Confidências de um Policial Militar

Desde Criança, quando ainda era um "Gurí", meus pais sempre saíam para fazer compras no centro da cidade, eu ia sempre com eles, afinal, ainda era muito jovem para sair sozinho ou para ficar sozinho em casa "O mundo era muito perigoso", diziam eles. Andando com eles pelas calçadas, sempre segurado pelas mãos para não me perder no meio de tanta gente, eu observava alguns homens que me chamavam a atenção em especial, eles estavam sempre fardados, com tonfas ou bonés, usando botas e sempre armados com algo na altura da cintura, que parecia ser algo bem hostil e importante para eles, pois sempre estavam com suas mãos segurando-as. Estes homens estavam em todas as partes, tinham semblante sério, olhar concentrado, observando atentamente todos os movimentos, todos os detalhes, parecia até que nada lhes fugia do olhar, às vezes eu sentia medo, pois quando os observava e pensava que eles não estavam me vendo, de repente, um deles sempre estava olhando em meus olhos, seus olhares eram severos, e eu ficava amedrontado. Intrigado, eu perguntava aos meus pais, quem eram estas pessoas e eles sempre me respondiam:

- São Policiais Militares, meu filho. Eles têm o dever de manter a ordem e garantir a nossa segurança.

Policiais Militares, aquilo soava em meus ouvidos como música, embora ainda não entendesse bem o porquê. O que sentia é que ao mesmo tempo em que os temia, os admirava e desejava conhecer mais sobre o que é Ser um Policial Militar. Via naqueles homens uma muralha, como se eles fossem invencíveis, sobre-humanos, acima de qualquer fraqueza, de qualquer outro ser humano. Fui crescendo e admirando estes homens, conhecendo mais sobre o seu trabalho; honra, dignidade, caráter, coragem, ordem, justiça, igualdade...tudo isso me fascinava. Até que um dia, vi em um jornal que havia aberto um concurso público para a Polícia Militar, não hesitei, tinha certeza do que queria, fiz a inscrição de imediato e comecei a estudar; esquecí a diversão, a família, os amigos, não tinha tempo pra mais nada, apenas estudar, estudar e estudar.

Passaram-se dois meses, era dia de prova, meus nervos estavam à flor da pele, uma sensação de arrepio, ao mesmo tempo que satisfação e esperança, só de pensar que eu poderia realizar aquele sonho, Ser um Policial Militar. Enquanto aguardava a aplicação da prova, ouvia as conversas ao meu redor, a cada palavra, um golpe, sentia como se fosse um punhal perfurar o meu peito e uma revolta sem medidas tomava meus pensamentos, que parecia que eu iria explodir. As pessoas faziam comentários do tipo; "Se eu entrar na polícia eu tô feito, só de pensar no que vou ganhar por fora", "Nossa, policial cata muita mulher, vou fazer a festa", "Só quero andar de boa na Blazer", "Se você quer viver muito na polícia, tem que entrar no jogo, senão é caixão", "Eu tenho Família, acha que vou me arriscar e dar uma de corajoso, vou ficar de boa", "Com esse salário, arriscar a vida, que nada"...

Como aqueles homens poderiam ser policiais? Eles pensavam em todas as desculpas inimagináveis para justificar suas fraquezas e suas futuras omissões e não cumprirem com o seu dever, antes mesmo de começarem a atuar, mas todos queriam fazer parte da corporação e garantir seus empregos. Cadê o caráter, a honra, a dignidade, a lisura, a coragem, a trabalho social, a sensação do dever cumprido e de vidas salvas? Nada disso era real naquela hora, apenas podia ver pessoas egoístas, sovinas, sem caráter, acomodadas, medrosas, desonestas, falsas, exibicionistas, promíscuas, sórdidas, todo o lixo que um policial tinha o dever de reciclar e combater. Acabada a prova, voltei para casa e aguardei os resultados, não sei por que, mas toda esta situação me fez ter mais vontade ainda se me tornar um policial, se antes, quando ainda era um "gurí", via aqueles policiais como heróis e sobre-humanos, agora sabia que eram homens comuns que vestiam aquela farda, mas que para honrá-la, realmente seria preciso ser sobre humano, vestir a pele dos humilhados, dos necessitados, dos desprotegidos pela lei, das pessoas que tinham sido ultrajadas pela tirânia, vitimas de elementos que eram fracos demais para reconhecer suas fraquezas e sentir o peso da consciência em cada um de seus atos. Aguardei ansiosamente o resultado, confiante, pois sabia que este era o meu destino, depois de alguns meses, finalmente, o resultado, estava sendo convocado, havia sido aprovado em todos os testes e deveria começar o treinamento na próxima semana. O sonho se tornara realidade, não me contive com tamanha emoção; chorei, pulei, dei socos na parede, me joguei na cama, me descabelei, abracei meus pais, parecia um doído, mas era apenas um "gurí", feliz, realizado...

