Um conto diferente

A fim de contar o que aconteceu na vida de uma família com a qual convivi durante anos a fio, sou forçado a retroceder no tempo, a uma época em que eu mesmo usufruí como eles as vantagens de ser jovem e independente. Não porque me queixo da minha condição atual e sim pelo fato de, nos dias de hoje, certas ideias e costumes não mais fazerem parte do gosto público. Quando a ilusão mostra de fato a sua cara, a existência, que para o jovem grávido de sonhos e esperanças, parece perder o sentido adquire, para o septuagenário, uma roupagem sem igual e ele volta a brincar de viver; mesmo ciente do pouco tempo que tem pela frente, porquanto, se para o jovem a idéia da morte é algo que raramente cruza o caminho dos seus ideais, o velho não faz outra coisa que não pensar nela.

Quando crianças, brincavam, despreocupados e arredios, nos jardins da mansão que os viu crescer. Não havia em suas vidas aquilo que consideramos problemas, posto que tivessem o carinho dos pais, as facilidades materiais de uma vida abastada e a companhia dos seus iguais, em gosto e em voluntariedade.

Tudo começou quando Antunes, o caçula dos dois meninos, foi recusado na escola em que o irmão já estudava. Eduardo, o outro irmão, foi meu companheiro de classe durante todo o segundo grau escolar. O tratamento que recebíamos na época lembra-me perfeitamente, era dos melhores que podiam partir de um corpo docente e ninguém melhor do que eu para constatar isto, dada a minha origem humilde. Nada tinha a ver com a condição privilegiada de Eduardo, mas com a tradição secular da escola. De origem européia, levava a ferro e fogo os seus princípios moralistas e raramente se via envolvida em complicações. Mas, no caso de Antunes, erraram de forma feia e vergonhosa.

Antunes era diferente dos meninos considerados normais pela sociedade. Os pais se deram conta de sua anomalia antes que completasse os dez anos de idade. No curso primário, ficou no disse-me-disse. Os meninos o rejeitavam, as meninas queriam sua companhia e ele, inocente, produto de troças, foi se efeminando. Aos quinze, já era um homossexual completo, se é que se pode dizer assim. Seu corpo adquiria lenta, mas ininterruptamente, todos os traços próprios de uma menina da mesma idade. Foi quando nossa escola se recusou a aceitá-lo. Aí, entramos em cena para que fosse assegurado o direito do rapaz, pois, no bairro, não só eu e o irmão o adorávamos, como quase todos os jovens das redondezas.

A princípio criamos, com a ajuda de alguns pais, um documento que requeria o maior número de assinaturas possível; recolhemos acima de quinhentos nomes. Levamos até a direção da escola e fomos rechaçados antes mesmo que alcançássemos o porta voz da diretoria. Este descaso foi o estopim de uma revolta generalizada.

A época a qual me refiro não viu como nos dias de hoje tantos fatos envolvendo homossexuais capazes de abalar sociedades, tampouco mexer com a rotina de instituições. Soube de casos de homossexuais que puseram fim à própria vida por não terem conseguido o apoio, tampouco a aceitação dos que conviviam com eles. Soube de pais que renegaram o filho, expulsando-o do convívio familiar por ser ele homossexual. Porém, a verdadeira razão de tais violências, ou seja, o preconceito contra a preferência sexual do envolvido, não era conhecida de imediato, só vindo à tona muito tempo depois. As pessoas não se declaravam como nos dias atuais. Era um desvio, uma doença, algo que denegria os conceitos vigentes.

Todavia, que conceitos cultivamos hoje? A devassidão parece ter dominado o meio social ao ponto da naturalidade, atingindo as raias do intolerável. Fala-se de preferências sexuais como se fossem simples sabores ligados a doces ou sorvetes, que agrada a uns e a outros nem tanto. O problema é tão complexo quando seriamente analisado e confunde não apenas os pais, as instituições, mas também os especialistas que tentam lidar com ele. Sua origem é questionável, as causas desconhecidas. Há, contudo, os que, dentro do universo dos anormais, o são do mesmo jeito, conseguindo, porém, passar, para os que convivem com eles, uma imagem convincente de seres imaculados e muitos levam para o túmulo o seu segredo; até deixam mulher e filhos convictos de sua conduta exemplar.

