seja o que Deus quiser
de Wander Piroli, em extra — realidade brasileira, 4, ano I/ março de 1977
O dia começa com uma preta de lenço vermelho na cabeça sentada no degrau do portão. Corpulento, avermelhado, o revólver quase ostensivo na cintura, o homem desce do ônibus, atravessa a rua e para diante da mulher. Ela está com a cabeça encostada no portão, cochila. O homem pisa no pé descalço da mulher, que abre o rosto lentamente.
— Cai fora — ordena o homem.
A mulher levanta-se devagar com dois olhos espessos.
— O que é que você tá fazendo aí?
— Estou esperando o Pedro.
— Que Pedro?
— Meu homem.
— Ah, seu homem.
— Sim senhor.
— Quedê seu homem?
— Taí dentro.
A porta da velha casa se abre e aparece no alpendre um cabo com cara de sono:
— Você, Bié.
— Tem um Pedro aí?
— Essa mulher dele passou a noite toda sentada aqui fora.
— Por que você não mandou ela embora?
— Não mandei como? Tirei até o cinturão.
— E ela?
— Arredava um pouco, depois voltava e sentava aí.
— Onde é que você mora, mulher?
— Pedreira — informa o cabo.
— Seu nome?
— Raimunda — diz a mulher.
— Cabo Elói, qual é a bronca do Pedro dela?
— 157.
— Ela tá de fora?
— O cara é um operário de merda.
— Que merda?
— Fábrica de café.
— E então?
Cabo Elói ri.
— Qual é a graça?
— Ele amoitava um pacote de café na marmita.
Bié para Raimunda:
— O que é que vocês faziam com o café?
— Não sei.
— Sabe não? Você tá querendo dizer que ele não levava o café pra casa, é?
— Levava não.
— Deixa de ser besta, mulher.
— Bié — diz cabo Elói —, ele vendia o café.
— Vendia pra quem?
— Sei não senhor.
— O que é que você sabe, dona Raimunda?
— Nós não toma café, não senhor. Nós toma é chá. A marmita de Pedro sempre chegou limpinha.
— Essa crioula tá gozando a gente, cabo Elói.
— Acho que não.
Bié olha dentro da cara da mulher, uma cara preta, incômoda:
— Vai pra casa.
— Só vou com Pedro.
Bié puxa Raimunda pelo braço:
— Obedece logo, mulher.
— Então me dá o Pedro.
— Vou te mostrar uma coisa. Cabo, me dá o cinturão.
— Deixa comigo.
Cabo Elói dá a volta no alpendre e desce a escada com o cinturão na mão. Para diante da mulher, ergue o cinturão. Raimunda espera. Cabo Elói abaixa o cinturão.
— Olha a cara dela, Bié.
— Filha da...
Bié e o cabo sobem a escada.
— Fizeram o flagrante?
— Não.
— Uai.
— Ordem do Silvestre.
— E o dr. Rocha?
— Ele já tinha saído.
Entram numa sala alta. Mesa antiga e cadeira, dois bancos encostados na parede. Bié tira um livro gasto da gaveta e vê a queixa.
— Cabo, aqui não fala quem comprava o café.
— Silvestre deve saber.
— Trabalharam o cara?
— Acho que amaciaram ele de acordo. E o Silvestre deu uma bronca dos diabos.
— Não estou entendendo. Ele tá em que cela?
— Na primeira.
— Por quê?
— Silvestre.
— Vou dar uma olhada no cara.
— Vai, mas vai com calma.
— Silvestre?
— É.
Bié entra pelo corredor, desce uma escadinha, um portão de ferro. A cela fica logo à direita, separada das demais. Bié acende a luz e aproxima-se da grade. Pedro está sentado no fundo da cela, apenas de cuecas.
— Você aí.
— Pronto, doutor — uma voz de banguelo.
— Vem cá.
Pedro levanta-se com dificuldade, caminha segurando a barriga com as mãos.
— Sim senhor, doutor.
— Cala essa boca. Eu falo, você responde.
Pedro abana o pixaim grisalho.
— Agora abre o negócio todo.
— Eu falei tudo pro outro doutor. Juro que não tem mais nada.
— Repete o que você falou.
— Eu tirava o café sim.
— Todo dia?
— É sim.
— É sim o quê?
— É sim, sim senhor.
— Como é que você fazia?
— Eu fazia na hora do almoço, eu comia e depois enfiava um saquinho dentro da marmita.
— Só um saquinho, é, seu sem-vergonha?
— Juro, doutor.
— Quem mais roubava?
— Era só eu que tirava.
— E ninguém via?
— Via não senhor. Só viu ontem.
— Quem viu?
— Foi o gerente.
— E aí?
— Aí ele me apertou e chamou a polícia.
— Há quanto tempo você furtava café?
— Ah, doutor.
