NÃO ATIRE NO PIANISTA

Antes de chegar ao salão, David fora alertado sobre as regras da casa: não trapaceie, não mexa com a mulher dos outros e não atire no pianista. Era a primeira vez que ele ia ao clube de jogos “Mão Cheia” e ao longo da noite entenderia o porquê das recomendações.

Após uma revista burocrática ganhava-se o interior do estabelecimento. Muita madeira e uma luz fraca davam a ambiência que tinha o burburinho comum destes lugares misturado à boa música executada por um incendiário trio de jazz.

Logo na parede da entrada uma espécie de galeria estampava o nome dos maiores ganhadores das cartas e, também em destaque, o histórico dos que usaram de desonestidade nas apostas: “Estes cavalheiros são dignos de respeito e a eles rendemos tributos”, encabeçava a lista dos mestres e “Estes homens são a vergonha de nossa cidade, não lhes confie sequer o seu cachorro”, era o título da relação dos trapaceiros.

Debruçados sobre as mesas de pôquer, homens de vida fracassada tentavam mudar sua sorte. Alguns depositavam as últimas fichas em tentativas desesperadas de ludibriar o destino. Enquanto um grupo deles acreditava na virada da sorte, outros simplesmente não conseguiam afastar-se da adrenalina de uma mão bem servida. Mas todos, exceto os profissionais, eram engolidos pelo redemoinho da esperança e iam às últimas conseqüências.

Na extremidade do balcão, David observou o velho Emílio que mirava a coleção de copos vazios diante de seus olhos vermelhos e úmidos: “Ele está aí todas as noites”, lhe contaram, ”desde o dia em que, tendo perdido até o relógio, apostou a sua jovem esposa com um jogador experiente e perdeu. Ele nunca mais sentou diante de uma mesa de pôquer, mas retorna sempre a espera de encontrá-la outra vez”.

A casa era freqüentada por belas mulheres. Exímias observadoras, assim como David, a procura de presas fáceis e de boas recompensas. No entanto seu talento não era depositado nas mesas e sim na cama. No fundo faziam o mesmo: carisma, dissimulação, auto-confiança e ataque certeiro. David nem começara a jogar e notou que uma delas o fitava explicitamente. Ela já havia envolvido sua vítima, um sujeito grisalho, bigode amarelado e com um charuto no canto da boca do qual pendia uma cinza de uns três ou quatro centímetros pelo menos. A fumaça era tanta que por vezes seu rosto ficava encoberto.

Antes que David se decidisse a respeito da garota, estourou uma confusão a cerca de seis metros da posição onde ele se encontrava. Parece que o rapaz magro, que naquele momento tinha sua cabeça jogada contra a parede, passara a mão no traseiro de uma das garçonetes, por infelicidade, mulher do apontador das mesas dois e quatro. A carcaça do jovem tarado foi atirada para fora do estabelecimento. O fato fez com que David entendesse que precisaria cautela com relação às mulheres da casa. Isso sempre fora um problema para ele, mas não queria pôr seu belo rosto em risco.

Aos trapaceiros estava reservado outro destino; além de estamparem a galeria da vergonha eram colocados para fora da casa só de cuecas, para que fossem expostos à humilhação pública ou, se tivessem sorte, recolhidos pela polícia por atentado ao pudor. No segundo caso, a polícia só liberava mediante pagamento de fiança. Além disso, o frio intenso em certas épocas do ano normalmente resultava em alguma doença respiratória que naqueles tempos poderia ser fatal.

Naquele dia, no entanto, a noite ia calma. Mas David estava ali para se divertir. Se com as garotas estava perigoso, jogar era a opção mais segura. Logo o jovem colocou-se na mesa dois, a do namorado da garçonete. Ganhou algumas rodadas, mas as apostas estavam baixas e o whisky não era dos melhores. Além do mais, as constantes desavenças revelavam o amadorismo dos jogadores. Como não quisesse arriscar-se, decidiu ir pra casa. Procuraria antes um lugar onde pudesse gastar o pouco dinheiro ganho até ali e arranjar companhia para o resto da noite.

Já na rua, quando viu o carro da polícia passando lentamente em frente ao clube foi que entendeu a razão da terceira recomendação: do lado de dentro, o tilintar dos copos, as apostas mais exaltadas e a pancadaria correndo solta, mas ali de fora se ouvia apenas as harmonias alucinantes do piano.