendido, a maioria das vezes não. O motorista então, observara isso umas duas vezes até que compadeceu-se. Enfiou a mão num dos bolsos da calça a procura de uma moeda que fosse e iria atender ao pedido do pedinte. Foi quando, de maneira até inesperada, o semáforo ficou verde. Os carros à frente dele começaram a andar – já era a terceira vez que o sinal fechava e ele não atravessava - e ele viu que iria conseguir vencer o cruzamento daquela vez. Sua atenção, então, se voltou para o trânsito, o semáforo e o cruzamento a serem vencidos e o mendigo e o cachorro foram esquecidos imediatamente. O transito fluiu, o motorista venceu o cruzamento, e o mendigo e seu cachorro, que pararam de andar assim que os carros começaram a passar por eles, ficaram para trás.

O trânsito começou a fluir de novo. Ele não contava mais quantas vezes isso tinha acontecido nos últimos ciclos. Já tinha aprendido o que significavam aquelas luzes, suas cores e o que fazer naquele lugar com essas informações. Desde que adotara aquele ser para auxilia-lo em sua tarefa, sua situação tinha melhorado bastante. Mas aquele dia tinha sido longo e estava bastante cansado. Tomado de fadiga e uma irritação repentina, decidiu ir embora. Retomaria tudo no dia seguinte.

O homem estava sentado na porta do comércio fechado, em meio à sombra da marquise. Na rua, o trânsito ora fluindo, ora não. Aproveitando-se da posição do homem, o cachorro sobe em colo e põe a boca próxima à orelha. Com uma voz modificada, comanda: “modelo alfa cinco cinco zero. Atenção. modo encerrar função. Iniciar destino programado. Finalizar ciclo”. Dizendo isso, desceu do colo do homem, que imediatamente se levanta, os olhos baços iluminam-se por um instante e a boca abre-se, emitindo um som metálico: “alfa cinco cinco zero, confirmar comando. Iniciando sequência.”. Então o homem se vira, e segurando o cajado-cabo-de-vassoura e a guia do cão, começam a caminhar. O cão, caminhando à frente, olha para trás e quase inaudível, resmunga: “...e ande logo! Da próxima vou pedir um modelo mais rápido! Vamos!”