Quase-lembrança inquietante

─ Você está bonita

O homem segurava o pulso da mulher enquanto com a outra mão acariciava e livrava-lhe a testa dos cabelos.

O semblante da mulher se iluminou com a tênue vitalidade que ainda lhe restava.

─ Viu Karina, o homem disse que eu estou bonita. Faz tempo que ninguém olha pra mim, moço ─ A vozinha emanava do corpo esquálido da mulher derramado sobre uma maca.

Chamada à conversa, a moça circunspecta que a acompanhava adiantou-se, acercando-se da mãe, enquanto seu semblante revelava nitidamente o deslocamento da incredulidade à surpresa ─ está bonita mesmo!

─ Eu te disse que eu era bonita, ─ recomeçou a vozinha ─, mas você nunca olha pra mim. Ninguém nunca olha pra mim, nem me ouve. Foi preciso vir esse homem gentil pra você olhar pra mim, me ver e ouvir, finalmente. Eu tenho muito a te dizer, sempre tive.

A loquacidade da mulher contrastava com sua fragilidade. Sua mão continuava envolta pela do homem.

─ Doutor, eu quis vir aqui hoje porque eu sei que estou morrendo, mas eu ainda tenho uma coisa importante para falar com minha filha e ela nunca me escuta.

A senhora esquálida permanecia com o corpo inerte, como que derramado e engolido pela maca. Sua voz, no entanto, embora muito tênue, controlava toda a situação.

─ Você sabe que ninguém nunca me ouviu, sempre foi assim. Quando eu era bonita, uns homens ainda olhavam pra mim, mas só até conseguirem o que queriam, depois nem me olhavam mais, nem me ouviam. Sempre foi assim.

─ Mas quando você nasceu eu fiquei muito encantada, tudo mudou pra mim. Eu ficava o tempo todo te olhando e cuidando de você, e você também me olhava. Foi assim por um tempo, enquanto você era bem pequena. Depois isso foi mudando e até você parou de olhar pra mim e me ouvir. Você ainda era pequena quando deixou de me ver. Mas eu continuei deslumbrada, pensava em você o tempo todo, pra mim nunca deixou de ser assim. Eu sei que você não entende nada disso, nem sequer percebe isso. Foi assim comigo e minha mãe, também, ela me dizia muitas coisas mas eu nunca ouvia, tive que viver tudo o que ela me dizia para acreditar. Eu já te falei muitas vezes para você engravidar, ter um bebê. Quando a criança nascer você vai entender. Você nasceu muito tempo depois da morte de minha mãe. Eu queria que você tivesse um filho enquanto eu estivesse viva, agora não vai dar mais, eu já estou indo. Se você tivesse tido um filho você ia entender tudo o que te digo, ia olhar pra mim, me ouvir, porque entenderia que eu sei de coisas que vão acontecer. Mas isso agora já se foi, não importa mais, o que interessa é o que eu vim te dizer.

Nesse momento, as razões da mulher que, mesmo sob a voz muito tênue vinham jorrando aos borbotões, pausaram, gerando uma expectativa que aproximou-as ainda mais.

─ Eu insisti para vir aqui hoje pra fazer um pedido pra você e pro doutor dos espíritos.

─ Doutor, faz um filho nela, ela tá precisando muito ter uma criança. Eu sei que ela vai querer, vão vocês dois ali num cantinho e fazem logo o bebê. Vai ser uma menina. Quem vai nascer vou ser eu. Eu sei que você vai me amar muito, e eu vou adorar, vou ser muito amada, vou ter alguém querendo me ver, me ouvir, o tempo todo. Não tem nada melhor. Mas eu sei que você não vai saber me criar, que vai fazer do mesmo modo que eu fiz, que foi uma repetição de minha mãe. Então, logo eu vou parar de te ouvir, e eu vou ser como você é agora. Mas tem uma coisa que você vai fazer diferente, vai permitir que eu tenha um filho bem nova. Não vai ser preciso nem incentivar, bastará não interferir que isso vai acontecer. Então eu, sua filha, vou ter um bebê enquanto você ainda estiver viva e com saúde, e nós vamos nos entender, finamente. Você, então, vai entender o quanto eu te amei a vida toda, o quanto eu vivi para você, e nós vamos nos entender e nos unir, finalmente. Você faz isso pra nós, doutor?

A pergunta da mãe foi acompanhada por uma apreensão esperançosa da filha e completa atenção por parte do homem que, ao ouvi-la puxou a moça para seu lado e, ainda tomando o pulso da mãe lhe disse.

─ E esse menino que vai nascer serei eu.

─ Você ouviu Karina?, eu vou ser a mãe desse moço tão importante, você vai ser avó e nós duas vamos cuidar dele! Mas eu estou tão feliz! Eu não imaginava que ainda ia ter um momento de tanta aleria na vida.

Inundada de felicidade, seu semblante se iluminou fortemente irradiando uma beleza transbordante que fez sua filha contemplá-la admirada, o que lhe insuflou ainda mais beleza.

─ Vão, vão lá logo, vocês dois. Chegou minha hora, vou partir repleta de felicidade. Podem me deixar aqui que estarei feliz.

As palavras precederam seu último suspiro, fazendo o homem soltar gentilmente o pulso da mulher, e conduzir sua filha para uma das salas contíguas, no imenso hospital.

Nove meses depois nasceria uma menina que receberia o nome da avó e arrebataria todo o imenso amor de sua mãe.