Morte por Espancamento

Dona Luzia Lisboa é uma simpática senhora de setenta e sete anos. Há pouco mais de trinta mora no Parque Dez de Novembro, bairro da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, numa casinha branca de alvenaria no conjunto habitacional Castelo Branco, nas proximidades da reserva ambiental do Parque Municipal do Mindú.

Vai todos os dias à igreja Nossa Senhora de Lourdes, pelo menos uma vez por semana aproveita para passar na feira, comprar algumas verduras, banana pacova, manga, polpa de cupuaçu... algumas vezes fazia caminhadas no CSU, ou no parque do Mindú – ordens médicas, o doutor Azedo a orientou a fazer exercícios leves ao menos uma ou duas vezes por semana.

Filha de maranhenses, viúva de um português que veio para o Norte do Brasil depois da Segunda Guerra, dona Luzia tinha sete filhos e filhas, que lhe deram quinze netos e netas, dois dos mais velhos, um homem e uma mulher, foram morar no Rio Grande do Sul e Alagoas, respectivamente, o terceiro mais velho foi para Guiana Francesa, tentar a vida no garimpo, os outros estavam próximos, o mais novo era secretário municipal em Iranduba e ainda morava com ela.

Todo mundo – ou quase – no bairro a conhece, e gosta de dona Luzia, que também é sempre afável com todos, adultos, velhos e crianças, sempre sorri para as pessoas por quem passa, pára para conversar na rua do Comércio com quase todo mundo que trabalha por ali, camelôs, o moço da banca de revistas, de quem costuma comprar revistas de fofocas, de crochê e gibis de super-heróis para os netos, filhos de Betinho, seu filho mais novo, o secretário municipal.

Como fazia todas as noites, na sexta-feira dona Luzia foi à missa na igreja de Lourdes, no fim da cerimônia religiosa pegou o caminho da Perimetral, para ir até a drogaria comprar remédios para a pressão e o diabetes. Não era muito tarde, e dona Luzia não se preocupava com a violência, ou assaltos, nunca fora roubada na sua vida, e ali no bairro se sentia mais segura, conhecia e era afável até mesmo com os galerosos e galeritos. Mesmo os bandidos gostavam da simpática velhinha e não mexiam com ela, por isso ninguém esperaria que justamente naquela noite, numa sexta-feira, a senhora fosse abordada por três garotos com pouco mais de doze anos, completamente chapados de solvente e cola de sapateiro, armados de facas e porretes, “pedindo” para que ela entregasse a bolsa. A princípio, ela estacou, espantada, pela primeira vez estava sendo assaltada, e o pior é que ela conhecia os três meninos, moravam no bairro da União, mas depois não esboçou nenhuma reação, entregou pacificamente a bolsa, pediu para que os garotos não fizessem aquilo. O maior deles, que ela conhecia como Juninho, gritou para ela calar a boca, e diante do espanto dos outros dois, acertou-lhe uma porretada no rosto, que quebrou-lhe o nariz, e os óculos, espatifando as lentes. Dona Luzia caiu desacordada no meio da rua, e Juninho continuou a desferir cacetadas na pobre senhora, sob o olhar apalermado dos outros dois meninos, que saíram correndo em carreira desabalada, quando ele parou de bater na anciã e olhou para eles, com os olhos esbugalhados, cheios duma fúria demoníaca, e um sorriso sádico na boca. Dona Luzia deu um gemido fraco, e o galeroso voltou a espancá-la brutalmente, só descansando quando seu rosto ficou totalmente desfigurado. Rindo com malícia diabólica, Juninho deixou cair o porrete no chão, do lado do corpo da pobre Luzia, desacordada, respirando com enorme dificuldade. Apenas uma hora depois, dona Virgulina, outra freqüentadora da igreja de Lourdes, velha conhecida, descobriu o corpo e chamou a polícia, e avisou Betinho. Uma ambulância levou-a até o hospital de pronto-socorro, mas era tarde demais... às 22 horas, dona Luzia Lisboa, 77 anos, não resistiu aos ferimentos e faleceu.

