Memórias de uma candidata à santa

Memórias de uma candidata à santa.

(10º lugar no Prata da Casa `97 - Petrobras)

- Às 8:30 a porta do armário foi aberta. A claridade repentina ofuscou-me totalmente. Duas mãos calejadas contendo unhas sujas, me tocaram. Senti o bafo de conhaque barato. Também senti cócegas, porem mantive minha dignidade e não dei nem um rápido sorriso.

- Fui colocada sob uma axila fedorenta. O cheiro do desodorante era pior que o do suor. Em 2 minutos estava instalada no banco traseiro do velho chevette. Pelo menos não teria de enfrentar aquele ônibus que fazia o trajeto Mauá-Caxias.

- Na 1a. curva fechada, fui ao solo. Não pude voltar ao banco. A cada nova curva, tinha a nítida impressão de estar me descosturando.

- Após uns 15 minutos, paramos. Fui retirada do carro. Deparei com um enorme grupo de homens me olhando com cobiça. Confesso que cheguei a sentir arrepios por todo o corpo.Fui apalpada por alguns e beijada por outros. Finalmente, após algumas rusgas, as equipes foram separadas e o juiz (imaginem só - conseguiram um) ordenou o início da conturbada peleja. Estavam em disputa, duas caixas de cerveja !

- Daquele bando de peladeiros, apenas uns 4 ou 5 sabiam me tratar com relativo carinho.O resto, inclusive meu dono Alfredo, me bicavam a todo o momento, sem nenhuma cerimônia. Só dele, contei 26 bicos. Suportei tudo heroicamente sem gemer.

- Quando "Kifu" (adorei seus pés marrons) foi derrubado violentamente dentro da área Aos 44 minutos do segundo tempo, o juiz (já era outro) marcou o indiscutível penalty, que daria a chance do empate. Neste momento, "Lula" me isolou por sobre o muro lateral. Rolei através das urtigas, bati no teto do Chevette e só parei na lama, no fundo do pasto. Fiquei tonta. Levei um susto quando vi uma vaca de pernas tortas, mastigando capim e olhando-me com desprezo, sem perceber (ainda bem) que eu era feita de material que um dia pertencera a parente seu. Alfredo veio me recolher com um largo sorriso estampado na face.

- À medida que nos aproximávamos do campo, eu ouvia os elogios feitos à genitora do juiz. Fui colocada na marca fatal (na verdade, uma cova rasa). Só então, descobri qual o motivo do largo sorriso de Alfredo. Ele iria bater o polêmico penalty. Que azar enorme o meu! Seria o vigésimo sétimo bico dele sobre meu corpo já sofrido.

- E foi assim que cheguei aqui, São Pedro. Quando a ponta da surrada chuteira me tocou com violência, explodi bravamente sem um gemido sequer. Ainda consegui ouvir as boas gargalhadas dos torcedores e sentir a decepção estampada no rosto molhado e vermelho do meu algoz, ao ver que não tive forças para me deslocar mais de dois metros ...

- Se o Papa souber disso, com certeza vai canoniza-la, minha filha. Pode entrar, sofrida.

Haroldo
Enviado por Haroldo em 27/11/2005
Código do texto: T77282