LAURA

Duas horas da manhã e Carlos ainda não havia conseguido dormir. Perambula pela casa às horas, tornar-se um fantasma a assombrar quarto, sala, cozinha e banheiro. Se a esposa, ou melhor, a ex-esposa ainda estivesse com ele com certeza já o teria obrigado a deitar-se. “Quanto tempo faz que Laura se foi?” indaga a si mesmo. Não se recorda, apenas sente um vazio na alma que o consume dia após dia. Afugenta aquelas torturantes recordações.

Acende um cigarro e sai. Lança contra as estrelas uma generosa nuvem de nicotina e alcatrão. Através das grades do muro percebe um carro estacionado na esquina. É um Monza Chevrolet, vermelho, que desde do inicio da noite está ali.

Então uma luz bruxuleante, fantasmagórica, surge dentro do veiculo. Carlos observa intrigado. A luz intensifica tornando-se chamas. Ele percebe a silueta de alguém se debatendo contra o fogo. Num ímpeto abre o portão e core até o veículo. As chamas estão maiores. Carlos força as portas em vão, estão trancadas. Soca o vidro até ferir as mãos, mas não consegue quebrá-lo, nesse momento o Monza tornara-se incandescente, uma esfera metálica de fogo. Chegam curiosos e em seguida os bombeiros, a noite está perdida.

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- Por que o senhor estava acordado? Carlos ergue os olhos deparando-se com o rosto rechonchudo do delegado.

- Me desculpe, mas eu já lhe disse sofro de insônia e naquela noite, em especial, eu não conseguia dormir.

- Ah, sim! O policial caminha ao seu redor, apanha um papel na mesa ao seu lado e volta a observá-lo. “O senhor é engenheiro, não é?” indaga o policial.

- Arquiteto! Responde Carlos.

- Arquiteto!? Pois, bem, o que está fazendo na cidade e especificamente naquele bairro tão afastado?? Carlos balança a cabeça jogando-a para frente.

- Senhor, eu já lhe respondi isso: não suporto apartamento, prefiro casa e aquela foi à única que consegui. Estou na cidade para apresentar um projeto a uma construtora.

- Por que não alugou uma casa melhor, mais condizente com a sua posição?

- Como eu disse a imobiliária só tinha aquela casa disponível. Neste momento entra na sala um homem de terno preto.

- Com licença senhor delegado Matias, sou Mário Sillas e sou advogado do senhor Carlos Lemes Petrucci. Os dois se cumprimentam. “ “Conforme verifiquei, meu cliente já assinou o depoimento e não há razão alguma para que ainda permaneça retido nesta delegacia”. O policial fita o advogado.

- Claro que não há. Estávamos apenas conversando, pode sair à hora que quiser.

- Obrigado!! Carlos ergue-se da cadeira, apanha o blazer e ladeado de Mário sai da delegacia. “Obrigado por me tirar deste lugar, mas quem o enviou? Indaga Carlos.

- A senhora Laura Martins. Responde o advogado.

- E como está ela??

- Lamento, eu não a conheço, nem sequer falei com ela, apenas fui designado pelo escritório para acompanhar o seu caso. Carlos fica desapontado. Os dois entram num veículo e desaparecem no labirinto de ruas e avenidas.

O delegado Matias examina os papeis sobre a sua mesa e não percebe a chegada do outro policial.

- Olá, Matias!

- Olá, Fernando. Responde sem erguer os olhos.

- O que tanto atrai sua atenção? Neste momento o delegado fita o recém chegado.

- O caso da mulher que foi encontrada carbonizada dentro do carro na zona sul.

- O que está errado?? Indaga Fernando.

- Esta aí o problema: algo nessa história não está certo, no entanto não consigo ver o que é.

- Se quiser posso dar uma olhada nos papeis. Oferece ajuda o delegado Adjunto.

- Está bem!! Está aqui a papelada toda, com depoimentos, laudos periciais e fotos. Tenho uma reunião com o secretário de segurança logo mais, amanhã cedo me devolva os papeis.

- Ok!!! Vou dar uma olhada em tudo hoje mesmo. Fernando apanha os documentos e retornar a sua sala.

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Já havia se passado trinta dias desde a ultima vez que estivera naquela delegacia e agora estava ali novamente com o delegado gorducho a sua frente ladeado por dois policiais mau encarados.

- Senhor Petrucci como era o seu relacionamento com a sua esposa? Indaga o delegado.

- Delegado Matias esta é uma pergunta de foro intimo que em nada tem haver com o caso. Intervém prontamente o advogado.

- É apenas um pergunta. Se o seu cliente não quiser responder compreenderei.

- Tudo bem, eu respondo. Ficamos casados por dez anos e como todo casal tínhamos lá nossas diferenças. Fala Carlos.

- Por que se separaram? Insiste o delegado.

- Como eu disse, tínhamos nossas diferenças e com o tempo não conseguimos resolve-las. Decidimos então separar e cada um cuidar da própria vida. Então o delegado retira da gaveta alguns papeis.

- Quanto às agressões que sua esposa sofreu e que estão registradas nesses boletins policiais?