No bairro Santa Etelvina, zona norte da cidade de Manaus, Gigante Moisés é um bandido respeitado, traficante de cocaína e assassino de aluguel. Gigante é o apelido que lhe deram, uma ironia, já que Moisés não mede mais que 1,66 metro de altura. Sua valentia e força são inversamente proporcionais ao seu tamanho, Gigante Moisés enfrentava quem quer que fosse, não importando altura, peso, força, ou mesmo melhor armamento. Ele tinha em casa rifles, fuzis e sub-metralhadoras Uzi, mas gostava mesmo era do Oitão, um revólver Smith and Wesson calibre 38, cromado, sempre na cintura.

Na mesma sexta-feira, ele recebeu a liberdade condicional, saiu do presídio do Puraquequara e voltou para casa, onde esperava ser recebido de braços abertos por sua jovem namorada, Lívia, uma adolescente de 17 anos, consumidora de heroína e álcool, que fugira de casa e deixara a escola para morar com o bandido. Porém, quando chegou, a menina não estava a sua espera, como chegaram a combinar meses antes de sua soltura.

No começo da noite, Lívia chegava na casa de madeira de aspecto deplorável, de carona com um rapaz bem alinhado, dirigindo um automóvel Volvo prateado. Assim que ela entrou no terreno e atravessou a soleira da porta da frente, recebeu um soco no queixo, que afrouxou alguns de seus dentes, e ela estatelou-se no chão, ainda batendo com a testa na quina de uma mesinha para televisão. Sob fortes xingamentos, dos quais o mais leve foi “vagabunda”, a garota foi severamente espancada por Moisés, que usou de chutes, pisões e pontapés. Depois, deixou-a dentro de casa, sem prestar socorro, para que ela, por suas próprias forças – se ainda tivesse alguma – fosse buscar a ajuda de alguém, ou chamar uma ambulância, e ele foi para um barzinho há uns trezentos metros de sua casa, beber umas cervejas e acalmar-se.

Depois da quinta cerveja, Gigante percebeu-se sendo observado por uma linda morena alta, de cabelos muito negros e lisos, compridos até as costas, olhos de cor verde-água, muito bonitos, vestida com uma calça justíssima, branca e uma blusinha de alcinha cor-de-rosa, quase transparente. A garota, sabendo-se notada, lançou-lhe sorrisos sensualmente convidativos, com seus lábios carnudos recobertos por um leve brilho labial rosáceo. Gigante Moisés se animou e sorriu-lhe de volta. Chamou o moço que servia as mesas, pediu uma cerveja long neck e ofereceu-a a bela morena, sentada mais para o fundo do bar. O rapaz deu um sorriso enigmático, que se não fosse a cerveja e linda garota a “secá-lo”, já teria puxado o revólver para pedir algumas explicações.

Um pouco depois, a morena levantou-se da mesa onde estava e, caminhando graciosamente, como se flutuasse pelo assoalho sujo e empoeirado do bar, sentando-se então à mesa ocupada pelo perigoso bandido, bem ao seu lado, as coxas dela roçando levemente os seus joelhos. Conversaram por um curto tempo, algumas amenidades, a garota se apresentou, dizendo seu nome de um modo provocante, com sua voz sensualmente rouca e musical: Evangelina. Ele disse seu nome, ela respondeu, com um sorriso deliciosamente malicioso: “Eu já sei teu nome... ouvi falar muito de você, gato...” Gigante Moisés sabia que não havia muita coisa agradável para falarem a seu respeito, mas gabou-se de ser o melhor naquilo que havia de pior. Próximo das nove horas da noite, ela sussurrou em seu ouvido, que seria bom continuarem a conversar em um lugar mais tranqüilo e reservado, e Gigante Moisés, com um largo sorriso, chamou o rapaz, para encerrar sua conta, e tomarem o caminho de sua casa. Quando estavam entrando no beco mal-iluminado onde ele morava, Moisés foi atingido por um golpe muito forte, na nuca, e caiu pesadamente no meio da rua de chão batido. Levantou-se meio trôpego, uma pequena parte por causa do soco, outra grande parte por conta da bebida, endereçando um olhar confuso para Evangelina, parada a um metro dele, com um sorriso agora maquiavelicamente malicioso. “Sua vadia” disse ele “o que significa isso?” Ela deu uma risada cínica. “Não sou tua mãe pra você me chamar assim, Gigante!” retrucou com sarcasmo. Seus olhos brilharam, agora parecendo prateados sob a luz fraca da lâmpada de mercúrio, o sorriso se desvaneceu, e os lábios dela fecharam-se num ricto que não deixava muitas dúvidas quanto a sua verdadeira intenção. Mais rápido do que seus olhos podiam ver, Evangelina partiu para cima de Moisés, golpeando-o com tapas, socos, chutes e rabos de arraia. O bandido espantou-se com a força e a velocidade dela, tentou defender-se de alguns golpes, e golpeou o ar umas duas vezes, antes de receber uma rasteira que o levantou no ar, como se fosse uma sacolinha plástica levantada por um redemoinho, em seguida, ainda no ar, sendo golpeado por duas pernadas e uma pisada no alto da cabeça, que o fez cair de cara no chão, com tanta força que sentiu ceder o solo arenoso sob seu corpo. Sentiu ela montar em suas costas, afundando-o ainda mais no chão, ouviu a base da coluna estalar, sentiu com certeza umas duas costelas quebrarem sob o peso da garota, que agora levantava sua cabeça, enfiando dois dedos em seu nariz e o puxando com força, as unhas compridas e afiadas fazendo-o sangrar.