— Para com esse negócio de doutor.
— Sim senhor.
— Quanto tempo?
— Tem pra mais de ano.
— Dois anos?
— É sim senhor.
— Você levava o café pra casa?
— Isso eu nunca fiz.
— Por quê?
— O senhor sabe, o café é caro. A mulher e os meninos toma é chá. Se eu chego lá com o café, a mulher ia ver logo.
— Ver como?
— Ué, Raimunda sabe que o dinheiro não dá pra café.
— Quer dizer que sua mulher não sabia de nada?
— Deus me livre, doutor.
— Quem comprava o café?
— Eu falei pro outro doutor que eu não podia falar.
— Não pode não, é?
— Desculpe, doutor.
— Eu vou te pendurar no pau, tá bom?
— O senhor é que sabe, doutor.
— Você fala, e fala rápido.
— Seja o que Deus quiser.
Cabo Elói surge na porta:
— Bié, Silvestre tá te chamando.
Uma saleta, mesa com duas cadeiras, janela aberta para a rua, ruídos de trânsito. Silvestre, sentado, fuma um cigarro de palha. Um tipo seco, camisa social com abotoadura e um anel exagerado no dedo mindinho.
— Como é, chefe?
— Senta aí, Bié.
Silvestre põe o cigarro vagarosamente no cinzeiro.
— Você fez alguma coisa com ele?
— Papo, chefe.
— Ahn.
— O quê que há, chefe?
— Não há.
Silvestre põe o cigarro na boca e demora a acendê-lo.
— Chefe, nós vamos engolir essa história do café?
— É só isso, Bié.
— Pra que você me chamou?
— É pra deixar o homem quieto lá embaixo.
— E o diabo dessa mulher aí fora?
— Chama o cabo Elói.
— Cabo Elói.
— Pronto — o cabo responde da outra sala.
— Põe a mulher sentada aí no banco.
— O que você vai fazer, chefe?
Silvestre levanta-se e chega até a janela:
— Nós vamos esperar o dr. Rocha.
— Mas ele só vem de tarde.
— É por isso que mandei chamar a mulher. A diaba está me embrulhando o estômago. Daqui a pouco você busca o homem, ela fala com ele e vai embora. Mas antes eu quero te falar uma coisa. Lembra do Tião Feio?
— Que tem o Tião?
— Tião está com um carteado no Fluminense.
— Eu sei.
— Tião é compadre do homem.
— Ah.
— Eu estive com o Tião ontem à noite. Ele ficava com o café.
— Besteira, chefe.
— O sujeito passava lá todas as tardes, depois do serviço, deixava o café na cantina, filava uma cachacinha, pegava o cacau, etc. Tião vem falar com o dr. Rocha.
— Chato, chefe.
— É, mas o homem é compadre dele, um fodido. Agora vai lá e traz ele. Vamos ver se ele manda essa mulher pirracenta embora.
Atravessando a sala, Bié dá uma olhada na mulher cochilando no banco. Volta em seguida com Pedro. Sem camisa e descalço e segurando a cintura da calça e a barriga com as mãos, Pedro olha assustado para Raimunda.
— Ocê, Pedro — ela se levanta com o rosto iluminado.
— O que você tá fazendo aqui, Raimunda?
— Tou te esperando.
— Vamos logo com isso — ordena Silvestre vindo da saleta. — Dá um papo com ele e cai fora.
— Vai pra casa, Raimunda.
— Só vou concê, Pedro.
Bié:
— Ela passou a noite toda aí fora.
— Verdade, Raimunda? Você tá ficando doida? Quem é que ficou com os meninos?
— Pedrinho.
— Onde é que você tá com a cabeça, Raimunda?
— Pronto — intervém Silvestre. — Já viu o seu Pedro, agora vai pra casa.
— Obedece, Raimunda.
— Só vou concê.
Bié:
— Esta mulher tá é precisando de um pau.
— Pelo amor de Deus, doutor.
Silvestre:
— Você tem um minuto.
— Tá ouvindo, Raimunda. Volta já pra casa.
— Vou te esperar, Pedro.
— Os meninos, Raimunda. — Pedro solta a calça e torna a segurá-la. — Vai pra casa pelo amor de Deus.
— Vãobora, Pedro.
— Você não entende? Estou preso, Raimunda. Você tem que ficar lá com os meninos.
Raimunda olha Pedro, confusa.
— Chefe, quem sabe a gente recolhe ela também.
— Não, doutor.
Silvestre:
— Taí uma boa ideia. Ou vai embora de uma vez ou vai lá pra baixo.
— Espera, doutor.
Bié:
— Eu vou levar ela de uma vez.
Silvestre:
— É, tranca ela.
— Doutor — Pedro dá um passo na direção de Silvestre —, deixa eu ter um particular com ela.
— Que particular?
— É um instantinho só, doutor.