- Senhor delegado se insistir em invadir a privacidade do meu cliente dessa forma nos retiraremos imediatamente. Explode o advogado.

- Doutor Mário, tenho uma ordem judicial que me autoriza fazer as perguntas que quiser ao seu cliente. Então, por favor, vai baixando a bola . Fala com autoridade e severidade o delegado. O advogado silencia-se imediatamente.

- Senhor delegado eu não sei o que levou Laura a forjar as agressões e procurar me prejudicar daquela maneira, o que eu sei é que eu a amava e jamais seria capaz de tamanha covardia. Nunca a agredi. Responde Carlos visivelmente perturbado. “Mas o que tem tudo isso com o carro em chamas? Eu tentei salvar a vitima, liguei para a policia informando o ocorrido, compareci a delegacia toda vez que o senhor me convocou, a propósito, tinha uma viagem de negócios para hoje. No entanto adiei a tudo para estar aqui. Por favor, me responda por que estou aqui?” Descontrola-se Carlos. O delegado ergue-se de sua cadeira e aproxima-se.

- Senhor Petrucci, vou lhe contar uma pequena historia a respeito da vitima. Fala serenamente o delegado Matias. “Ela foi raptada e espancada até a morte. Seu corpo foi atirado no porta-malas do Monza, que foi providencialmente incendiado. Mas em seu depoimento o senhor afirmou que viu alguém dentro do veiculo e que tentou prontamente salva-la. O senhor chegou a descrevê-la com detalhes aos policiais que estiveram na cena do crime...”

- Sim, eu me recordo de tudo o que disse, mas eu estava sem dormir a quase dois dias e com certeza isso afetou minha mente. Interrompe Carlos a narrativa do delegado.

- Claro! No entanto os detalhes são impressionantes. Veja como o senhor descreveu a vitima: mulher branca, cabelos loiros, aproximadamente 1,70 de altura, aparentando uns 30 anos de idade. Não acha que é muita coincidência o senhor descrever como era a vitima que no momento do veículo em chamas já estava morta a horas? Carlos leva às mãos a cabeça, parece que está mergulhado num daqueles pesadelos infindáveis, sua cabeça começa a doer, não compreende o que está acontecendo, não há como se defender daquelas acusações, sente-se só e desamparado. É a mesma sensação que sentiu quando Laura o deixou, é a mesma sensação que sentia quando criança sua mãe o castigava.

- Senhor delegado, por mais absurdo que pareça todas essas coincidências é possível que sejam apenas coincidências. E isso não pode ser usado contra o meu cliente. Intervém o advogado.

- Concordo com o senhor. O engraçado é que há outras coincidências envolvendo o seu cliente. O delegado apanha outra folha de papel sobre a mesa. “O senhor Petrucci é uma pessoa metódica, sempre viaja utilizando a mesma companhia aérea e aluga os imóveis da mesma imobiliária, seja para onde for. Assim foi possível, com um mandato judicial, obter o seu roteiro de viagens nos últimos três anos. Neste período ele esteve em todas as cidades onde foram registrados casos de homicídios semelhantes aos da zona sul. Outro detalhe ele sempre hospedou em locais próximos de onde eram localizadas as vitimas. Outra coincidência todas as vitimas eram mulheres brancas, 1,70 de altura, loiras e aparentavam 30 anos de idade.”

- Coincidência, apenas coincidência. Isso não condenará o meu cliente em nenhum tribunal. Responde triunfante o advogado. Carlos, sem silencio, luta contra a vertigem que o ataca. Sente seus pés flutuarem, sua cabeça transforma-se num balão e as vozes ao seu redor vão se tornando cada vez mais distantes.

- Claro! Outra coincidência, senhor advogado, todas elas se chamavam Laura.

- Senhor delegado isso apenas se caracteriza como mais uma infeliz coincidência, que tragicamente conduz ao meu cliente, mas que de maneira alguma o incrimina. O delegado fita o advogado por alguns minutos.

- De fato! Senhor Petrucci sabe como os veículos foram incendiados?

- Não! Responde com dificuldade Carlos.

- Em todos foram implantado mecanismo incendiário. Como era constituído de materiais comuns foram facilmente consumidos pelas chamas e pouca coisa sobrou deles. Mas o que foi instalado no Monza da zona sul não foi totalmente consumido pelo fogo, sobrou um pedaço e no qual, olha só que azar, estão digitais. O senhor sabe de quem são essas digitais? Carlos torna-se pálido, suas mãos tremem, sente que a qualquer minuto cairá sem sentido.

- Não! Responde com voz tremula.

- São suas senhor Mário Sillas.

- O que??? Grita o advogado e antes que dê um passo os dois policiais, que estavam ao lado de Matias, o imobilizam. “Delegado Matias que brincadeira é essa?” Indaga furioso o advogado. Triunfante o delegado retorna a sua cadeira. Carlos quase entra em colapso.

- Senhor delegado eu não estou entendendo nada. Fala finalmente o atordoado arquiteto.

