O “Mata - Porcos”

Chamava-se jacinto, tinha o semblante triste, talvez próprio dos que o destino leva para certos ofícios, convivia com a morte a cada dia, mesmo sendo a morte de porcos, não era uma coisa boa de se ver. Jacinto trabalhava no matadouro de porcos e sua única ferramenta era um punhal, que era mantido muito bem amolado, com o qual Jacinto matava os porcos sempre com um golpe certeiro no coração, a profissão parecia deixar naquele corpo um peso extra e invisível que o deixava meio que curvado e uma eterna expressão de cansaço no rosto, embora procurasse ter nos olhos sempre um ar de ternura quando olhava às pessoas, talvez pela necessidade de ser querido por alguém, havia em sua pele rugas e marcas que não pareciam trabalhadas apenas pelo tempo, mas também pelo acúmulo de pequenas tristezas de origens externas, como desprezo de alguns, ironias de outros, que faziam questão de mostrar aquele homem, que era uma pessoa de menor valor, pela função que exercia, esses fatores faziam com que Jacinto mostrasse uma idade física bem mais avançada que a cronológica. Era uma pessoa tranqüila, de poucas palavras, gestos lentos, tinha por habito todos os dias tomar uma aguardente no bar do Feliciano antes de voltar para casa, e foi justamente nesse bar que tudo começou.

Era dia de São João, Jacinto passou pelo bar do Feliciano apenas para uma aguardente, estava ansioso para chegar em casa e se arrumar para as festividades do dia do padroeiro da cidade, havia comprado uma camisa azul, detestava o vermelho do sangue que tinha que conviver no dia-a-dia, iria estrear a camisa nova naquela noite. Foi até balcão, tomava sua aguardente, quando uma voz sarcástica falou:

_Como vai “Mata - Porcos”?

Jacinto virou e viu Totó Vieira, com riso debochado nos lábios, o arenque na mão direita, batendo contra a palma da esquerda, com ar de desafio.

Totó Vieira, que na verdade chamava-se Antônio Vieira, era um homem forte e muito alto, com mais de um metro e noventa, temido e respeitado por todos os moradores da cidade de São João, na verdade mais temido do que respeitado, muitas atrocidades a ele eram imputadas, porem quase todas sem provas e as que se podia comprovar acabavam caindo no esquecimento por falta de coragem de qualquer morador da cidade para incriminá-lo.

Totó Vieira que era dono de muitas terras, gados e de toda uma riqueza de procedência duvidosa, era socialmente também muito influente, e funcionava como uma espécie de mediador em muitas desavenças, embora sua reputação não o recomendasse para tal função, tinha uma relação muito estreita com policiais da capital e usava dessas amizades inclusive para efetuar prisões de possíveis infratores da lei ou da ordem publica.

_ Meu nome é Jacinto da Silva, senhor. Respondeu Jacinto, à provocação.

¬_ Para mim você é o “Mata - Porcos” e fim de papo. Falou Totó Vieira alteando a voz.

_ Meu nome é Jacinto da Silva, senhor.

_ Você esta querendo me afrontar?

¬_ Não senhor, só que eu não gosto que me chamem desse nome e senhor tem que respeitar.

_ Eu vou te mostrar o respeito. Disse Totó Vieira se levantando e desfechando um golpe forte e certeiro com o cabo de prata do arenque contra o nariz de Jacinto, abrindo um grande corte, este ainda tentou reagir, mas o homem muito maior e mais forte o ataca com uma série de socos no supercílio, boca, olhos, vai esmurrando o rapaz ate que este cai do lado de fora do bar, ainda batendo a cabeça no meio fio, que causa mais um grande talho na testa.

Totó Viera vai até o balcão toma o resto de sua cerveja, paga a conta, monta em seu cavalo e parte como se nada tivesse acontecido.

Com a saída de Totó Vieira de cena, alguns conhecidos tomaram coragem e se aproximam para oferecer ajuda a Jacinto, que recusa e com surpreendente lucidez, pede apenas que o deixem por uns instantes para se restabelecer. Levanta-se depois de algum tempo vai ate a barbearia em frete e observou no espelho o próprio rosto, completamente desfigurado, todo ensangüentado, os dois supercílios cortados, o olho direito havia fechado, o nariz parecia dividido ao meio com um corte horizontal causado pelo golpe do arenque e que ficaria torto para sempre, causando-lhe dificuldades na respiração e sempre pronto a recordar lê este momento de sua vida.

