Feito tatuagem

A infância pobre oferece alternativas prazerosas e um caldo de emoções para a criatividade infantil. No subúrbio, afastado do centro da cidade, não há cinema, não há pracinha, tampouco brinquedos, resta inventá-los.

Na casa pequena, a mãe costureira, não quer barulho por perto: '_vão brincar lá fora, basta nos dias de chuva', reclama. O jeito é brincar no pátio. No terreiro de terra vermelha, algumas laranjeiras, bergamoteiras e alguns pessegueiros emprestam suas sombras para as crianças brincarem. Com suas fantasias e travessuras, num passe de mágica tudo se faz acontecer.

A espiga de milho enrolada, vira boneca. Algumas pedras, latas velhas, e algumas brasas, pequenas porções de arroz e feijão (roubadas da mãe) e, pronto! Já se tem casinha, fogão, panelas e até comida para os filhinhos.

A brincadeira não pára por aí. Com pequenos gravetos faz-se outras mágicas! Potreiros, cercados de madeira, onde pequenos ossos de animais, são vaquinhas de leite e gado de engorde (coisas de criança do sul). Quando a gente cansa da vida de estancieiro, deita no chão admira o céu e desvenda seus mistérios, decifra seus desenhos: ¬ "as nuvens são de algodão? ou, ¬ veja, lá tem um carneirinho! ¬Não! é nada disso sua boba, olha bem, não vê que tem asas, é um anjinho..." e por aí vai a tarde.

Às vezes, muda-se a rotina. A gente sobe nas árvores, fica presa pelo vestido ou, brinca de escolinha. A sala de aula, embaixo do assoalho da casa, um porão de terra batida. Pequenos caixotes, um quadro improvisado, giz (pedaços de carvão), alunos imaginários e... ih, a menina se empolga tanto com as brincadeiras e esquece que o vestidinho é novo. Brinca na terra, encarde as mãos, as unhas, o vestido que mamãe fez e, até a barriga.

Quando se dá conta, é tarde! A mãe ao contrário, logo deu-se conta e, tremendamente contrariada, acaba de vez com a brincadeira. Pelo seu tom de voz, já se sabe enfurecida. Desta vez, no entanto, poupa-lhe as pernas da surra de vara e manda-a imediatamente para o banho.

Assustada a menina, temendo o que estaria por vir, ensaboa-se, esfrega-se e de nada adianta. Não sai nem o carvão, nem a dita terra vermelha. Em sua pele, antes rosada, a terra vermelha pampiana, havia se desenhado feito mapa. Estremece quando a mãe chama para a revista: '¬Volta já pro banho! Vá lavar direito esta barriga, sua relaxada! Não tem vergonha, uma menina desse tamanho não saber tomar banho!'

Sadismo, desamor e todo tipo de maus sentimentos circulam pela cabecinha da criança mal fadada. Chorando então, volta a banhar-se a menina e, esfrega-se com toda a força que uma criança de 8 anos pode fazê-lo. Escova-se com tamanha violência que a barriga avermelhada, denuncia inconsciente desejo de rasgar a própria pele. Chega ao ponto de desejar ver-se sangrar como sangra sua alma machucada.

Pensando haver apagado de seu abdômen o mapa da incompetência, retorna um pouco mais aliviada. Ledo engano. Entre as brincadeiras prazerosas com a terra vermelha e o demorado banho, a mãe ainda encontra vestígios de sujeira.

Maldita sujeira, porque grudou tanto assim? Como tatuagem, grudou. Assim também grudaram os adjetivos todos que mamãe disse pra mim: '¬ Menina relaxada, suja, encardida! Não tem vergonha, parece uma bruxa suja desse jeito! Você não sabe fazer nada certo! É um monte mesmo!'

Como aprendeu bem a lição! Pela vida afora machucou-se a menina, adjetivou-se com o baixo nível com que crescera e se acostumara receber. Passivamente, atendeu a todos os apelos autoritários das mães que em sua vida cruzaram.

Feito tatuagem em seu ego... todos os desamores, todos os rancores, todos os mapas de incompetência, de incapacidade, todas as culpas e os medos tolos, todos!

Gelci Agne
Enviado por Gelci Agne em 02/05/2008
Reeditado em 19/06/2010
Código do texto: T972275
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