- Eu explico! O senhor Mário Sillas a uns cinco anos tentou lesar uma seguradora em dois milhões de reais. Na época foi usado um mecanismo incendiário igual ao encontrado no Monza da zona Sul. Ele foi preso, indiciado e processado. Quando localizamos as digitais procuramos nos bancos de dados o dono delas. A surpresa foi descobrir que o seu advogado já tinha passagem pela policia.

- Mas o que isso tem haver comigo? Por que tamanha violência e brutalidade? Indaga Carlos cada vez mais atordoado.

- Calma senhor Petrucci, eu lhe explicarei. Todos esses assassinatos, desde o inicio, tinham como único objetivo atingi-lo.

- Isso é loucura, um absurdo, delegado eu vou processá-lo e arrancar da sua cara este sorriso escroto... Grita a pleno pulmões o advogado.

- Levem o pássaro para a gaiola. Ordena Matias aos subalternos, que prontamente obedecem.

- O senhor está dizendo que Mário Sillas assassinou cinco mulheres que eu nunca vi com intuito de me atingir? De que forma, iria assassinar-me também?

- Não, não! E Mário não estava sozinho, ele tinha um chefe. Essas pessoas o queriam bem vivo, no entanto totalmente incapaz de tomar qualquer decisão. Então elaboraram um plano em que as mortes dessas mulheres estivem relacionado com o senhor, sem que pudesse incriminá-lo, mas que o senhor figurasse como possível suspeito.

- Por quê?

- Essas pessoas o conhecem muito bem, sabem como pressioná-lo. Então o colocaram onde queriam, ou seja, como principal suspeito dos crimes. O seria pressionado pela policia o senhor entraria em colapso, desencadeando uma crise depressiva que o incapacitaria antes mesmo do processo encerrar.

- Me desculpe, mas isso é loucura, eu nunca tinha visto o senhor Mário Sillas antes. O que ele ganharia com tudo isso??

- De fato o senhor não o conhece, mas a sua comparsa sim.

- E quem é ela?? Indaga Carlos curioso.

- Laura Martins.

- Laura? Balbucia Carlos.

- Sim! Ela que é a mentora de todo o plano. Laura conheceu Mário na faculdade, sabia que podia contar com ele para ajudá-la.

- Mas por que ela fez isso? Qual o motivo? Indaga atônito Carlos.

- Trezentos milhões de dólares!

- Eu não possuo esta quantia de dinheiro. Para ser bem sincero se juntar todos os meus bens não chegam a um terço deste valor.

- A uns quinze anos o senhor herdou do seu tio Arnaldo Petrucci um propriedade no litoral. Nessa propriedade sua esposa descobriu a pelo menos uns cinco anos petróleo. O poço foi avaliado em trezentos milhões de dólares. Ela cogitou assassiná-lo, mas Mário orientou a não fazer isso. Pois, como o senhor adquiriu a propriedade antes do casamento ela não entraria no espólio. Assim a mente de Laura trabalhou noutra direção: torná-lo incapaz mentalmente e ela se tornaria a esposa devotada, uma vez que legalmente ainda não estão separados. Dessa forma a esposa abnegada poderia fazer o que bem entender com a sua fortuna.

- Quando ela forjou as agressões já tinha elaborado toda essa farsa? O delegado aquiesce. “Como o senhor descobriu tudo isso?”

- A descoberta das digitais no que restou do mecanismo incendiário deu outro rumo as investigações. Quando chegamos a sua esposa ela, sem arrependimento ou remorso, nos relatou todos os detalhes.

- Confesso que ainda estou chocado com toda essa história. Levarei algum tempo para compreender.

- Acredite em mim, senhor Petrucci, essa gente maluca está por todos os lados. Os médicos os chamam de psicopatas, sociopatas, desajustados e por aí vai. Mas esses desgraçados aprontam cada coisa que é difícil de acreditar. Carlos permanece em silêncio por alguns instantes.

- Senhor delegado, posso ir embora?

- Claro, claro! Boa sorte. Carlos, após aperta a mão de Matias, retira-se da sala. A saída ele passa pelo delegado adjunto.

- Missão cumprida, Matias? Indaga Fernando.

- Cumprida, meu amigo.

- Sorte do senhor Petrucci você ter ficado com a pulga atrás da orelha em relação ao caso.

- Esse nosso trabalho nos revela cada coisa.

- É verdade! Mas como ele descreveu tão bem as vitimas? Você já pensou nisso? Questiona Fernando.

- Já! Veja isso? Abrindo a pasta Matias entrega ao colega uma foto.

- Caramba! As vitimas se pareciam com a tal Laura Martins.

- Exato! Ele ainda estava apaixonado por ela e a via para todo lado que olhava. Naquela noite era a sua imaginação pregando-lhe uma peça. Laura também sabia disso, por esta razão escolheu aquelas pobres coitadas como vitimas.

- Que loucura! Meus parabéns, fez um ótimo trabalho.

- Obrigado! Vamos almoçar?

- Só se for agora.

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Sannyon
Enviado por Sannyon em 28/01/2010
Código do texto: T2055826
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