Antunes, porém, não enganava, e nem disso fazia questão. A revolta a qual aludi causou nossa expulsão, minha e do Eduardo, quando íamos pelo último ano, a um semestre da conclusão do curso. Conseguimos, porém, vencer a batalha e vimos, no ano seguinte, Antunes aceito pela escola e, junto com ele outros, que resignados, não tinham mais nenhuma esperança de serem ali admitidos.

Os diferentes caminhos que a vida nos impõe levaram a mim e aos dois irmãos para lugares totalmente distintos, mas, como coincidências existem e encontros inesperados também, uni-me mais uma vez a Eduardo; desta vez como executivo de uma multinacional em São Paulo. Custei muito a reconhecê-lo entre os fornecedores com os quais me reunia. Os quase quinze anos então transcorridos operaram nele incrível mudança. Estava gordo, quase totalmente calvo e tinha na cara uns óculos redondos que lhe davam um aspecto bastante engraçado. Tornara-se empresário muito bem sucedido no ramo eletrônico e assumira a direção de uma das empresas do pai.

– O senhor não mudou muito, Sr. Ednaldo. Parece ter a mesma saúde e disposição da época em que nos conhecemos – falei ao pai de Eduardo, presente também à reunião. Não aparentava mesmo a idade de cinquenta e oito anos que devia ter agora; proporcionalmente, envelhecera menos do que o filho.

– Joguei a metade dos meus problemas nas costas do Eduardo; deve ser essa a razão. E parece estar se saindo muito satisfatoriamente, as empresas nunca prosperaram como agora. Poderá constatar isto pelo tipo de negócio que vamos oferecer a vocês.

Saindo dali, fiz questão de convidá-los para o almoço, em que falaríamos de tudo que excetuasse trabalho. Teríamos muita conversa repleta de recordações dos velhos tempos. Sempre os considerei como minha família, muito fomos unidos, passava mais horas no aconchego daquelas pessoas e no conforto de sua magnífica propriedade do que em minha própria casa e era por eles muito querido.

Tudo ia muito bem, estávamos alegres e descontraídos até o momento em que perguntei como ia passando o Antunes.

– Se não quer estragar o nosso encontro, por favor, não toque neste assunto – foram estas as palavras do pai. Vi que ele se transformara ao proferi-las; por isso, em respeito e pela grande admiração que sempre tivera para com ele, não insisti. Porém, grande era a minha curiosidade. O que teria acontecido a este filho que sempre considerei, a despeito de suas diferenças, pacato e inofensivo?

Consegui ficar a sós com Eduardo por força de assuntos particulares que afastaram por algumas horas o Sr. Edinaldo. Descemos para um bar a frente do prédio em que estávamos, a pretexto de tomarmos um cafezinho. Ouvi, a respeito de Antunes, coisas que deixariam mesmo qualquer pai entristecido.

– Logo que nos afastamos – continuou Eduardo – a vida de meus pais virou uma sucessão de aborrecimentos, tudo por causa do comportamento de Antunes.

– Mas, sempre o considerei um menino inteligente e dócil.

– Inteligente, não há dúvidas. Era, de longe, o melhor aluno da turma até que houve a expulsão.

– Você está querendo dizer que expulsaram também o Antunes? Depois de tudo que fizemos?

– Sim, mas o motivo não foi o mesmo que deflagrou as brigas em que tomamos parte; tudo começou por causa do Junior.

– Quem é Junior?

– O namorado de Antunes. Tudo ia sem problemas enquanto os viam sempre juntos, sentando-se sempre um ao lado do outro. Até sabiam ou desconfiavam, mas sem alarde. Quando passaram, porém, a trocar beijos no escuro do pátio, a direção do colégio foi comunicada e ficou de olho. Receberam advertência por estarem se beijando apaixonadamente no intervalo das aulas, em pleno pátio, na frente de todos.