Sentiu o hálito quente de Evangelina próximo de seu ouvido, ela aproximou os lábios de sua orelha esquerda, falou: “ISTO... significa que você já abusou demais do direito de errar, 'Gigante'... e eu sou o anjo da morte que veio pra te mandar ao encontro de todas as pessoas a quem você machucou, abusou e destruiu!” Seus caninos afiados enterraram-se na garganta do marginal, sugando lentamente o seu sangue, e com ele esvaía-se a vida do perigoso criminoso.

Com seu ronco inconfundível, a Harley-Davidson ano 2005, modelo Fat Boy prateada entrava na rua 21 do conjunto Castelo Branco, exatamente às 11 horas da noite, até chegar ao portão de uma casa de alvenaria branca. Evangelina alugava um JK atrás da casa na rua 21, com uma cobertura onde podia estacionar sua possante motocicleta. A morena passou pela casa de sua locadora, que mesmo para aquele horário estava silenciosa demais, levando sua Fat Boy até os fundos da casa, onde estacionou, em frente à pequena peça. Dona Luzia talvez já estivesse dormindo, pensou Evangelina, mas Betinho, a esposa, Luciana, e o filho, Giovanni, estariam ainda acordados, assistindo tevê, ou qualquer coisa assim. Mas a casa da velha senhora estava toda trancada e escura, não se escutava nada, nenhum movimento, nem o som da televisão, nem o som do rádio, ou cliques no mouse do computador de Giovanni. Um horrível pressentimento foi sentido, apesar do calor de 28 graus, Evangelina sentiu um frio gélido percorrer sua espinha, sabia que algo tinha acontecido. O toque do aparelho celular, vibrando insistentemente e quebrando o silêncio com força, lhe fez sobressaltar-se, ela atendeu, dizendo alô. Do outro lado era a voz de Luciana, ela parecia estar chorando, a voz soou muito embargada: “Evangelina? É a Luciana, mulher do Betinho... dona Luzia faleceu...” A garota gaguejou, andava de um lado para o outro, como fera enjaulada. “Dona Luzia... como, o que aconteceu, onde ela está? On... onde vocês estão?” A moça ficou em silêncio, por um longo tempo, Evangelina repetiu “alô”, pensando que a ligação havia caído. “Estamos saindo do 28 de Agosto... dona Luzia... é horrível, ela foi espancada, Evangelina...”

Espancada até a morte... com crueldade e covardia... Evangelina sentiu como se o sangue fervesse em suas veias. Dona Luzia Lisboa era sua melhor amiga, mais que isso, era para ela como uma mãe, lhe lembrava a sua avó, que lhe criou, antes de ser vampirizada, no Maranhão. Mais importante de tudo: sabia que Evangelina era uma sanguessuga!

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 23/10/2009
Código do texto: T1883256
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