A Mesma Coisa

A Mesma Coisa

“Meio dia eu só penso em poder parar, depois penso na vida pra levar...”.

Ele desligou o rádio relógio e numa batida de perna regular, em cerca de 12 minutos chegou na delegacia às 8 em ponto.

- E aí delegado? Zuzo? – indagou Francisco, investigador recém formado.

Dalton resmungou que sim e foi para a sua sala. Mesmo tendo entrado na cama com as galinhas, tinha a impressão de não ter dormido.

- Bom dia, doutor, trouxe as torradas e o chá – disse Larissa, afastando os papéis da mesa e acomodando a bandeja.

- E o morto? Alguma novidade? – quis saber ele, mordiscando uma torrada.

- Está com o legista no subsolo – respondeu Larissa, que detestava mortos – até agora nada, ninguém reclamou o corpo. Ele deixou uma carta, parece que era um cientista e estava fazendo um experimento...

- Cientistas...- ruminou Dalton, balançando a cabeça e dando cabo da outra torrada.

- Nessa madrugada foram presos 5 rapazes que se dizem alemães...

- Hum hum...vamos vê-los.

Todos os televisores da delegacia estavam ligados no mesmo canal, esperando a transmissão do milésimo gol de Ademir da Guia. Bandeirolas do Machester enfeitavam a sala das datilógrafas ao passo que no canto, junto ao bebedouro, três investigadores experientes jogavam xadrez e comentavam sobre os 5 alemães que estavam atirando pedras na fachada de um teatro, às 3 da matina.

- Vocês não se parecem com alemães – observou Dalton, olhando os rapazes na cela única do andar térreo. Todos magros, tostados, trajando bonés e camisetas regata - Documentos?

Cada um esticou a mão exibindo a identidade. Dalton examinou os documentos concluindo que as torradas não fizeram efeito, e passou a ler os nomes em voz alta:

- João Grundt, José Schritzmeyer, Paulo Buhnaed, Jorge Witte, Etevaldo Weisflog...Estavam jogando pedras num teatro...por que?

Num dos cantos da cela havia um adesivo verde e amarelo com os dizeres “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

O mais alto dentre os rapazes, de nome João, se aproximou das grades e respondeu:

- Sou mestre carpinteiro e ajudei a construir aquele teatro. Soubemos que vão demoli-lo para erguer um edifício, acho que, acho que foi uma atitude de revolta, da nossa parte.

- Os outros também são mestres carpinteiros?

- Não, só eu.

- Tiveram alguma coisa a ver com a construção do teatro?

- Não, só eu.

O delegado grunhiu alguma coisa e voltou-se para Larissa, que por seu turno olhava os rapazes com olhos arregalados:

- Você não vai querer ir ver o morto comigo, vai?

Ela estremeceu e negou.

- Então cheque esses documentos no Google, vou ver o morto.

Dalton passou por uma sala grande de luzes frias no exato instante em que uma freira conduzia, com vara de marmelo, uma dúzia de meninos e meninas que foram pegos fumando crack durante a madrugada. Para chegar a sala do legista tinha de atravessar o corredor dos cartazes e descer um lance de escadas. No corredor dos cartazes chamou-lhe a atenção uma peça feita com aerógrafo, que reclamava a perda de uma lambreta.

Desceu com dificuldade os degraus e se deparou com Jaqson, o legista, ao lado de um corpo envolto em lençol branco. Jaqson tinha deixado crescer a barba e estava usando uma bengala.

- Que negócio é esse de bengala? – indagou o delegado, aproximando-se do cadáver.

- Estou imitando o legista do CSI – avisou o legista, cujo primeiro nome era Miguel.

Retiraram o lençol e apareceu um rosto regular, aparentando meia idade e um ar austero, um ar de quem talvez vivesse de acordo com a própria capacidade de aceitação do destino. Não obstante, as duas têmporas estavam chamuscadas. No lado direito o ferimento era muito maior.

- Suicídio? – argüiu Dalton, com a displicência de quem já conhece a resposta antes de perguntar.

- Com um 22 – emendou Jaqson – deixou uma nota, hã, não está mais comigo, foi para a análise, dizia mais ou menos assim, “Sou cientista e faço experimentos metafísicos. Pretendo contestar a afirmação de que deste mundo nada se leva. Para tanto, coloquei duas moedas de 1 real no meu bolso direito”.

- Quantas moedas você encontrou? – perguntou Dalton, ao mesmo tempo em que coçava o olho direito.

- Uma – disse Jaqson, exibindo a moeda – o que nos deixa três hipóteses: ele se enganou, e colocou somente uma moeda no bolso. Alguém roubou a segunda moeda ou... sua experiência teve 50 por cento de êxito.

- E uma das moedas ele conseguiu levar...- emendou Dalton – o que será que ele vai fazer com 1 real, no outro mundo?

- Comprar uma passagem de volta? – filosofou Jaqson.

Dalton subiu sem se despedir, passou de novo pelo corredor dos cartazes e foi para sua sala sem demora. Larissa apareceu logo em seguida com os documentos e uma folha de papel impressa. Antes que ela abrisse a boca ele perguntou:

- Você tem uma moeda de 1 real aí?

Ela mexeu nos bolsos e estendeu a palma direita com duas moedas, 10 e 50 centavos, respectivamente.

- Serve?

- Não...obrigado. Então, o que temos?

- Um caso estranho... – enfatizou ela - João Grundt foi de fato mestre carpinteiro...

- Foi?

- Deixe-me terminar – disse ela categórica, ajeitando os óculos – Schritzmeyer fabricava chapéus, Buhnaed fora envolvido com uma tipografia, Witte fabricava móveis de vime e Weisflog, também tipografia. Mas os primeiros nomes, exceto o de João, não batem, só os sobrenomes. E há também a questão das datas...

- O que tem as datas? – quis saber ele, pensando na moeda de 1 real.

- As datas vão de 1854 a 1880 e os nomes são de estabelecimentos comerciais paulistanos, no mesmo período – Larissa exprimiu a última palavra enfatizando o acento – alguma coisa está errada, não lhe parece?

Um rádio próximo transmitia o horário – meio dia. Dalton sairia para almoçar dentro de instantes, sentia vontade de comer feijão branco com bastante paio e purê de batatas. Larissa mantinha seus olhos arregalados para ele e repetiu a questão.

Bem devagar ele olhou para ela, mas o som de um instrumento triste o fez mirar a janela e acompanhar, por alguns segundos, um cortejo fúnebre que passava bem defronte a delegacia. Homens de chapéu preto carregavam o caixão e Madalenas de branco espalhavam pétalas de rosas no calçamento. Por fim ele voltou-se para a secretária e disse:

- Sim, a mesma coisa.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 19/10/2010
Reeditado em 19/09/2012
Código do texto: T2565541
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