Como Dividir uma Fortuna

Não sei por quanto tempo terei que esperar aqui. Ela marcou comigo exatamente nessa esquina onde me encontro agora. Se o leitor pudesse estar ao meu lado nesse momento ele veria a cena. Parece que estão acabando com as praças da nossa cidade. Para onde quer que eu olhe só vejo prédios, automóveis e bicicletas. Ainda bem que o povo está aderindo à nova onda de largar um pouco o carro na garagem e economizar combustível. As bicicletas passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Tive que andar mais de duzentos metros até encontrar um local um pouco mais arborizado. Não é bem uma praça, mas uma extensão gramada entre dois conjuntos de casas que a prefeitura pretende transformar em Shopping Center. Ou seja, mais um complexo a roubar nosso espaço verde. Ah! Finalmente Eliana deu o ar de sua graça.

- Mais um pouco e você não me encontraria aqui – eu disse levantando-me do banco de pedra.

Antes de ir ao encontro dela, caminhei uns três metros onde havia uma lixeira e depositei o palito do sorvete que acabara de degustar. Eliana, com um dos pés, bateu levemente na trava da roda que se abriu equilibrando a bike.

- Não vai prendê-la junto às outras? - Eu perguntei.

- Não, é bem rápido o que vamos fazer.

O renque estava transbordante desses veículos de duas rodas que passaram a fazer parte do cenário da cidade nas últimas semanas. Ia de uma ponta à outra do espaço gramado e, por trás dele, presas a uma parede pré moldada, placas amarelas com instruções em português, inglês e espanhol sobre como utilizar o espaço Era um colorido bonito de se admirar. Apenas durante os cerca de cinco minutos em que estivemos ali parados e decidindo o que faríamos em seguida, quatro pessoas passaram por nós atando e desatando as correntes que prendiam seus veículos junto aos demais. O barulho da rua já não era tão ensurdecedor; não havia tantos veículos motorizados, com exceção dos ônibus.

- Quer vir comigo? – Eu perguntei, ainda ao lado da lixeira.

- Não precisa; não há fila no caixa essa hora. Espero-te por aqui.

Atravessei a rua. Não havia mais do que três pessoas à minha frente na fila e logo fiz o saque, colocando, por precaução, o dinheiro no bolso detrás da calça jeans e fechando o zíper. Como a contagem das notas é feita automaticamente e sem erros, não me preocupei e não me atrevi a conferir a soma ali no meio de muitos que enchiam o salão de entrada do banco a espera de seus atendimentos. O sinal luminoso se abriu, atravessei a rua, mas quando, já do outro lado, olhei ao longe não vi Eliana. Sua bicicleta estava no mesmo lugar e na mesma posição em que a deixara. O primeiro pensamento que me veio à mente foi de crítica misturada a uma espécie de raiva e inconformismo. “Como minha irmã é idiota” pensei de imediato. Mas, deixe-me, o leitor, explicar direito nossa situação.

Somos herdeiros de uma fortuna inesperada. Perdemos papai recentemente e nos vimos, ao mesmo tempo órfãos adultos e muito ricos. Só fomos descobrir a existência de um meio irmão no momento em que foi lido o testamento com a divisão dos bens deixados por ele. Não sei por que também ele não incluíra a ex mulher como beneficiaria de sua fortuna. A separação era recente, mas fora uma união rápida e muito conturbada que acabou levando nosso pai de forma que eu poderia considerar prematura.

A primeira mulher, nossa mãe, havia nos abandonado ainda crianças por conta de violências domésticas que não vêm muito ao caso aqui. Na verdade, fomos felizes após essa separação, mas por conta de sua mudança para o estrangeiro, passamos a nos ver menos, embora continuássemos a amá-la do mesmo jeito. Ela não teve culpa, hoje reconhecemos isso. A saudade atroz forçou-a a nos procurar e pedir perdão, mas não tínhamos o que perdoar, ela fez o que qualquer mãe faria, levada pelo sofrimento e depois pela saudade.

