DESOVA

Vadão era um homem grande. Vendo-o assim nem parece, mas ele era um cara difícil de pegar. Já o havia visto em ação várias vezes. Fizemos alguns serviços juntos. Deu trabalho. Eu sabia que daria. Por pouco não fui eu quem acabou enrolado no tapete da sala. A réplica da Vênus de Milo, que comprei em uma feira de objetos usados uns anos atrás, foi providencial para que eu conseguisse virar o jogo. Menos de trinta pilas que me salvaram a vida. Foi uma boa disputa. Prefiro matar um adversário honrado, como foi o Osvaldo, do que um daqueles maricas que imploram para não morrer. Ele sabia que eu tinha de fazer isso assim como eu sei que ele tinha de lutar.

Ainda estou ofegante. A adrenalina derramada em meu sangue mantém as idéias turbulentas. Preciso me recompor logo, pois fizemos muito barulho e a vizinhança não costuma perguntar se estamos com problemas. Preferem transferir esta tarefa para a polícia.

Então, o que fazer com o corpo? Aqui não posso deixá-lo... Nunca gostei desta parte. A desova dos cadáveres sempre ficou a cargo do Vadão. E foi justamente aí que ele começou a desgostar o chefe. De uns tempos pra cá ele perdera a naturalidade. Sua obsessão em eliminar os vestígios acabava por levantar suspeitas. Osvaldo repetia o caminho várias vezes para apagar os rastros. “Parece que ele perdeu a mão”, comentavam.

Sei que o meu trabalho era dar um fim nos problemas que ele vinha causando para o chefe, mas agora preciso resolver o meu problema. Não era este o plano. Eu devia tê-lo surpreendido na entrada de sua casa. Um simples tiro e pareceria um assalto. Ou mesmo um acerto de contas. Fatos normalmente desprezados pela polícia quando a vítima tem uma longa ficha criminal. Mas não, ele apareceu em minha porta dizendo que precisava falar comigo, que tinha ouvido umas coisas... Ainda tentei acalmá-lo, lembrando-lhe de outras vezes em que se enganara. Como no caso do velhinho cego que morava na casa ao lado da sua e que Osvaldo cismou que estava lhe espionando. Não houve o que tirasse esta idéia da cabeça. Somente quando tomou conhecimento do seu problema de visão, foi que aceitou poupar-lhe a vida. Mesma sorte, porém, não teve Ângela, a garçonete que foi morta depois de ligar para o namorado. Como falava baixinho e sorria fitando-o de canto de olho, Osvaldo achou que zombava dele e acabou com ela na saída da lanchonete. Mas nada disso adiantou. Ele não estava aqui para negociação. Era teimoso como uma mula, obstinado, via o mundo conspirando contra ele, e acabou sendo vítima de sua demência. Não tive escolha. Era ele ou eu. Se esta não fosse a minha missão, a própria sobrevivência já seria motivo suficiente.

Preciso levá-lo até a garagem. Com uma atadura cubro o ferimento, seu cabelo ralo facilita a bandagem, mas não estancará a hemorragia por muito tempo. Com um saco de lixo envolvo a sua cabeça prendendo-o com uma fita em volta do pescoço. O tapete é grande o suficiente para ocultar todo o corpo. Apenas os pés estão de fora. Tiro seus sapatos e me valho do mesmo recurso que utilizei para disfarçar a outra extremidade. Acho ainda que terminei por quebrar seus braços – pois cortá-los seria uma demasia – na tentativa de deixar o pacote menos volumoso. Por último, amarro umas cordas no meio a fim de tornar a embalagem mais rígida.

Escolho o elevador por ser mais rápido e exigir menos esforço. Seria arriscado descer com um tapete de oitenta e poucos quilos os seis andares que me levarão até o carro. Algum chato poderia oferecer-se para ajudar. Com o defunto em pé encostado na parede ainda no hall de entrada do apartamento, espio o lado de fora e certifico-me de que não há ninguém no corredor. Aciono o botão do elevador e aguardo a sua chegada. Abro a grade pantográfica e volto para pegar o pacote. Percorro apressado os poucos metros que separam as duas portas arrastando comigo o que sobrou de Osvaldo.

No terceiro andar uma parada fora do programa. É Jane, uma prostituta que faz ponto ali na esquina. Eu próprio já me servi dela algumas vezes. É uma morena quente, mas não muito asseada. Por isso a tenho evitado ultimamente. Ela parece feliz em me ver. Está saindo do apartamento do Brandão, eu acho. Ele não tem o mínimo tato com mulheres, deve ser por isso que só arruma companhia quando se dispõe a pagar por ela. Outro dia aceitei um convite seu para assistir a uma partida de futebol na sua casa. Eu até prefiro estar sozinho nestas horas, mas ele disse que tinha comprado cerveja e eu estava sem. Nem lembro o resultado do jogo, mas voltei pra casa com quatro garrafas cheinhas.

— Aonde tu vais com este tapete? — perguntou.

— Não é meu. Já estava aí quando eu entrei — improvisei fechando a porta.

— Alguém deve estar de mudança — ela disse com a voz exausta.

— É, deve ser isso!

— Queres companhia pra hoje, fortão? (ela me chama assim).

— Não, obrigado, estou de saída.

No térreo a geringonça pára e ela desce, dando uma última olhada na direção do Osvaldo. Ainda a ouço avisando o zelador que alguém esqueceu um tapete no elevador. Mas já estou outra vez em movimento.

Desembarco no subsolo e carrego o corpo até o carro. Escolhi este modelo pelo espaço no porta-malas. Vado não é o primeiro a experimentar o conforto do meu Galaxie.

Uma fita do Elvis me ajuda a pensar. Don´t be cruel é uma boa canção para dirigir à noite. O primeiro cigarro do dia e estou finalmente relaxado. Levarei Osvaldo para um mergulho na velha mina de calcário que fica fora da cidade e está desativada há mais de doze anos. Há de ter alguma ossada para fazer-lhe companhia no fundo do buraco.

Sinto um certo remorso ao vê-lo desaparecer na escuridão. As coisas não precisavam terminar assim. O chefe podia ter dado mais uma chance em nome dos anos de serviço prestado. Ele já foi o seu braço direito, quando eu ainda era um novato. No nosso trabalho, prestígio é coisa efêmera. Descartáveis é o que somos. Se fizermos uma estatística sobre a longevidade no mundo do crime, posso me considerar um veterano. Mesmo na literatura policial os criminosos não chegam a envelhecer... Mas a gente mexe com coisa leve, talvez a nossa expectativa seja maior. O chefe já tem mais de cinqüenta, eu acho.

Como no jogo de dados, penso que talvez fosse hora de sair. Se não ganhei muito, pelo menos ainda não estou perdendo. Osvaldo e tantos outros que conheci não têm mais essa chance.

Volto para casa e arrumo a bagunça antes de dormir. Experimento os sapatos do Vado e vejo que são grandes demais para mim. Vou presenteá-los a meu pai. Podem servir como moeda de troca na prisão. Minha companheira Venus ficou um pouco machucada, mas já está de volta ao seu local, junto aos livros, no centro da estante da sala, de onde controla toda a casa e vela por mim quando durmo no sofá.