Saiu da barbearia voltou ao bar onde tentou pagar a aguardente que havia consumido, o que o dono do bar visivelmente constrangido com o episódio recusou-se receber. Dali caminhou ate a casa de Ângelo, o fotógrafo.

Ângelo que tinha por volta dos quarenta anos, nunca se casou e tinha gestos bastante afeminados o que causava comentários maldosos na cidade, dizia ter uma noiva em uma cidade distante, mas nunca foi visto em companhia feminina. Era fotógrafo dedicado recebia constantemente revistas da capital para estar sempre atualizado com na profissão. Quando viu Jacinto quase teve uma crise de nervos

_ O que foi isso Jacinto? Você precisa de um atendimento médico urgente. Gritou Ângelo com seu jeito espalhafatoso.

_ Não foi nada meu amigo, eu só preciso que você tire algumas fotos do meu rosto.

_ Mas como tirar foto de você nessas condições, homem?

_ Eu já lhe pedi algum favor nessa vida Ângelo?

¬_ Não, nunca.

¬_ Pois estou lhe pedindo um agora, tire fotos do meu rosto, para que eu nunca mais me esqueça o que aquele cidadão fez comigo, o papel é mais fiel para guardar marcas que o tempo tenta apaga de nossa memória.

Depois deste dia Jacinto tornou-se mais fechado e mais taciturno, saia menos de casa e dizem que nas poucas vezes que via Totó Vieira dizia baixinho:

_ Eu vou te matar como se mata um porco.

Passaram-se sete anos e mais uma festa de São João estava sendo comemorada. Totó Vieira que tinha agora pretensões políticas contratou uma banda da música de outra cidade para animar a festa, já que em São João ainda não havia uma banda, que seria formada logo assim que Totó Vieira fosse eleito. Arrematou também várias prendas no leilão, afinal de contas toda a renda seria revertida às obras da igreja, e ele como bom católico...

Tudo corria as mil maravilhas, a queima de fogos, também patrocinada por Totó Vieira, foi um sucesso, havia uma grande variedade de atrações para a criançada, barraquinhas, fogueira com batata-doce, pau-de-sebo, pescarias de brindes, até que de repente saindo não se sabe de onde, Jacinto crava o punhal no coração de Totó Vieira, que embora rodeado de bajuladores, nada puderam fazer contra a surpresa e a premeditação que foram fundamentais para que Jacinto tivesse êxito em sua vingança. Quando alguns tentaram uma reação Jacinto ameaçou:

_Quem vier eu furo também, e não adianta socorrer esse ai, não, o punhal esta envenenado.

Jacinto fugiu com o punhal ensangüentado na mão e nunca mais foi visto,

Totó Viera morreu antes que qualquer socorro pudesse ser providenciado.

No dia seguinte São João estava em polvorosa, um esquadrão especial da polícia chegou da capital para capturar o perigoso “Mata - Porcos”, que se tornou imediatamente uma celebridade, embora poucas pessoas conseguissem ligar o apelido à pessoa, já que Jacinto, agora mais conhecido como “ O “Mata - Porcos” ou “O Assassino de Totó Vieira”, era daquelas pessoas que a gente só lembra quando vê, daquelas pessoas que parecem ter parentesco com camaleão, são quase invisíveis, como se tivesse o poder de parecer parte do ambiente onde estão.

Toda a população classificava o crime como bárbaro, hediondo, brutal, embora no íntimo a grande maioria gozava de uma sensação de alívio com o inesperado desaparecimento do fanfarrão Totó Vieira do convívio social da pacata São João.

Ao entrar na casa do procurado, a polícia encontrou sobre a mesa da sala seis fotos, cada qual em sua moldura, formando um semi-circulo, diante do qual Jacinto se sentou todos os dias dos últimos sete anos, para observar seu rosto completamente desfigurado e assim acumular raiva, acumular ódio e alimentar seu desejo de vingança. Sobre a mesa ainda a camisa azul que nunca foi usada e em um pedaço de papel, já amarelado pelo tempo, apenas uma frase: _ Eu o matarei, como se mata um porco.