"A Presepeira" =Conto Policial=

Dona Janaína levava uma vida tranqüila ao lado de seu marido, Eurípedes. Uma vida simples, sem grandes ambições, bastante sossegada e rotineira para ela. Do jeito que queria e gostava.

Para Eurípedes, apesar de aposentado, a vida não era rotineira nem sossegada. Gostava de beber e era um grande jogador de pôquer. Conhecia, no entanto, seus limites. Não bebia o suficiente para embriagar-se nem jogava mais do que podia perder. Jamais fizera uma dívida por causa do jogo ou da bebida. Nem se encrencara com mulher alguma. Mulher para ele sempre fora apenas a sua querida Jan. Desde o começo da aposentadoria satisfizera-se com o trio importante: Janaína, as cervejas, e o pôquer à noite com os amigos.

Dona Janaína ganhava um bom dinheiro extra no Natal confeccionando presépios para as famílias mais abastadas e também para as mais carentes da cidade, cobrando mais caro de quem tinha muito e muito pouco para quem pouco podia pagar. De outubro em diante trabalhava doidamente para dar conta das encomendas, mas a perfeição dos detalhes era sempre sua meta, fosse suntuoso ou não o presépio encomendado. Transformava papel, purpurina, musgo, folhagens, bambu, em pedras, mato, jardins, casinhas, e o que mais julgasse necessário para um belo lar para o Filho de Deus recém-nascido. Verdadeira artista.

Eurípedes um dia chegou contando que um rapaz de passagem pela cidade o desafiara no pôquer e acabara perdendo muito dinheiro.

- Jan, o rapaz ficou bravo que só vendo...Eu só pegava mão boa, só seqüências uma atrás da outra, e ele só conseguia carne de pescoço, coitado. Acho que até pensou que eu estava roubando, mas a turma viu que era mesmo minha noite de sorte. Mais uma noite de sorte das muitas que me acontecem. O coitado do motociclista saiu liso do jogo. Acho que aquele não volta mais pra nossa mesa. Azarado demais, Jan. Nunca vi coisa igual...Mais um pouco e ele perdia até aquela moto enorme no jogo. Não perdeu porque eu não aceitei a aposta que ele queria fazer. Jogo pra me divertir, não pra ganhar a vida. Parece que está chegando gente...Vou ver quem é.

Um minuto depois Janaína ouviu uma voz de homem gritando coisas como ladrão, safado, ordinário, trambiqueiro, e a voz do marido, sempre educado e comedido, tentando falar.

Ao correr para a porta de entrada ela viu Eurípedes caindo vagarosamente ao chão com as mãos na barriga enquanto ouvia um barulho de motor que se afastava da casa, às pressas. Desesperada, gritando de agonia, logo percebeu que já era tarde para qualquer socorro. Eurípedes fora esfaqueado na barriga e morrera quase que imediatamente. Era muito velho para resistir àqueles ferimentos graves.

- O tal do motociclista matou meu marido por causa do jogo. Por causa de dinheiro ele matou meu marido...Aquilo não era barulho de carro. Nunca foi...

Ao prestar depoimento Janaína disse que nada ouvira naquela noite. Que apenas chegara até a porta da casa e encontrara o marido morto, caído no chão e sangrando muito. Não vira nem ouvira coisa alguma.

No dia seguinte o modesto jornal da pequena cidade contava em detalhes seu depoimento à polícia. O motociclista leu a notícia, sorriu, chegou à conclusão de que não precisaria fugir da cidade e à noite voltou à mesa de jogo. A tal velha devia ser surda como uma porta, benza Deus!! Podiam até suspeitar, mas ninguém teria prova alguma contra ele. E para completar, tinha certeza de que sua sorte mudaria depois que “aquele velho safado” se fora.

Janaína foi à casa de Ataulfo, um grande amigo de Eurípedes, conversou longamente com ele, combinaram algumas coisas e ela voltou pra sua casa.

À tardinha Ataulfo chamou o motociclista, que desfilava tranqüilo pela única avenida da cidade, e disse que precisava falar-lhe com certa urgência.

- Estou às ordens, seu Ataulfo. O que é que o senhor manda?

- Olha, moço, eu sou contra esse negócio de fazer justiça com as próprias mãos, e é só por isso que vou trair meus amigos...

- Trair porque, seu Ataulfo?

- Eles acham que foi você quem matou o Eurípedes, amigão nosso de muitos anos, e estão combinando linchá-lo hoje à tarde, antes do começo do jogo. Se eu fosse você, jovem, dava um jeito de sumir daqui o quanto antes. Detesto violência. Só por isso estou lhe avisando enquanto é tempo.

O rapaz engoliu em seco, jurou que era inocente, mas mesmo assim disse que viajaria para evitar uma grande injustiça.

Foi até a casa do parente onde estava hospedado, arrumou sua mochila, subiu na moto e saiu da cidade em boa velocidade. Em poucas horas estaria em sua casa na capital. Depois que vencesse a descida da serra, aquela serra abrupta e de pouca largura, poderia desenvolver alta velocidade na novíssima rodovia federal.

Ao começar a descer e a fazer a terceira curva, a mais acentuada e mais perigosa do início da insegura estradinha, viu que logo à frente havia um amontoado de enormes pedras cinzentas e pontiagudas bloqueando a passagem. Instintivamente freou com violência a moto, ainda bastante inclinada e em plena curva. O veículo derrapou com estardalhaço na estrada de terra cascalhada, caiu de lado rodopiando, arrastou-se por vários metros levando seu condutor grudado a ele, e despencou pela ribanceira, explodindo ao bater nas rochas dezenas de metros abaixo.

Logo depois Janaína saiu do meio do mato, chutou as pedras para longe e ria enquanto voavam ao sabor do vento as “terríveis e assustadoras pedras cinzentas pontiagudas” confeccionadas em isopor, cola e papel-pedra. E presas ao chão com pedrinhas de verdade. Inofensivas pedrinhas de verdade.

- Tenho que voltar depressinha pra casa...Tô cheia de encomendas de presépios e o Natal está chegando. Meu primeiro Natal sem Eurípedes... Será tão triste...

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Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 21/06/2008
Reeditado em 21/06/2008
Código do texto: T1045324
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