MENARCA

Sol escaldante. Quase três horas da tarde...

Ônibus lotado. Pelas janelas imundas e vidros quebrados, a favela desliza cinzenta aos olhos de peixes mortos daquela gente sofrida e resignada à lata de sardinha - coletivo de miséria, desrespeito humano e descaso do poder público.

O motorista do “busão” se contorce de dor ao volante devido à comida com que se empanzinara nos cinco minutinhos que tivera pra almoçar agora mesmo.

De repente, um grito. O veículo pesado ziguezagueia, quase tomba, e pára junto ao meio-fio. Em histeria, todos gritam.

- O que foi? O que foi isso, meu Deus?

- Misericórdia!

- Cacete!

- Foi tiro!

- Tiro???

- Acertaram a moça aí, ó’

- Socoooorooooo... – e a moça desmaia ao ver a mancha enorme de sangue que se formava em sua roupa, na região do baixo-ventre.

Neste momento todos procuram proteção. Vão se acotovelando, se agachando, se enfiando por baixo dos bancos, desesperados. Uns rezam, enquanto outros praguejam.

- Cadê a polícia? Na hora que a gente precisa não aparece ninguém...

Com o pára-choque dianteiro detonado, os faróis quebrados, e a pintura visivelmente deteriorada, uma viatura policial pára na esquina. Após dar um tranco na porta emperrada, o policial que sai daquela sucata institucional está com a arma em punho – um revólver que acerta o alvo se este estiver três dedos à direita da massa de mira.

- O que está acontecendo lá, cidadão? – pergunta a um popular.

- Sei não, “seu” guarda, sei não! – responde o cidadão que não é besta de se envolver.

O policial, puxando a aba do seu boné encardido para trás, não insiste - ele já conhece esse tipo – e avança, suando, até um poste, e nele se entrincheira. Acabara de vir do quartel e ainda pensava no que o comandante lhe dissera: “- Desapareça da minha frente com este pedido de empréstimo”. Não tinha a menor idéia do que diria à mulher quando voltasse (e se voltasse!) para casa. “- Sim senhor”, respondera ao chefe, perfilando-se e saindo da sala, apertando com força o cabo de sua ferramenta de trabalho. Teria que pedir fiado na farmácia, onde já devia tanto.

No coletivo urbano há um silêncio total, pois os passageiros perceberam a chegada dos policiais e temem ser baleados - afinal, eles têm atirado primeiro, ultimamente.

- Pede apoio, pede apoio – o policial grita para o seu parceiro que está na viatura.

- QAP...

O sol está se pondo atrás do morro e ponteando o céu de um vermelho sangrento.

O tempo está passando.

Agora, as ruas estão isoladas. Viaturas estão atravessadas nos passeios. Fitas zebradas por todo lado. Por toda parte, policiais, curiosos e repórteres. Dois carros dos bombeiros estão posicionados na esquina.

Um show pro fim de tarde!

Dentro do ônibus ninguém mais agüenta ficar escondido. A moça ensangüentada ainda jaz desmaiada no piso esburacado do lotação. Ela é a única pessoa que não está em cima ou embaixo de alguém. À sua volta, como auréola protetora, há um espaço mínimo que ninguém ousou violar. O sangue que empapa suas vestes exala um odor nauseabundo que pouco se destaca das demais emanações corpóreas – suores de pavor. Alguma coisa precisa ser feita e o motorista decide se levantar.

- Não faça isso – alguém sussurra próximo – eles vão atirar na gente.

- Precisamos sair daqui – outro assustado passageiro murmura – e eles não decidem chegar aqui perto...

Lá fora há um burburinho confuso. O motorista se levanta. Tudo silencia e se ouve o cleck-cleck de armas sendo engatilhadas. Com os olhos arregalados um policial, com o dedo no gatilho e apontando a metralhadora para o apavorado e corajoso motorista, aos berros pergunta:

- Quem é você?

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Após um demorado e dramático resgate, no qual houve de tudo – agentes policiais esgueirando-se pelas laterais do ônibus,” snipers” tensos sobre os prédios vizinhos, choros, gritaria, etc, etc e etc – a moça ensangüentada, enfim, chega ao hospital.

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São dez horas da noite.

A mal humorada recepcionista que esfrega um dos pés na quina da mesa, levanta-se e fala pra quem ouviu-ouviu:

- Os pais da moça baleada podem entrar!

- A gente já pode entrar?

- Vai, vai, vai...

No consultório, um médico cansado, com o jaleco desabotoado e sujo de catchup e mostarda, informa ao casal que o olha assustado, com medo de fazer perguntas:

- Mãe e pai, a filha de vocês teve a menarca... Calma, minha senhora. Senhor, pegue um copo d’água pra ela...

............................................................................................... Faltam cinco minutos pra meia-noite, daqui a pouco ela poderá ir embora - o soro já está quase acabando. Na face ruborizada da menina há um quê de desabrocho e malícia.