– E a expulsão, como se deu?

– Você não vai acreditar. Ao entrar no vestiário masculino para verificar a arrumação meia hora antes do início das aulas, quase caiu para trás o inspetor.

– O que ele viu?

– Não imagina? Os dois, em pleno ato sexual em um dos banheiros. Sequer tiveram a preocupação de fechar a porta. Mais do que depressa, comunicou-se a imoralidade. Mamãe ficou vários dias doente e papai não quis mais saber do Antunes em nossa casa.

Não é preciso dizer que a história me deixou profundamente impressionado e sentido com a dor da família. Aquilo fora a gota d’água do comportamento de Antunes. Foram muitas as situações constrangedoras contadas por Eduardo e deve ter sido imensurável o desgaste que elas deixaram. Não consegui, todavia, conhecer os fatos posteriores àqueles acontecimentos, ou seja, não vieram a mim pela boca de Eduardo, mas de outra forma. Sr. Edinaldo descobriu nosso paradeiro ao retornar de seu compromisso e interrompeu naquele ponto nossa conversa. Permanecemos ali durante muitos minutos ainda, palrando agradavelmente sobre diversos assuntos e em seguida nos despedimos.

Passei aqueles dias e os outros refletindo no que ouvira a respeito de Antunes. Como deveria estar sua vida atualmente? Pensava e sentia ao mesmo tempo grande vontade de visitá-lo. Eduardo deixara-me um endereço onde eu poderia encontrar seu irmão. Devia estar morando sozinho, segundo suas suposições; disse já não vê-lo há mais de dois anos dada a falta de tempo e de oportunidade. Antunes também há muito não procurava a família.

Acabei deixando o tempo passar e, somente três anos mais tarde, cruzamos nossos caminhos. Ao sair de um restaurante, deparo com um homem elegantemente vestido, sinalizando para um taxi que se aproximava. Enfrentava o frio da noite dentro de uma jaqueta de couro marrom, deixando à mostra uma camisa de seda branca por dentro de calças grossas na cor bege; era Antunes. Parecia ótimo para a idade, devia ter perto de quarenta anos agora e o que me fez reconhecê-lo rapidamente foram seus trejeitos afeminados, embora muito mais brandos. Não chegamos a conversar, mas estendeu-me um cartão e me fez um convite.

– Ligue para marcar uma visita; quero que conheça Débora – e entrou no carro.

Liguei na semana seguinte e marcamos no domingo. Não era mais o endereço que Eduardo havia me passado. Então Antunes mudara de vida? Teria casado? Seria Débora sua esposa? Cheguei num domingo à tarde. Identifiquei-me na portaria e subi ao segundo andar. Antunes já esperava à porta e me cumprimentou com um sorriso amável.

– Entre sem reparar. Casa que tem criança não para arrumada. Esta é minha filha Débora de quem te falei.

Sentada sobre o tapete, uma criança loura, que não devia passar dos oito anos, se entretinha com várias bonecas em miniatura.

– Que coisa mais linda! – falei em bom tom – e quem é a mamãe desta princezinha?

A menininha olhou-me sem graça e em seguida para Antunes. Mas, este, sem perder a tranquilidade, falou:

– Adotamos Débora desde os quatro aninhos, de um orfanato. Somos sua família de verdade. Ela possui os melhores pais do mundo; não é, meu amor?

A menina sorriu. Neste momento, surge na sala um sujeito que eu nunca vira, mas dele já ouvira falar. Entrou, secando as mãos em uma toalha de rosto. Era moreno, bem alto, tinha cabelos pretos, mais compridos do que o normal e um porte atlético.

– Junior, quero que conheça um grande amigo de família – disse Antunes.

Apertei-lhe a mão e passamos um domingo bastante agradável.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 16/06/2023
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