Assassinato Singelo

- Exercício?

- Sim – respondeu Félix, conjeturando o papel amarelado, preso entre seus dedos.

- Não entendo. Que tipo de exercício?

- Um pequeno desafio para a minha mente, querida. Um caso de arrepiar – replicou risonho. – A espécie de exercício que eu aprecio.

Gabrielle fitava Félix Barcelos com um jeito confuso. A tal história da carta enviada anonimamente persistia um mistério a ela.

- Ah, continuam duvidosos sobre a competência do velho cão – prosseguiu o jovem detetive, ainda mirando a carta, pensativo. - Lamentariam se soubessem o quanto o relato fora singelo, apesar de haver me interessado.

- Presume que alguém está testando-o, Félix?

- Não, eu afirmo, minha cara. Disse a palavra certa: testando.

- Com que objetivo? Sua fama já não é o suficiente? Digo, o Caso dos Bolinhos Negros. Sua atuação nas investigações surpreendeu a todos. Pobre dona Carmen, lembro-me de como acreditava indiscutivelmente na inocência do marido.

Félix sacudiu a cabeça obstinadamente e encarou Gabrielle, indagando:

- Quer arriscar?

- O quê?

- Ora, o mistério. Assassinato na Vila, um título sem graça.

- Está dizendo...

- Sim. Leia a história e tire suas próprias conclusões. O autor, seja lá quem for, surpreendeu-me com a construção dos fatos. Digno de um romancista policial. Coisa de livro mesmo.

Félix levantou-se de sua poltrona habitual e jogou o manuscrito sobre o sofá, ao lado da jovem um tanto empolgada.

- Boa sorte, minha querida.

E retirou-se da sala resmungando qualquer coisa como: “Duvidam do velho cão...”

Gabrielle apanhou as escrituras e começou a ler:

“Caro Sr. Félix,

É de grande satisfação minha redigir-lhe esta breve narrativa. Perdoe-me pela ofensa ao duvidar de suas habilidades, contudo é essencial a mim que examine os fatos aqui expostos, baseados em um episódio autêntico. Dentro de alguns dias enviar-lhe-ei a resolução do enigma, imaginando que talvez já o resolvera.

Seria capaz de desvendar o verdadeiro mistério?

Que a sorte o acompanhe...”

- Oh, Deus, como é horrível! Tudo está horrível!

Rita perambulava inquieta pelo cômodo. Estava claro em sua face o desespero diante dos fatos.

- Acalme-se, Rita! – exclamou o doutor Osman, sentado numa poltrona de veludo – Esse tipo de atitude não resultará em nada.

- Mas o que podemos fazer, doutor? Temos um... oh, como é difícil pronunciar esta palavra.

- Esperar. Não há mais nada que se possa fazer. O inquérito será em dois dias, e só após isso teremos certeza de algo. Por enquanto, sente-se e acalme-se. Todos estamos pesarosos com a tragédia, e os seus sentimentos por Jairo não são diferentes dos de ninguém.

- Não consigo. A idéia de que um... maníaco nos rodeia, deixa qualquer tranqüilidade fora de questão.

Rita permaneceu em silêncio por um ou dois minutos. Finalmente, suspirou e continuou:

- Estrangulado. O velho Jairo, estrangulado aos fundos da própria casa. Numa cidadezinha tão enfadonha como essa, é inaceitável que aconteça esse tipo de coisa.

- Até mesmo numa cidadezinha pacata – pronunciou, por fim, dona Luciana -, ocorrem as coisas mais desagradáveis e dolorosas.

- Esses malditos bandidos. Tudo indica que foi vingança. Não há mais o que se pensar. – ponderou Gabriel.

Na sala de estar de dona Rita, reuniam-se o doutor Osman, o médico da cidade – quem fizera a autópsia -, Luciana, a vizinha, uma velha solteirona que sempre sabia de tudo, e a anfitriã, uma mulher outrora corajosa, mas que agora mais parecia um rato sendo perseguido. Havia ainda o jovem Gabriel, um belo moço de rosto angelical, mas que vivia na miséria, apesar da postura perceptível. Era o único rapaz da vila, disputado entre a maioria das moças.

Toda a pequena cidade de Tapiratiba estava em pânico ao ser descoberto o corpo de um policial local, Jairo Amorim. O homem de meia-idade, corpulento e áspero, por incrível que possa parecer, fora estrangulado na noite anterior, segundo os laudos médicos, e encontrado pela manhã por sua esposa. Dona Anita fora mandada para um hospital a fim de tratar-se, o choque, como disse o médico, agravou-a terrivelmente.

