Meu Príncipe

O castelo não era encantado (mas era lindo!), sequer tratava-se de um castelo, senão nos sonhos da menina... que tampouco era princesa. A família era real. A mãe, matrona quase perfeita. Atitude austera, esforçava-se de todas as maneiras para que seus filhos pudessem viver dignamente, apesar de sua sorte, ou má sorte.

As crianças, um menino esperto, inteligente, travesso. O primogênito na vivacidade de seus 8 anos, na época. A menina do meio, o recheio. Embora da senzala, como nos livros de histórias (o que viria questionar mais tarde), tinha a pele clara das princesas. No rosto adornado por duas estrelas verdes, a docilidade dos 6 anos da menina. Havia ainda a pequena, a nenê de 3 aninhos, boneca de louça da família. Loirinha, tão mignon, quanto sapeca. A preferida de todos, especialmente, do príncipe.

Ah ! Príncipe... quase um deus, um sheik árabe. Moreno, alto, corpo esguio. De olhar profundo, cativante. Homem jovem, no vigor de seus trinta e cinco anos.Tinha altivez em seu porte físico. Destemido, valente. Com poderes especiais para defender sua prole. Afastava todos os males. Espantava lobisomem, bicho papão e bruxa malvada. Se preciso, nas tempestades mais terríveis, ordenava o cessar do vento e da chuva. Afrontava bandidos, socorria feridos, defendia a todos. Capaz de jogar-se às águas de um rio, sem saber nadar, enfrentando tudo que punha em risco a vida humana em seu reinado.

Seguidamente o príncipe despia-se de sua imponência, do poder do seu reinado e, rolava na grama com seu menino. Levava-o para jogar bola, molhar os pés no riacho, pescar... Pescava além dos peixes. Pescava sonhos, pescava desejos e emoções.

Dono de uma capacidade ímpar para contar histórias, punha suas princesas no colo, uma em cada perna, em frente ao fogão de lenha e, nas noites frias de inverno lhes aquecia os ouvidos, com histórias de assombração, fábulas e contos de fada. Penso que foi o príncipe que inventou para a menina, que a vida era encantada.

Junto a essa sensibilidade, o príncipe trazia consigo a coragem de lutar pelo sonho de um reino encantado. Um mundo onde o respeito à vida de todos os seres humanos, a justiça, a igualdade e a democracia reinassem. Autodidata, estudioso da religião e da política. Líder comunitário e sindical, de fala fluente, comunicava muito bem suas idéias, avançadas e liberais, para uma época de ditadura.

1964... O príncipe foi descoberto! Covardemente adentraram a simplicidade de seu lar. Invadiram-lhe a vida. Remexeram suas gavetas. Bateram-lhe com baionetas. Arrancaram-lhe de suas princesas. Não deram ouvidos aos seus apelos. Tampouco ao seus gemidos. Malditos! Malditos!

Um último olhar, antes que a cortina da vida se feche literalmente, a menina arrisca um último olhar... Antes não tivera ousado. A dor registra o quadro mais triste de sua infância, vê seu príncipe, pelos malditos militares, violentamente arrastado. Não quer ver, não consegue desviar o olhar... Não consegue parar de olhar, nem de gritar. Tampouco, consegue parar o gesto insano e brutal dos militares. Arbitrariamente, arrancam uma parte de sua vida. Não importa! Não percebem o coração partido, a alma ferida, a menina perdida. Não entendem a desfeita dos seus sonhos... A menina chora, desesperadamente, chora.

Faz-se noite. Imediatamente anoitece, faz-se escuro seu dia. Desce a cortina da noite e o Sol desaparece de sua vida. Assim também, o desejo de viver.

Deseja a morte. Morre um pouco, ou muito...

Gelci Agne
Enviado por Gelci Agne em 22/01/2008
Reeditado em 19/06/2010
Código do texto: T828202