— Então vamos logo com isso.
Pedro chama Raimunda até a janela. Pedro começa a falar com sua boca banguela. Raimunda apenas ouve e morde os lábios. Pedro fala depressa, exalta-se, tira uma das mãos da calça, sacode-a, depois se cala. Raimunda diz qualquer coisa, rápido, vira as costas e sai apressada pelo alpendre.
— Uai, chefe — Bié debruça-se na janela — a mulher foi embora mesmo.
Silvestre:
— Vem cá.
Pedro se aproxima com uma careta de choro.
— O que é que vocês falaram?
— Deixa ficar, doutor.
— Responde.
— Não é nada não, doutor.
Bié:
— O chefe tá perguntando.
— Doutor, deixa eu ir lá pra baixo.
Bié:
— Olha só, o filho da mãe vai chorar.
— O que é que você disse pra ela?
Bié:
— Responde logo.
Pedro (chorando):
— Falei que tava roubando café pra sustentar outra mulher, estou cansado dela e dos meninos, pra ela ir pro inferno.
— E o que é que ela disse? Ela disse alguma coisa antes de sair.
— Deixa, doutor.
Bié:
— É melhor falar.
— Ela falou se eu não chegar em casa até de tarde, ela dá formicida pra ela e pros meninos.
— Conversa, chefe.
— Você acha que ela é capaz de fazer isso?
Pedro passa a mão no rosto, olha pela janela.
— Você acha?
— Acho sim.
— Cai fora — ordena o homem.
A mulher levanta-se devagar com dois olhos espessos.
— O que é que você tá fazendo aí?
— Estou esperando o Pedro.
— Que Pedro?
— Meu homem.
— Ah, seu homem.
— Sim senhor.
— Quedê seu homem?
— Taí dentro.
A porta da velha casa se abre e aparece no alpendre um cabo com cara de sono:
— Você, Bié.
— Tem um Pedro aí?
— Essa mulher dele passou a noite toda sentada aqui fora.
— Por que você não mandou ela embora?
— Não mandei como? Tirei até o cinturão.
— E ela?
— Arredava um pouco, depois voltava e sentava aí.
— Onde é que você mora, mulher?
— Pedreira — informa o cabo.
— Seu nome?
— Raimunda — diz a mulher.
— Cabo Elói, qual é a bronca do Pedro dela?
— 157.
— Ela tá de fora?
— O cara é um operário de merda.
— Que merda?
— Fábrica de café.
— E então?
Cabo Elói ri.
— Qual é a graça?
— Ele amoitava um pacote de café na marmita.
Bié para Raimunda:
— O que é que vocês faziam com o café?
— Não sei.
— Sabe não? Você tá querendo dizer que ele não levava o café pra casa, é?
— Levava não.
— Deixa de ser besta, mulher.
— Bié — diz cabo Elói —, ele vendia o café.
— Vendia pra quem?
— Sei não senhor.
— O que é que você sabe, dona Raimunda?
— Nós não toma café, não senhor. Nós toma é chá. A marmita de Pedro sempre chegou limpinha.
— Essa crioula tá gozando a gente, cabo Elói.
— Acho que não.
Bié olha dentro da cara da mulher, uma cara preta, incômoda:
— Vai pra casa.
— Só vou com Pedro.
Bié puxa Raimunda pelo braço:
— Obedece logo, mulher.
— Então me dá o Pedro.
— Vou te mostrar uma coisa. Cabo, me dá o cinturão.
— Deixa comigo.
Cabo Elói dá a volta no alpendre e desce a escada com o cinturão na mão. Para diante da mulher, ergue o cinturão. Raimunda espera. Cabo Elói abaixa o cinturão.
— Olha a cara dela, Bié.
— Filha da...
Bié e o cabo sobem a escada.
— Fizeram o flagrante?
— Não.
— Uai.
— Ordem do Silvestre.
— E o dr. Rocha?
— Ele já tinha saído.
Entram numa sala alta. Mesa antiga e cadeira, dois bancos encostados na parede. Bié tira um livro gasto da gaveta e vê a queixa.
— Cabo, aqui não fala quem comprava o café.
— Silvestre deve saber.
— Trabalharam o cara?
— Acho que amaciaram ele de acordo. E o Silvestre deu uma bronca dos diabos.
— Não estou entendendo. Ele tá em que cela?
— Na primeira.
— Por quê?
— Silvestre.
— Vou dar uma olhada no cara.
— Vai, mas vai com calma.
— Silvestre?
— É.
Bié entra pelo corredor, desce uma escadinha, um portão de ferro. A cela fica logo à direita, separada das demais. Bié acende a luz e aproxima-se da grade. Pedro está sentado no fundo da cela, apenas de cuecas.
— Você aí.
— Pronto, doutor — uma voz de banguelo.
— Vem cá.