Havia um consenso generalizado sobre a exposição simples do caso: “Algum desses criminosos ousados querendo livrar-se dele”, dizia um. “O velho Jairo era formidavelmente temido pelos bandidos da região”, afirmava outro. “Este crápula, seja lá quem for, deu um jeito no velho”. Todos acreditavam na resolução de que Jairo fora assassinado por algum bandido qualquer, mas a polícia – amigos de longa data da vítima – não tinha dúvidas de que o mistério era mais complexo do que aquilo que aparentava.

O inquérito seguiu-se tedioso, e o juiz não chegara a qualquer explicação plausível. Ainda em frente ao Tribunal, os presentes na audiência - e companheiros do mártir -, discutiam sobre o assunto do momento:

- Bem, vocês sabem, ele arriscou-se a vida toda. Era o mínimo que se podia esperar – ponderou Julio, alisando o bigode inusitado. – Mas o que se pode fazer agora, não é mesmo? Digo, a imprensa querendo nos encher de perguntas extraordinárias e todas aquelas máquinas fotográficas em nossos rostos. Tudo o que Jairo nos deixou não passa disso: aborrecimento, nada mais.

- Não diga isso, Julio. – bradou dona Rita.

- Meu pobre tio – disse Amanda Amorim, pensativa - Há tempos reclamava das dores nas costas. Tomava remédio, mas era igualmente forte, cheio de saúde. Não posso acreditar como sua vida terminara de forma tão desagradável. Bem, pelo menos ainda há...

Ela parou. Olhava cada indivíduo perplexamente e todos a encaravam reflexivos, apesar de seus pensamentos vagarem longinquamente. Mas ela sabia, sim, o quanto a morte do tio traria-lhe conforto. Seria mesmo um conforto? A pequena fortuna que agora pertencia a jovem de face rósea e cabelos castanhos enrolados, poderia tornar-se dolorosa ao longo dos anos. Mas Amanda não desistira de seus verdadeiros objetivos.

O doutor Osman olhou para Amanda e pronunciou:

- Está distraída, minha pequena.

- Eu? Não, doutor, apenas pensando em meu tio.

- Era o orgulho dele, não? A sobrinha querida, como dizia.

Amanda deu-lhe um sorriso sem emoção e retirou-se, andando vagarosamente.

(Fim do manuscrito).

Quando Félix voltou, cerca de meia hora depois, sentou-se ao lado de Gabrielle e questionou:

- E então?

- Bem, uma história interessante.

- Quais as suas conclusões?

- O caso é simples, como você disse.

- Ah, é mesmo? Será que concorda comigo?

- Ora, não há outra explicação senão aquela que tenho.

- Pois bem, apresente sua versão.

- Creio que seja a conduta desalenta da moça. Comportou-se de modo estranho após o inquérito.

- Mas é claro, seu tio fora morto.

- Sim, concordo, porém há dinheiro em jogo.

- Hum... – Félix soltou um pequeno sorriso.

- Sendo assim, a meu ver, não há outra explicação: a moça, Amanda, matou o tio para ficar com o dinheiro.

Félix permaneceu em silêncio, passando os dedos sobre as palavras expostas na carta. Seus pensamentos tentavam descobrir outro mistério, mas deixara isso para depois. Finalmente, ao cruzar as pernas, avaliou:

- O que me decepcionou – o único fato que me decepcionou -, fora justamente esse: o romantismo. Um bom romance policial não foca no amor, mas sim na descoberta do assassino. Mas tento não classificar essa pequena obra dessa forma, já que o affair fora um tanto essencial para a construção dos fatos. Espero, inclinado aos meus sentimentos, que a jovem Amanda tenha atingido realmente seu objetivo.

- Não o entendo, Félix. Ela atingiu seu objetivo.

- Não. Falo de casar-se com Gabriel, o miserável de boa postura.

- Como assim? Penso que está equivocando...

- Se o autor da história refletir como reflito, então estou certo quando afirmo o seguinte: Amanda usaria a pequena fortuna deixada pelo tio para casar-se com Gabriel.

- Ah sim? Bem, vendo dessa forma... mas então quem matou Jairo? Poderia ser igualmente ela, ou... sim, poderia ser Julio, o homem que odiava a imprensa. Veja, não havia compaixão alguma da parte dele sobre a morte do policial. Disse que Jairo deixara apenas aborrecimento.

- Está sendo óbvia demais, minha querida. O óbvio, na maioria das vezes, aparece simplesmente para confundir-nos.

