A Muquirana, capítulo 1

- Mota, tu ouviu alguma coisa sobre o caso Virgínia Weismann?

- Depende. Acho que só ouvi o que todo mundo ouviu e viu na TV. E aquela meia-dúzia de véio que ouve o programa do Assis na A.M.: a coitada da alemoa morreu em casa, sozinha, sem ninguém para acudir. É uma tristeza, a velhice...

- Tá, mas eu sei que tu já deve ter ido "colher" alguma coisa a mais com a vizinhança.

- É lógico!

- E não vai me contar?

- Não - respondeu Baltazar Mota, sem disfarçar o sorriso, saboreando a indignação muda do concorrente.

- Mota, tu é um filho da puta! - disse Francisco Garcia, o Chico Garça, jornalista do Diário de Pereirópolis, enfiando a alça da bolsa a tira-colo, batendo a porta do escritório do repórter-detetive. Mota deu de ombros e continuou comendo seu caqui, às fatias.

Mota tinha o cuidado de deixar as sementes enfileiradas sobre o tampo de vidro da mesa. Cinco, ao todo. Enquanto mastigava, com a ponta da faca abriu a primeira das sementes do caqui em duas metades, revelando seu miolo: uma colherinha. A segunda, uma faquinha. A terceira, com uma certa expectativa, era novamente uma colherinha. Restavam duas. A quarta semente continha outra faquinha, o que jogou a "decisão" para a última semente. Mota enfiou na boca mais um pedaço da fruta, e, com um suspiro, abriu a peça final de seu oráculo. Incrédulo, sobre a palma da mão estavam duas metades da quinta semente: em uma, uma pequena faca; na outra, uma pequena colher. "Merda", pensou Mota, ou falou em voz alta, ele não lembrava "vou ter que escolher no cara-ou-coroa por quem vou começar a investigar..."

Fazia um calorão de trinta graus naquele dia. Mota decidiu tomar um lotação na praça e voltar até o bairro da defunta em questão, a senhora Virgínia Weismann. Na banca, além de um suco de laranja gelado, o detetive comprou a edição daquele dia do periódico da cidade. Indo direto para a página policial, não pode conter um sorriso de satisfação. Estava lá, como imaginou, a matéria completa sobre o caso que, se não fosse por ele, teria sido veiculado não naquela seção, mas somente no obituário, como o de tantas outras velhinhas encontradas por parentes.

No ônibus, indo em direção ao bairro Santa Tereza, leu a reportagem, assinada pelo mesmo Chico Garça, de cuja presença acabara de se livrar:

Na terça-feira última, Eduardo Weismann Marques, 23, relatou a este repórter que, em visita à casa de sua avó, Virgínia Weismann, 69, acabou por encontrá-la morta, sobre a cama. Abalado, chamou a polícia pelo 190, e, em seguida, ligou para sua mãe, filha de Virgínia, a professora Valquíria Weismann Marques. Não havia sinais de arrombamento ou luta. A casa da velha senhora estava impecável, como de costume, a não ser por um detalhe: segundo Eduardo, havia louça na pia, e pela quantidade de pratos e talheres sujos, duas pessoas haviam feito refeições. Pela observação do neto, nada foi roubado, uma vez que tanto o automóvel quanto a carteira, inclusive dinheiro e cartões de banco, estavam na casa. Os policiais civis encarregados do caso, José Carlos Magalhães e Pedro Barbosa, dizem que a investigação está em curso, e, com sua habitual falta de tato para com os profissionais da imprensa local, dizem não ter nada a declarar.

Os passageiros, o cobrador e o motorista devem ter ouvido a gargalhada que Mota soltou, quando o ônibus chegava à ponte sobre o Rio Macaco. Não só porque achava graça de os inspetores Magal e Barbosinha tratarem o Chico Garça como um idiota, mas porque a maior parte das informações que o jornalista publicou não fora ele quem as obtivera, mas o próprio Mota.

A casa da finada Dona Virgínia estava interditada pela polícia, como era de se esperar. Mas, diferentemente dos filmes, não havia um policial para impedir que os curiosos tivessem acesso. A lei brasileira, de qualquer maneira, impede que uma pessoa estranha adentre no domicílio alheio sem ser convidado. Entretanto, Mota não conseguia lembrar de nenhum trecho do código civil em que dissesse que a pessoa, de posse da chave fosse impedida de entrar onde quer que fosse.

Agora, restava saber: com quem Mota conseguiria a chave da casa: com a "faquinha" Eduardo, o neto da falecida, ou com a "colherinha", a filha, Valquíria?

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¹. O detetive Bergamota usa a semente de caqui como um "oráculo" para tomar algumas decisões em suas investigações. Não é muito científico, mas ele jura que isso funciona.

². Os investigadores Magal e Barbosinha são protagonistas de outros contos policiais, como este: http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/1270201

³. Acompanhe também no blog: http://bergamota-junior.blogspot.com