LEGÍTIMA DEFESA

Na sede do destacamento da Polícia Militar da cidadezinha, no interior do Norte de Minas, chegou espavorido o rapaz. Aparentava vinte e poucos anos e vestia apenas uma bermuda rota e suja, de tal forma que era impossível precisar a cor original da veste. Suava por todos os poros e o suor se misturava com a camada de poeira que trazia sobre a pele não coberta por vestes.

Trazia algumas escoriações pelo rosto e outras partes visíveis do corpo; estas se destacavam da fina camada de lama formada por suor e poeira sobre a pele. Sua tez extremamente rubra deixava claro que era muito branco, o que também se confirmava pela cor clara dos cabelos e dos olhos. As vestes estavam em frangalhos e sujas de poeira. Ofegante, levou alguns segundos para conseguir falar ao sargento, comandante do destacamento, que o atendeu.

- O Zé Pezão me bateu... agora! Conseguiu balbuciar. Lá no bar do Selvino, completou.

O sargento, procurou obter mais informações sobre o fato, inclusive sobre o paradeiro do agressor, e foi informado pelo rapaz, vítima da agressão, que o Zé Pezão havia fugido do local tão logo ficou sabendo que seria denunciado na polícia.

O agressor era conhecido da polícia no lugarejo. Tratava-se de pessoa extremamente violenta e inconseqüente nas suas atitudes; freqüentemente agredia alguém e desaparecia para fugir da polícia. Fora preso várias vezes e, na maioria das vezes, reagiu à prisão, entrando em luta com os policiais.

Informado de que o agressor não estava no local do crime, o sargento orientou o rapaz que fora agredido a ir até um posto médico fazer uns curativos e, seguida, levar um documento do médico atestando e descrevendo as lesões ao delegado para juntar ao relatório de ocorrência policial e ser feito o inquérito destinado à justiça.

Era fácil de se prever que, como de costume, o Zé Pezão não seria encontrado em flagrante e, confirmando essa hipótese pelas informações da vítima, decidiu que seria perda de tempo sair com uma equipe de policiais no encalço do criminoso: bastaria mandar um policial apenas ao local colher os dados para registro de relatório. Mandou o sargento ao soldado que estava de plantão no destacamento que fosse até o bar onde ocorrera a agressão e anotasse os dados pessoais do dono do bar para constá-lo como testemunha do acontecimento.

O jovem soldado lá se foi. Franzino, expressão pueril, um rosto imberbe, era o oposto do policial que impunha temor pelo corpanzil ou expressão de ferocidade. Só um arguto observador que lhe olhasse nos olhos perceberia uma ponta de frieza semioculta que na maioria das vezes fazia com que se evitasse encará-lo. O jovem milico chegou ao bar e foi entrando. Antes, porém, notou que as pessoas que estavam próximas do local olhavam-no com uma curiosidade maior do que a costumeira. Não atinou para o motivo dessa curiosidade.

Entrou no bar e só então compreendeu o porquê da apreensão de quem o observava. Zé Pezão estava no bar. De pé encostado ao velho e encardido balcão de madeira; o jovem soldado o viu e o reconheceu.

Era verdadeiramente um espetáculo assustador. Zé Pezão, um homem pesando acima de cem quilos, rosto suado, olhar feroz, tez parda, vestia apenas uma bermuda e calçava chinelos de dedo; trazia uma camisa suja jogada sobre o ombro direito. Preparava-se para sorver mais um copo de cachaça quando o soldado entrou. O brigão apenas olhou para o militar, fez uma expressão de desdém e sorveu a dose dupla de um só gole. Rosnou, saboreando a bebida e bateu com o copo no balcão com violência.

- Põe mais uma pra mim, que hoje eu virado no diabo!... Vociferou para o dono do bar.

O jovem soldado entendeu que na verdade toda aquela encenação era tão-somente uma forma de insultá-lo. Olhou ao redor e viu que muitas pessoas se aproximaram da porta do bar do lado de fora da rua para ver o desfecho daquele encontro. Observou as características físicas de Zé Pezão e pensou ironicamente consigo mesmo: “os braços dele são mais grossos do que minas pernas”. Sim, aquele homem de mais de cem quilos de peso tinha de fato um aspecto assustador; bastava olhar-lhe para ver que era forte como um touro, embora a estética fosse pouco atlética – a região do abdômen volumoso, mas ao mesmo tempo com uma musculatura espessa e rígida; o pescoço lembrava um tronco de aroeira; os braços e antebraços tinham diâmetros colossais, de onde sobressaíam músculos bem definidos e volumosos dutos venosos; as mãos lembravam pás de uma retro-escavadeira. Não havia saída para o soldado, ou batia em retirada em busca reforço e enfrentaria o escárnio da assistência que se acotovelava na porta do boteco e do próprio Zé Pezão, ou o enfrentaria aquele brutamontes, correndo o risco de ser esmagado, por que certamente reagiria à prisão. Decidiu por agir sozinho.

