A TRAJETÓRIA DA BALA

No começo tudo parecia escuro e quente!

Foram as primeiras coisas que percebi quando me dei conta que era uma consciência.

O tempo passou. Para mim, apenas aquele limbo existia como minha única realidade.

Em dado momento.........

Percebi algo diferente! Um tremor!! Ruídos e luzes!!! Tudo isso era novo.

Fiquei curioso. A luz mostrou que havia outras coisas iguais a mim naquele lugar.

Fui arrancado com uma pá e jogado num carrinho de mina. Entendi finalmente o que eu era. Eu era um mineral! Uma rocha bruta de chumbo.

Fui conduzido ao elevador da mina entre grunhidos de criaturas estranhas com luzes na cabeça. Aprendi que eram chamados de mineiros.

Do elevador fui conduzido para uma esteira e finalmente para um caminhão basculante.

Horas de viagem depois o caminhão parou. Manobrou. Elevou a caçamba. Eu me vi caindo dentro de uma grande boca repleta de chamas. Lá no fundo experimentei um calor pior do que o da mina de onde fui retirado.

Olhei para o meu corpo e vi que estava perdendo a forma. Chamas e bolhas de ar quente brotavam por todos os lados. Tudo parecia misturar-se. Achei que fosse dissolver naquele mar de lava!!!

Talvez por sorte ou, até mesmo azar, uma portinhola abriu-se ao meu lado. Meu corpo líquido foi despejado por um canal e caiu numa caixa.

Transformei-me numa barra de chumbo. Pelo menos fiquei mais bonito do que minha antiga forma rochosa!!

Fui guardado em um grande armazém. Havia janelas circulares em todas as laterais. Aprendi a noção do dia e da noite. E o tempo começou a passar mais devagar.

Meses passavam. Eu vi a pilha de lingotes de chumbo ao meu lado diminuir. O tédio me corroia. Seria este meu destino eterno?

O tempo passou mais um pouco. A temperatura do ambiente diminuiu. Chamavam isso de inverno. Coisa estranha o frio. Percebi que as moléculas do meu corpo estavam mais quietas!!

Não por muito tempo....

Uma mão enluvada e forte me agarrou e me jogou com outras barras em uma caixa.

De novo uma viagem de caminhão!!

Tentei conversar com as outras barras de chumbo, mas estranhamente todas mantinham o silêncio. Talvez eu fosse único!!!

Chegamos ao nosso destino. A caixa foi entregue num grande galpão cheio de máquinas estranhas e ruídos de diversos tipos.

Fui retirado da caixa e colocado novamente numa boca de fogo. Dessa vez era apenas eu!!!

Vi meu corpo novamente se liquefazer e...... com grande horror fragmentar-se em pequenas porções. Cada uma distribuida em pequenos moldes.

Este eu pensante ficou em um deles, com forma de ogiva e bem pontuda.

Quando as coisas esfriaram, fui removido do molde e colocado em uma outra máquina. Olhei para baixo e vi um cilindro com um pó escuro lá dentro.

Senti um solavanco e uma pressão na minha ponta. Estava preso no cilindro agora.

Fui transferido para uma nova máquina. Esta me colocou enfileirado com outras partes de mim que foram prensadas em outros cilindros. Logo depois fomos alojados em uma caixa.

Ouvi um grito dizendo que íamos para o almoxarifado.

Novamente vários meses se foram. O dia e a noite. Alternância do calor e do frio. Conheci a chuva, pois fiquei de frente para a janela.

- Cabo preciso de uma caixa!

- Assine aqui Sargento!

Fui retirado da caixa e comprimido contra uma mola dentro de um estojo retangular. O estojo foi introduzido no cabo de um objeto que tinha na ponta um grande cano.

Finalmente descobri meu destino! Sou uma bala de revolver!!!

Por alguns dias fiquei no interior da arma. Estava curioso e ansioso para saber o que um projetil faz!

Algumas vezes sentia uns solavancos violentos, gritos e depois voltava para o coldre do policial.

Estava ficando entediado de novo. Queria sair. Conhecer o mundo!!

A chance havia chegado.

O rádio da viatura chamou. Assalto a banco!!

Bandidos armados. Tiroteio.

Quando a viatura do policial chegou ao local, os bandidos estavam cercados. Logo a arma sai do coldre. Ouvi um barulho de trava e a mola me empurrou para cima de encontro a um encaixe no cano.

Observei uma janela redonda no final de um túnel. Vi luzes e movimento de coisas lá fora. Era o mundo. Era o cotidiano. Finalmente minha sonhada liberdade!!!

-Arma no chão!!

-Arma no chão malaco!!! Não tá ouvindo, disse o policial!

A resposta foi um tiro do bandido. Vi uma outra criatura igual a eu passar zunindo ao meu lado. Percebi que também podia voar!!

Estava ansiosa para sair do revolver.

Dito e feito!!

Ouvi um outro barulho de trava seguido de uma pancada surda. Embaixo de mim, vi o pó escuro incandescer. A pressão lá dentro aumentou insuportavelmente. As laterais do cilindro que antes me prendia romperam-se e fui arremessado com um grande estrondo para fora daquele lugar.

Finalmente olhei o mundo, mas tudo parecia imóvel. Senti que a minha ponta aquecia em atrito com o ar. Olhei um rastro de luz atrás de mim.

Na frente a imagem parecia formar um túnel.

Foi coisa de segundo. Deu tempo de ver apenas uma expressão humana aterrorizada chegando perto de mim.

Um novo estouro. Percebi que atravessara uma barreira óssea e, em seguida, parei num local de pouca luz. O calor de meu corpo cozinhava aquelas estruturas moles que estavam ao meu redor. Notei que um líquido avermelhado jorrava em forma de pulsos.

Novamente um solavanco. Era uma queda. O dono do local onde eu estava abrigado se estatelou no chão.

Silêncio.

Minha estréia na liberdade foi um tanto amedrontadora!

Percebi movimento inúmeras vezes. Eu e o individuo que me continha fomos colocados em um lugar muito frio e escuro por alguns dias. Havia também um ruído constante.

Ouvi um barulho de serra. Novamente a luz brilhou. Fui arrancado com vigor por uma pinça e colocado em um vidro transparente com uma etiqueta onde estava escrito "evidência" seguido de um número.

De dentro do vidro vislumbrei o cenário repleto de cadáveres. Numa placa no alto da porta de entrada. Lia-se IML - Autopsia.

Antes de ser colocado na prateleira ouvi o último comentário do legista.

- A bala fez trajetória retilínea e alojou-se no lobo occipital!!