Sentei-me no banco de pedra, olhando para todos os lados a ver algum sinal de Eliane. Não passara mais do que alguns segundos e toca o celular. Fiquei ali, olhando para o aparelho e a mensagem de número desconhecido. Após hesitar um pouco acabei atendendo.

- Estou te vendo aí, sentado e com cara de bobo falando no celular. Quer que descreva a roupa que está usando ou não precisa?

Senti que empalidecia, mas procurei manter o controle. Meu primeiro impulso foi desligar, mas liguei o fato ao desaparecimento de Eliane e fiquei ainda mais atônito e nervoso, embora ainda buscando a calma bem dentro de mim. A fala que veio em seguida não durou mais do que 20 segundos. Dei conta do sequestro de minha irmã e de um pedido de resgate imediato junto a uma ameaça de morte. Naquela mesma rua, há duas quadras de onde eu me encontrava estava um distrito policial; ainda trêmulo cheguei a me levantar para me dirigir até lá. Caminhei alguns passos enquanto pensava se esta seria mesmo a atitude certa a tomar. Parei; procurei concatenar os pensamentos. Quem sabe seria um trote? Mas, não. Em virtude da situação de milionários que agora éramos tinha tudo para ser real. E era real, ainda que ninguém tenha se identificado. Continuei a caminhar até o destino que desejava: o posto policial.

Mas não consegui chegar à metade do meu intento. Um Fiat Pálio freou bruscamente ao meu lado, com duas rodas sobre a calçada, quase me impedindo a passagem pelo estreito vão que me sobrara. Diminuí a marcha, o que deu tempo a um sujeito de sair pela porta do carona e encostar-se a mim.

-Não vai a lugar algum. Eu te falei que estava sendo observado. Entre no carro. - Mostrou-me disfarçadamente a cintura e vi, brilhando o cano de uma arma; não tive outra saída senão fazer o que fui obrigado.

O cômodo não era dos mais confortáveis e Eliana não estava amarrada nem amordaçada como é costume de se fazerem com as vítimas sequestradas. Nosso meio irmão tratou-nos com a educação que não é própria dos sequestradores, mas que se aproxima de alguém que tem uma parcela do nosso sangue. Numa ponta da sala estava ele; sem armas, mas armado com um sorriso sardônico e próprio dos que sabem ou julgam que sabem de tudo a nosso respeito. No outro extremo a ex mulher de papai que tramara com o filho esse ato nojento. Meu medo e apreensão sofreram grande queda no instante em que a vi; falei indignado.

- Então é isso. Além de matar nosso pai de desgosto, agora quer destruir-nos também. Diga o que pretende sua vagabunda!

O filho saltou sobre mim, agarrando-me pela camisa e enchendo-me de ameaças. Retruquei, enquanto me vi agarrado, impropérios contra o que sua mãe nos aprontara. A uma ordem dela ele me soltou com um empurrão.

O que era sequestro e ameaças transformou-se em uma série de acordos desonestos que tiraram minha paciência e a calma de Eliana que, afinal concordou e disse:

- Ok. Vamos dar-lhes parte da nossa fortuna com uma condição que, se não for cumprida não vamos sossegar enquanto os três malandrinhos aqui não forem para trás da jaula; o que acham?

O comparsa fez cara de poucos amigos, mas ao querer falar algo foi impedindo pela mulher e aquietou-se na hora.

Como desconheciam o verdadeiro patrimônio do nosso saudoso pai, contentaram com 65 mil dólares, uma propriedade avaliada em não mais do que 50% daquele valor e um dos caminhões da empresa. Sob jura de minha irmã, nunca comentamos sobre o ocorrido, constituímos advogado para a passagem do imóvel e alguns meses mais tardes já nem sequer comentávamos mais sobre esse fato que, por pouco nos tira a tranquilidade.

Nossa vida atual é tranquila e alerta, principalmente contra aproveitadores. A fortuna de papai era incalculável e o que tiraram de nós não fez a menor diferença. Ainda bem!

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 13/06/2023
Reeditado em 13/06/2023
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