- Pezão, você está preso! Falou com autoridade.

Zé Pezão olhou-o com descaso, fez um muxoxo, riu com cinismo e falou:

- E quem vai me levá? É ocê sozim? Dez d’ocê num me leva!... Riu mais ainda com escárnio no que foi acompanhado na zombaria por mais de noventa por cento da assistência, inclusive o dono do boteco.

O jovem soldado ficou a olhar para o seu oponente sem saber ao certo o que faria. Olhou-o no rosto e viu o escárnio e a afronta expressos; desceu os olhos para a imensa barriga e, de repente, pensou: “Vou dar um tiro nesse cara!”. Pensou e resolveu agir antes que pudesse mudar de idéia. Sacou o revólver, apontou-o rapidamente para o imenso abdômen do oponente e mandou fogo.

O estampido foi seguido da expressão de surpresa de Zé Pezão e de todos que estavam presentes. O temerário instintivamente resolveu não esperar para ver o que poderia acontecer em seguida e saiu em desabalada carreira. Já a alguns metros fora do boteco, desvencilhou-se, aos chutes, dos chinelos que calçava e, em seguida, jogou fora a camisa que mantinha nos ombros, enquanto corria numa velocidade espantosa para o seu corpanzil em direção a um largo poeirento que existia um pouco mais à frente, onde crianças costumavam jogar bola nos fins de tardes; corria como um atleta em busca de uma medalha. O soldado ficou parado a observá-lo. A assistência, incluindo o dono do boteco, abandonara seus postos de observação tão logo o estampido ecoou. Não ficou vivalma nas proximidades.

O soldado ficou observando a corrida de Zé Pezão que continuava a passos firmes e em velocidade invejável; já distante uns duzentos ou trezentos metros, o corredor cambaleou, esgueirou-se de lado e caiu. O soldado seguiu caminhando calmamente, ainda empunhando o revólver, para onde Zé Pezão caíra. Chegou e o encontrou em decúbito ventral, com a cara no chão, tão ofegante que a cada expiração subia uma nuvem de poeira. Com a mão esquerda, virou o temerário de abdômen para cima. Viu que a parte frontal do ferido estava suja de lama de suor com poeira e no abdômen a lama era rubra pelo sangue que se esvaía.

Seguiu de volta até o boteco o soldado, ainda com a arma na mão, e chamou pelo dono que saiu visivelmente assustado. Disse-lhe em tom ameaçador:

- Você é testemunha de que ele partiu para me atacar e como ele é muito forte eu não tive outro jeito se não atirar nele! O comerciante não arriscou a contrariar o soldado e assentiu com um movimento de cabeça. Agora vai até o destacamento e fala pro sargento vir aqui com um carro pra gente socorrer a vítima! O dono do boteco não se fez esperar para atender a ordem recebida.

Zé Pezão foi socorrido ao hospital e foi operado; quase morreu. Emagreceu uns trinta quilos ou mais. Quando recebeu alta hospitalar foi para a cadeia onde cumpriu um ano e quatro meses por agressão a um civil, resistência à prisão e tentativa de agressão a um policial. Converteu-se a uma corrente religiosa evangélica ainda na cadeia.

Abandonou o álcool. Após cumprir a pena passou a viver como um cidadão pacato; nunca mais se ouviu falar de qualquer atrito dele com alguém. Quando cruzava com o jovem soldado nunca lhe olhava; seguia em frente como se não o tivesse visto.

O soldado respondeu a um inquérito policial militar por ferir uma pessoa a bala, mas o testemunho do dono do boteco serviu para caracterizar legítima defesa. Os dois, o soldado e o comerciante, quando se encontravam cumprimentavam-se com uma pequena dose de mesura e um certo ar de cumplicidade; às vezes até conversavam sobre assuntos diversos, porém, nunca trocaram uma palavra sequer sobre aquele infausto acontecimento.