Futilidades essenciais

Eis uma jovem com um farto e apetitoso pedaço de bolo, sentada em uma cadeira no canto da sala próxima a janela. É intrigante como mantinha um ritual, era sempre um bocado e depois um sorriso.

Ela não mais vê. Agora parece-lhe que o canto dos passarinhos, o barulho das gotas de chuva no telhado, a textura e a fragilidade das pétalas das flores do jardim, são muito mais exuberantes e gloriosos.

Outrora vira o amor usando suas belas e reluzentes preciosidades azuis, hoje não. Hoje ela pode ouvir, e melhor ainda, sentir esse tão magnífico sentimento materializado.

Antes era tão descuidada, mas agora percebe quão deliciosos são os fragmentos de chocolate da cobertura do bolo de cenoura que não tiveram a capacidade de se dissolver, e quão suave é o perfume da “dama- da- noite” em meio as diferentes essências exaladas ao entardecer. Pelo menos hoje ela esquece que está vestindo roupas feitas de seda engomadas uma a uma, e que acabou de sair do cabeleireiro, para receber o carinho da súbita garoa que rega a grama nos dias de verão enquanto banha a sua face.

Eis que depois de tanto sofrimento, ela sabe o quanto nós seres humanos covardes nos escondemos da vida atrás de nossos problemas ao invés de enfrentá-los, e ela é feliz porque já não o faz mais.

Ela não mais vê, mas foi aí que ela aprendeu que muito mais do que aquilo que nossos olhos podem contemplar, e sim, tudo aquilo que consegue tocar a nossa alma de alguma maneira, é o que chamamos ingenuamente de vida.

Mesmo não vendo, ela pode ver que o limite da sua vida e da sua felicidade, será ela mesma quem vai impor, e apesar de suas preciosidades azuis não mais lhe servirem, elas ainda continuam lá, a mostra, porque elas nada mais são do que o simples complemento da beleza refletida pela felicidade de sua alma.

E comendo o último pedaço, lembra como é delicioso o fragmento de chocolate da cobertura do bolo de cenoura que não teve a capacidade de se dissolver, e sorri.