APOSENTADA E PERIGOSA

Formavam um quadro macabro, visto da janela do terceiro andar daquele velho prédio por uma senhora de cabelos brancos, o corpo estendido no meio-fio e uma pequena multidão de curiosos.

A polícia ainda não chegara e já, ali, um repórter, ávido de sensacionalismo transmitia ao vivo pela televisão, a notícia de que o cadáver fora atirado do interior de uma Kombi escura.

Na tomada panorâmica, o cameraman tropeçou na molecada que, ao seu redor, disputava um segundo de celebridade, enquanto o repórter narrava a versão que engendrara para prender a atenção de mórbidos telespectadores de fim de tarde.

Na casa de dois cômodos, marido e mulher discutem enquanto tentam ajustar a imagem do televisor;

- Já tô cansada de falar que precisamos trocar essa tv.

- Não é a tv, ô bem! É essa droga de antena de celular que instalaram aí, no terreno ao lado.

- Né não, benhê. É a...

- Cala a boca!

- Cala a boca ôs caramba! Seu folgado, malcriado...

- Folgada é você, sua...

- Veja!... Voltou!

Nem de longe o cameraman poderia imaginar que o seu tombo estaria provocando uma desavença conjugal...

Com estardalhaço a polícia chega. Sirenes e freadas bruscas. Ação! Afinal eles estavam sendo filmados pelos helicópteros.

- Finalmente, hem?

- O que foi? – pergunta um policial mau-humorado, que, por pouco não se contem diante das câmeras.

- Nada não, seu puliça.

- Fica na sua aí, tá bom?

- Sim, senhor! – responde o popular, disfarçando mal-e-mal a ironia.

Afastando os curiosos, os homens da lei verificam se há sinais vitais na vítima. Nenhum. Mesmo sabendo a resposta, um policial pergunta:

- Alguém viu alguma coisa? Alguém conhece a vítima?

Não, ninguém viu ou ouviu alguma coisa. Se conhecem a vítima? Claro que não, senhor. Nunca a viram. Como sempre, ninguém sabe de nada.

Um recém-chegado, atraído pela reportagem que vira na televisão, alcagüeta o repórter:

- O cara aí da televisão tava dizendo aí um negócio aí de Kombi preta e que o presunto aí tinha sido jogado e que...

Quando os policiais identificaram o repórter e seu cameraman deram de ombros. Já conheciam as figurinhas e suas reportagens fantasiosas. Aguardariam a chegada dos peritos que – sabe se lá que horas – chegariam.

Enquanto isso, por trás das cortinas, a velha senhora de cabelos brancos observava a movimentação lá embaixo. Estava tranqüila tomando uma xícara de chá com bolachas acompanhando o noticiário pela televisão, e sorriu à versão apresentada na reportagem.

À chegada da polícia técnica, veio a lume uma constatação:

- Execução sem sombra de dúvida. Este tiro na nuca foi certeiro e fatal.

- É verdade. Este cara tem uma cara de marginal...

- Você ainda tem dúvida? Não vale a pena a gente perder muito tempo.

- Pois é! E ainda temos aquele suicídio...

- Nada disso. Avisa o chefe que só vamos depois da janta.

No outro dia a reportagem daria conta da morte de um maníaco estuprador, enquanto a senhora de cabelos brancos, do seu apartamento no terceiro andar, fazia manutenção numa PT-380 com silenciador.