Livre arbítrio

(18/08/03)

São três horas da manhã.

Ele está sozinho em casa acessando alguns sites na Internet de conteúdo

impublicável, como normalmente fazia em suas madrugadas.

Toca a campainha.

Ele caminha calmamente até a porta pensando em quem poderia ser àquela hora.

"Só pode ser o porteiro ou o vigia pra avisar que esqueci os faróis do carro

aceso ou algo que o valha", pensa ele com seus botões.

"Mas porque não usar o interfone?". E com esta pergunta na cabeça ele olha pelo olho mágico e sente um pequeno calafrio: Em frente a sua porta estão parados dois homens desconhecidos. Um muito elegante e bem vestido. O outro, ligeiramente mais baixo, usa bermuda, uma camiseta muito surrada e chinelos.

"Só pode ser assalto", pensa ele. Automaticamente dá dois passos para trás e com a voz meio que engasgada e sem muita certeza se deveria, pergunta:

- Quem é?

- Não está me reconhecendo? Abre a porta Cristóvão!

"Ai, meu Deus, até o meu nome eles sabem.". Meio trêmulo e desorientado só consegue pensar em uma palavra "INTERFONE". Corre até a cozinha.

-Boa noite!

-Quem fala?

-Aqui é o Antunes, seu Cristóvão.

-Antunes, estes dois caras aqui na minha porta... Quem são? Quem autorizou eles subirem?

-Dois caras? Por aqui não passou ninguém.

-Tem dois caras muito suspeitos aqui na minha porta...

-Se o senhor quiser eu peço pro vigia dar uma olhada.

-Rápido, por favor.

Enquanto aguarda a chegada do vigia, nervosamente tenta escutar o corredor, mas como não tem coragem de chegar muito próximo à porta, não obtém muito sucesso.

Leva um grande susto quando a campainha toca novamente.

-Q-q-quem é?

-É o Zé Maria seu Cristóvão. O Antunes pediu pr'eu dar uma passadinha aqui.

Cria coragem e abre a porta.

-Estes caras que estavam aqui...

-Desculpe, seu Cristóvão, mas eu não vi ninguém.

-Tem certeza?

-Olhei na escada e no elevador: ninguém!

-Tá bom, mas fica de olho que eu acho que era assalto.

-Boa noite, seu Cristóvão.

Fecha a porta ainda não satisfeito e quando se vira, ali estão os dois homens bem no meio da sua sala de estar.

-Ahhhhhhhh!

-Calma, calma... nós não queríamos te assustar. Não vamos te fazer nenhum mal.

-Q-q-quem são vocês? Como entraram aqui?

-Não está me reconhecendo? Nós nunca fomos muito observadores mesmo.

Ligeiramente mais calmo tenta reparar nos detalhes daquele rosto. Realmente lembrava alguém.

Se colocasse um bigode, uns cabelos brancos, uns quilinhos a mais...

-Meu Deus!

-Agora você percebeu

-Não pode ser.

-Eu sou você.

-O certo não é "Eu sou você amanhã".

-Não. Eu sou você hoje. Ou melhor: eu seria você hoje, se você tivesse tomado todas as decisões certas na sua vida.

-Mas eu não tomei tantas decisões erradas assim na minha vida.

-É verdade, mas se tivesse decidido de forma mais acertada...

-Como assim?

-Por exemplo: lembra daquela garota linda que você via ocasionalmente ali na vizinhança, mas nunca tomou coragem para falar com ela por achar que ela nunca ia te dar bola? Pois é. Eu tomei coragem, falei com ela. Nos

apaixonamos. Hoje ela é uma empresária de sucesso, somos casados e felizes, temos uma menina linda.

-Empresária de sucesso? Sei... Isso explica o Armani.

-Não, o Armani vem de outro lugar. Lembra daquele MBA que nós queríamos fazer, mas você achou que não tínhamos nem tempo nem dinheiro para tanto? Eu fiz. Hoje sou diretor de uma grande multinacional. Aparamentão, carrão, dinheirão...

-Tá bom, já me humilhou bastante. E esse molambento ai, quem é?

-Adivinha...

-Não, impossível. Esse cara tem uns trinta anos a mais que eu, Quer dizer... que nós.

-Pra você ver o que as drogas não fazem com um cara.

-Drogas?

-Lembra aquela vez que nos ofereceram uma cheiradinha? Ele aceitou. Foram seis anos no vício. Segundo ele agora parou... Sei lá.

-E ele se casou?

-Claro, e com a sua Ex.

-Então...

-É, só que nunca se separou dela.

-Ah bom...

Nisso o "molambento" caminha até o sofá meio que cambaleante, arrastando sua perna direita.

-Ele tem uma perna mecânica?

-Tem. Lembra daquele dia em que a gente tomou um porre e o Eder apostou que ninguém teria coragem de descer na linha do metrô? Pois é, ele desceu.

-Puts. Dever ser duro caminhar com esta perna mecânica. Olha como ele

cambaleia.

-Ele anda melhor quando está sóbrio.

-Meu Deus... Mas... você parece muito bem.

-Lembra quando decidimos parar de fumar, passar a comer melhor, alimentação mais saudável, fazer exercício? Eu corro duas vezes por semana mais natação ou musculação diariamente. Mudei meus hábitos alimentares...

-Bom, eu parei de fumar.

-E eu perdi nove quilos.

-E ele?

-Duas pontes de safena.

-Nossa, não queria ser esse cara.

-Você é esse cara!

-Eu sei, mas... coitado. Não é atoa que ele é caladão.

-Não, até que ele era bem falante. Ficou assim depois da operação.

-Das pontes de safena?

-Não, de mudança de sexo. Se arrependimento matasse...

-Só... respondeu o "molambento".