DO INSÓLITO AO ABSURDO, TUDO É NORMAL NOS PÓS DA MODERNIDADE

A obra do grande literato e pensador Albert Camus contém numerosas referências ao absurdo da existência humana e à revolta íntima daí derivada. Sem pretender estrita fidelidade aos conceitos do mestre, uma análise da atualidade sugere que revoltas podem corrigir absurdos específicos, como as variadas formas pregressas de discriminação, mas também tendem a gerar novos absurdos, como fruto dos excessos no esforço corretivo.

De revolta a revolta, de um absurdo a outro, é como se o ser humano salte de galho em galho, quebrando este, quebrando aquele, mas sem resolver o problema maior da árvore. Ou, ainda pior, o da floresta.

Quem viveu os anos sessenta, assistiu a grandes mudanças nas crenças e nos costumes (quem não viveu, pode conferir em “Os Anos 60: a Década que Mudou Tudo”, edições VEJA). Os decênios do presente milênio não ficam atrás, numa demonstração de que o chamado “pós-moderno” possui tamanha longevidade que daria inveja a Matusalém. Valores são revistos sem cessar, costumes modificam-se num piscar de olhos, até mesmo para internautas que não piscam diante de suas telinhas.

Tudo vira “normal” dessa forma. A presente historinha reflete tal circunstância.

Mais uma noite de trabalho na fábrica começa para esse devotado defensor dos direitos humanos (e fabris), o vigia noturno Sebastião dos Anjos. Doravante denominado Tião, como é conhecido por seus amigos e inimigos, o bravo vigilante necessita reagir ao absurdo de sua existência, que troca o dia pela noite, ameaçando isolá-lo do convívio com a humanidade.

Tião definitivamente não rima com solidão. Desde que surpreendeu um pivete no setor de telecomunicações da firma, a escarafunchar a fechadura da sala de projetos com a típica inocência e curiosidade da infância, o vigia deu-se conta da imediata necessidade de adotar novos padrões interativos em seu trabalho.

Em lugar de expulsá-lo do recinto, o herói abriu a porta e convidou o garoto a entrar na sala, onde didaticamente procurou explicar os diferentes projetos espalhados pelas mesas. Claro que seus conhecimentos a esse respeito tinham limites, mas revelaram-se suficientes para que o visitante demonstrasse satisfação com as informações recebidas e selecionasse alguns protótipos para levá-los consigo e faturar. É normal que a juventude almeje a segurança financeira, pois não?

Os momentos entretidos com o pivete convenceram Tião a sempre compartir sua vigília com os demais entes interessados em percorrer e conhecer as instalações. A partir de então, simpáticos cidadãos, de espírito empreendedor, visitam o conglomerado, do qual retiram aparelhos e instrumentos úteis para sua respectiva atividade. Os mais simplórios servem-se de artigos menos sofisticados enquanto os tipos grã-finos e requintados investem nos bens de alta tecnologia. Tudo correto e normal, de acordo com as preferências e o nível intelectual de cada visitante.

Inesquecível foi a noite de Natal em que Papai Noel encheu o saco que trazia nas costas com centenas de celulares para as criancinhas. O sociável vigilante convenceu-se de que, mesmo em eras pós-modernas, a tradição natalina ainda dispõe de espaço.

Também digna de nota a aparição de um primitivo homem das cavernas que trazia o saco (e os testículos) na cabeça mal formada e que, após destruir objetos desinteressantes com sua clava, limitou-se a levar, com a maior naturalidade, uma secretária que fazia plantão na ala de contabilidade. A audiência do espetáculo divide-se entre os que defendem a aplicação de medidas civilizatórias aos primitivos e os que contra-argumentam ser intocável o respectivo modo de vida.

Ocasionalmente, os companheiros de torcida de Tião comparecem ao local. No racha mais recente, um jogador espertalhão substitui outro, totalmente desparafusado, a pedido dos torcedores revoltados, mas o time continua absurdamente perdido em campo.

Caso o pai fosse vivo, perguntaria “qual é o pó?” (forma arcaica de indagar o que rola). O filho não sabe responder, no entanto, o que se passa com o time. Investiram mal, falta liderança, ninguém se entende, cada um por si, mas há quem ache normal. É assim mesmo. Revoltar-se pra quê?

Os celulares ladram e as caravanas passam. Ou emperram. Fenômeno natural, em qualquer hipótese. Nos tempos antigos, diziam que o pó que fizeres na estrada cai em tua própria cabeça. Nesta época pós-moderna (que se prolonga), os pós circulam soltos, para benefício de uns e malefício de outros, em meio a novo debate da audiência acerca da sua liberação total.

Os pós tomam conta, das memórias póstumas do passado ao desejo atual e permanente de atingir a posteridade. Ciente da inevitável necessidade de modernizar-se, Tião continua a receber gente, a olhar para todos, a tentar entender os tempos que o cercam. Sua missão noturna ajusta-se ao dia-a-dia da humanidade.

Após receber sucessivas visitas, acredita haver reduzido o patrimônio da empresa na exata medida para aliviar o patrão dos angustiantes rigores das leis de mercado e de taxação. Satisfeito enfim com os resultados colhidos, opta pela aposentadoria precoce.

Do pó vieste, ao pó retornarás. O revolucionário vigia parte em sua nave espacial rumo ao infinito das paixões desencontradas e da poeira cósmica, plena de pós modernos, inebriantes ou sufocantes. Perplexidade? Indiferença? Evolução natural? Caos? A normalidade converter-se-á no absurdo dos absurdos?

O futuro dirá, se houver. A sorte está lançada.

Brasília, DF, setembro 2022.