DIÁLOGO COM A ALMA!

A chuva caia mansamente. Cada gota era um martírio para a confusa mente de Círius Campanilha, farrapo humano que tentava equilibrar-se para não desabar. Ele andava a esmo, embriagado na rua deserta iluminada pela traiçoeira lua que não lhe emprestara o brilho. O cigarro aceso e a garrafa de uísque presa por trêmulos dedos completavam o cenário caótico. Tudo estava acabado para ele. Sua alegria era uma singela alegoria perdida no espaço em que a memória havia deletado a inconveniente lembrança. O tempo ofendera-o. Por conseguinte, ele queria encerrar a existência pré-estabelecida pelo inescrupuloso destino. A goma do fel incrustada na desesperança temperou o dissabor da solidão.

- Tenho que encerrar essa droga de vida! – gritou, segurando o revolver e apontando para a fronte.

- Alto lá com isso! – disse alguém.

Ele olhou para todos os lados. A rua estava deserta, era madrugada alta, não observou viva alma. Certamente estava delirando em função do álcool ingerido.

- Não vejo alternativa que não seja a interceptação desta estadia maçante xingada de vida.

As lágrimas rolavam pelo rosto de Campanilha. Seu estado era o verdadeiro desterro humano. Alem do que, estava faltando um pedaço em seu dilacerado coração. Sua mudez era a tradução da emoção desgarrada que não mais atinava, esmaecida diante das seqüelas acumuladas ao curso da pesada vida.

- Vida desgraçada! – gritou ele, preste a estourar os miolos.

O que havia restado de sua vida para ser lembrado? Resquícios de ódio acumulado, ou, um coração clamando para ser amado? Diante da incógnita imposta pelo acaso, abraçou o silêncio e conteve o choro.

- Não aperte este gatilho, Círius Campanilha!

Agora a voz parecia real, olhou, buscou, nada. Certamente a insanidade que precede o suicídio, o estava acumulando; talvez fosse um incentivo para chegar ao intento.

- Tem alguém aqui? - perguntou Campanilha, receoso frente ao desconhecido.

- Não pode cometer suicídio e me transformar em alma penada, seu idiota!

Atônito, Campanilha teve a nítida impressão de estar ouvindo a própria voz.

- É alguma assombração, uma entidade?

- Sou tua alma.

- Alma? Devo estar consumido pela loucura.

Campanilha ficou maravilhado e ao mesmo tempo temeroso, quando viu uma imagem difusa se materializar.

- Pode me ver agora? – perguntou a alma.

Círius Campanilha aprumou os olhos e pode enxergar a entidade que tinha formas confusas. Sentiu um súbito temor tomar chegada.

- Então almas realmente existem?

- Claro! Vi-me na obrigação de impedi-lo de cometer suicido. Porque está descrente de tudo a ponto de entregar-se?

- Se realmente for minha alma, deve saber do meu lamento frente a todas às injustiças a mim praticadas, do desamor que se abateu sobre mim...

- Calma, – disse a alma – vamos por parte. Cite uma injustiça.

Campanilha acendeu um cigarro. Olhou para o vulto transparente e falou:

- Perdi tudo o que tinha.

- Tudo é muito amplo, especifique.

- Meu casamento. Um mar de rosas de durou apenas um mês, ao qual, dediquei tanto amor.

- Não se casou por amor, casou-se com uma conta bancária. Durante um mês teve quatro amantes. Jamais foi solicito nesta união. Decorridos seis meses, casou-se com Carmina Lucas e novamente os números existentes na conta bancária, pesou significativamente em sua decisão. Então me diga, relate um segundo sequer que demonstrou um esboço de amor?

- Olhando desta ótica fica fácil analisar. Era eu quem estava lá.

- Você é a matéria, eu, a alma que a tudo observo e assinto, acabo sentindo a navalha da sofreguidão.

- Mudemos o tema. Freqüentei a igreja durante cinco anos e não obtive ajuda de Cristo.

- Você pediu três graças e foi prontamente atendido.

- Minha peregrinarão não conta? Tantas missas...

- Conversou com Cristo com o coração aberto, ou estava atento às pernas que circulavam por entre os assentos?

- Sou humano, uma espiadinha não mata.

- Você confundiu o ato de ver, com o desejo ardente, profanando a casa do senhor.

Círius Campanilha estava boquiaberto. Tantas revelações o estavam deixando assustado.

- Deus do céu, eu só queria me matar.

- Você não pode cessar uma existência que somente ao criador cabe o dever de encerrar. Sabe o que está conseguindo com esta intenção?

- O quê? – perguntou Campanilha, impaciente pela embriaguez.

- Olhe para aura que se forma em torno de mim! Estou enegrecendo, em se procedendo assim, os demônios tomarão conta de sua massa corpórea e terão vencido a batalha. O fio que me liga a você está se partindo.

Campanilha ficou maravilhado ao ver a própria aura. Agora estava certo de que estava dialogando com sua alma. A escura noite ganhara cores, a lua emitia uma luz divina, estava enorme. Brilhos cintilavam a seu redor. Um gato saiu em disparada, Campanilha observou o balão preso por um fio que segurava aura do felino. O mundo estava deslumbrante. Um avião sobrevoava, ele maravilhou-se com uma explosão de cores, centenas de auras coloridas. O mundo fascinante estava disponível a ele. Tateou sua brilhante aura, estava renovado, possuído por uma indescritível vivacidade. Contemplou o milagre da vida, viu Deus andar sobre as nuvens, acompanhado por milhares de anjos sorridentes, uma verdadeira constelação astral. Contrito e acrescido de credulidade, Círius Campanilha praticou a genuflexão, reverenciando a divindade e sorrindo para vida que o esperava. Percebeu que até então só pedira e, jamais havia se doado.

- Que tal agora? – perguntou Campanilha para a alma?

- Bem melhor. Agora sua mente contém lembranças que guiarão seus passos.

Campanilha renasceu, reinventou-se, descoloriu o suntuoso arco-íris para repintar o novo quadro da vida. Estava centrado em cumprir a existência demarcada por caminhos retos e sinuosos que determinam a estrada do destino.

Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 05/12/2005
Reeditado em 08/01/2006
Código do texto: T81412