Dias, semanas, meses de treinamento duro e a certeza de que aquilo era apenas o começo e que o entusiasmo apenas, não seria suficiente para me manter firme. Ao meu lado, muitos daqueles que não incorporavam o verdadeiro espírito da polícia, haviam passado no concurso e eu sabia que teria que lidar com eles no dia a dia. Finalmente o primeiro dia de trabalho nas ruas, eu parecia o mesmo "gurí", mas agora com uma farda, que para mim era muito mais que um manto sagrado, era a chance de ser útil a uma sociedade desolada pela corrupção, carente de segurança e respeito, desiludida com os órgãos públicos, que ansiava por policiais mais atuantes e honestos, que preservassem os direitos e os deveres de cada um, independente de classe social, cor, religião, sexo, etc. Ao meu lado, meu colega de trabalho, jovem e idealista, a cada passo, e em cada palavra trocada, fomos percebendo que as nossas idéias eram muito parecidas, embora tivéssemos gênios diferentes, mas

complementares. Em pouco tempo uma grande amizade surgiu e mais adiante ele se tornou como um irmão pra mim, sangue do meu sangue, meu parceiro de batalhas, sempre estávamos juntos, a gente de completava, quando um perdia a cabeça, o outro sempre estava mais calmo, e de ocorrência em ocorrência os laços se fortaleciam ainda mais, já nem corria apenas o mesmo sangue em nossas veias, mas parecíamos ter a mesma alma. Os mesmos ideais, a mesma coragem, a mesma confiança, o mesmo empenho, a mesma vontade, o mesmo caráter, a mesma honestidade...

Hoje eu penso, é Deus, foi muito bom estar ao lado dele, foi muito bom lutar contra as injustiças, foi muito bom derramar meu sangue e poupar de pessoas inocentes, foi muito bom chorar de alegria pelas vidas salvas, pelos gestos singelos de gratidão, pela sensação de ter dia a dia o dever cumprido, de dormir em paz, mesmo enfrentando uma guerra, dia após dia, sim Deus, foi muito bom ir contra a maré, sentir os nervos a flor da pele, sentir o sangue animar meus órgãos, isso me fez sentir-me vivo, vibrante e humano. Nos momentos mais difíceis, em que tudo parecia impossível, eu e outros policiais nos tornávamos sobre-humanos e, tenho absoluta certeza, que era suas "mãos" quem nos guiava nestes momentos.

Eu agradeço, imensamente, por te me dado o privilégio de salvar muitas vidas e fazer a diferença na vida de muitas pessoas, embora confesse, que nem sempre tenha tido êxito, o que em incontáveis vezes me deixou triste, decepcionado, revoltado, culpado e perturbado de diversas formas pelos insucessos. Agradeço ainda pelas ameaças que recebi por cumprir meu dever, algumas delas de pessoas da minha própria corporação, ameaças estas que fizeram com que eu sentisse ainda mais valor em minha postura. Agradeço pelas amizades que cultivei na corporação, com pessoas honradas que aprendi a respeitar e admirar intensamente, pessoas que além de me respeitarem como pessoa, respeitavam e respeitam, ainda mais os civis, que tanto necessitam de nossa proteção. E por fim, agradeço por estar aqui, ainda vivo, trabalhando com meu manto sagrado e olhando para este lindo "guri", que me faz lembrar um pouco do sonho que cada um de nós temos e que devemos acreditar sempre, apesar dos intempéries da vida, que às vezes nos provocam dores profundas e quase incuráveis. Agradeço a Deus e novamente a este "gurí" que também me traz força para superar a perda que tive ontem, do meu grande companheiro de serviço e, acima de tudo, amigo e irmão, que partiu cumprindo seu dever, defendendo a justiça, salvando vidas, inclusive a minha. Ele morreu em meus braços, como um herói, ou definindo melhor, como um verdadeiro Policial Militar...