- Pois então...

- A polícia sempre vai atrás das pontas de cigarro, das pegadas no chão e as digitais em garrafas de vinho, não?

- Bem...

- Oh, que romantismo...

Félix suspirou e passou as mãos entre os cabelos. Por fim, prosseguiu:

- As coisas não funcionam assim tão belas. Não existem pistas nesse caso. Não do modo como enxergam. Existem pistas lógicas, e isso basta para mapear toda a história de forma concisa.

- Então, segundo sua crença...

- Não minha crença, Gabrielle, mas os fatos. Quem matou Jairo Amorim fora o médico, doutor Osman.

- O quê? Mas...

- Veja, Amanda disse que seu tio tomava remédios, vinha reclamando há tempos de dores nas costas. O fato de ser o único médico da cidadezinha deu-lhe largas vantagens. Não havia outro que poderia fazer a autópsia ou receitar um remédio para dores nas costas.

- Jairo não morrera por overdose; fora estrangulado.

- É o que o médico queria que todos pensassem. Provavelmente ele dissolveu arsênico num tanto de remédio, e administrou-o de forma que matasse aos poucos. Pelo que se pode concluir, Jairo, até o dia de sua morte, ainda reclamava das dores nas costas. Ou seja, o remédio de nada valera. Era algum tipo de veneno – disse arsênico apenas para exemplificar -, misturado no frasco. Certo dia, ou melhor, certa noite, vendo que a morte seguia lenta demais, provavelmente convidou Jairo até sua casa e disparou dose alta numa bebida, o que levou a morte instantânea.

- Mas como ele encobriu a idéia do envenenamento?

- Ora, no momento em que o homem descaiu, ele facilmente poderia amarrar um cinto, ou qualquer outro objeto, em volta do pescoço do outro e apertá-lo, dando a impressão de ter sido estrangulado. Levou o corpo até sua casa e lá abandonou.

- Félix, meu querido, não vejo motivo algum para o médico ter feito tudo isso.

- É aí que entra o romantismo cruel. A paixão, minha cara, leva as mais profundas loucuras.

- Paixão?

- Sim. O médico estava apaixonado. Mesmo depois de velho, um possível amor antigo não-correspondido ainda remexia em seu peito. Ele amava dona Anita.

Gabrielle fitou-o surpresa. Sua admiração era igualmente tão grande quanto a sua decepção.

- O médico mandou dona Anita para um hospital psiquiátrico, com a desculpa de que ela estaria terrivelmente abalada. Ela, claro, poderia mesmo se encontrar nessa situação, mas o doutor Osman tinha um único intuito: ficar ao lado de sua amada, mesmo que em circunstâncias um tanto desastrosas.

A jovem continuava a encará-lo. Félix, por sua vez, concluiu:

- Aí está. Uma resolução lógica e precisa.

- Bem, o crime só será realmente desvendado quando a segunda carta chegar.

- Você também duvida do velho cão, não é?

- Félix, não entenda desse jeito. – respondeu ela, indignada.

- Não me ofendo, minha querida, pois pense o que quiser.

A segunda carta chegara dois dias depois. Gabrielle ficara extremamente surpresa ao ver que Félix Barcelos acertara em suas conclusões.

- E eu não disse?

- Você é um louco, Félix. – disse ela soltando uma gargalhada.

- Mais uma vez eu acertei. Como gostaria de responder essa carta e mostrar que não sou assim tão imbecil. Ah, como gostaria...

A frase ficou sem complemento quando o telefone tocou. Félix, cheio de si, retirou-o do gancho e atendeu:

- Sim, sou eu mesmo... Ahn... Sim... Como?... Imediatamente.

Colocou-o novamente no gancho e permaneceu com a mão pousada sobre o aparelho, e a cabeça abaixada, mergulhando em seus pensamentos.

Gabrielle mirava Félix curiosa, mas este nada disse. O detetive levantou-se e dirigiu-se à enorme estante em mogno. Apanhou as duas cartas em silêncio e finalmente articulou cuidadosamente:

- Ainda falta o verdadeiro mistério.

- Qual mistério?

- O crime.

- Félix, não diz coisa com coisa.

- O Delegado me ligou... ocorreu um crime em Tapiratiba, alguns quilômetros daqui.

Ela olhou-o com espanto. Ele prosseguiu:

- Um homem encontrado morto... estrangulado...

Fortunato Garcia
Enviado por Fortunato Garcia em 22/10/2010
Reeditado em 22/10/2010
Código do texto: T2572137
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