Pedro levanta-se com dificuldade, caminha segurando a barriga com as mãos.
— Sim senhor, doutor.
— Cala essa boca. Eu falo, você responde.
Pedro abana o pixaim grisalho.
— Agora abre o negócio todo.
— Eu falei tudo pro outro doutor. Juro que não tem mais nada.
— Repete o que você falou.
— Eu tirava o café sim.
— Todo dia?
— É sim.
— É sim o quê?
— É sim, sim senhor.
— Como é que você fazia?
— Eu fazia na hora do almoço, eu comia e depois enfiava um saquinho dentro da marmita.
— Só um saquinho, é, seu sem-vergonha?
— Juro, doutor.
— Quem mais roubava?
— Era só eu que tirava.
— E ninguém via?
— Via não senhor. Só viu ontem.
— Quem viu?
— Foi o gerente.
— E aí?
— Aí ele me apertou e chamou a polícia.
— Há quanto tempo você furtava café?
— Ah, doutor.
— Para com esse negócio de doutor.
— Sim senhor.
— Quanto tempo?
— Tem pra mais de ano.
— Dois anos?
— É sim senhor.
— Você levava o café pra casa?
— Isso eu nunca fiz.
— Por quê?
— O senhor sabe, o café é caro. A mulher e os meninos toma é chá. Se eu chego lá com o café, a mulher ia ver logo.
— Ver como?
— Ué, Raimunda sabe que o dinheiro não dá pra café.
— Quer dizer que sua mulher não sabia de nada?
— Deus me livre, doutor.
— Quem comprava o café?
— Eu falei pro outro doutor que eu não podia falar.
— Não pode não, é?
— Desculpe, doutor.
— Eu vou te pendurar no pau, tá bom?
— O senhor é que sabe, doutor.
— Você fala, e fala rápido.
— Seja o que Deus quiser.
Cabo Elói surge na porta:
— Bié, Silvestre tá te chamando.
Uma saleta, mesa com duas cadeiras, janela aberta para a rua, ruídos de trânsito. Silvestre, sentado, fuma um cigarro de palha. Um tipo seco, camisa social com abotoadura e um anel exagerado no dedo mindinho.
— Como é, chefe?
— Senta aí, Bié.
Silvestre põe o cigarro vagarosamente no cinzeiro.
— Você fez alguma coisa com ele?
— Papo, chefe.
— Ahn.
— O quê que há, chefe?
— Não há.
Silvestre põe o cigarro na boca e demora a acendê-lo.
— Chefe, nós vamos engolir essa história do café?
— É só isso, Bié.
— Pra que você me chamou?
— É pra deixar o homem quieto lá embaixo.
— E o diabo dessa mulher aí fora?
— Chama o cabo Elói.
— Cabo Elói.
— Pronto — o cabo responde da outra sala.
— Põe a mulher sentada aí no banco.
— O que você vai fazer, chefe?
Silvestre levanta-se e chega até a janela:
— Nós vamos esperar o dr. Rocha.
— Mas ele só vem de tarde.
— É por isso que mandei chamar a mulher. A diaba está me embrulhando o estômago. Daqui a pouco você busca o homem, ela fala com ele e vai embora. Mas antes eu quero te falar uma coisa. Lembra do Tião Feio?
— Que tem o Tião?
— Tião está com um carteado no Fluminense.
— Eu sei.
— Tião é compadre do homem.
— Ah.
— Eu estive com o Tião ontem à noite. Ele ficava com o café.
— Besteira, chefe.
— O sujeito passava lá todas as tardes, depois do serviço, deixava o café na cantina, filava uma cachacinha, pegava o cacau, etc. Tião vem falar com o dr. Rocha.
— Chato, chefe.
— É, mas o homem é compadre dele, um fodido. Agora vai lá e traz ele. Vamos ver se ele manda essa mulher pirracenta embora.
Atravessando a sala, Bié dá uma olhada na mulher cochilando no banco. Volta em seguida com Pedro. Sem camisa e descalço e segurando a cintura da calça e a barriga com as mãos, Pedro olha assustado para Raimunda.
— Ocê, Pedro — ela se levanta com o rosto iluminado.
— O que você tá fazendo aqui, Raimunda?
— Tou te esperando.
— Vamos logo com isso — ordena Silvestre vindo da saleta. — Dá um papo com ele e cai fora.
— Vai pra casa, Raimunda.
— Só vou concê, Pedro.
Bié:
— Ela passou a noite toda aí fora.
— Verdade, Raimunda? Você tá ficando doida? Quem é que ficou com os meninos?
— Pedrinho.
— Onde é que você tá com a cabeça, Raimunda?
— Pronto — intervém Silvestre. — Já viu o seu Pedro, agora vai pra casa.
— Obedece, Raimunda.
— Só vou concê.
Bié:
— Esta mulher tá é precisando de um pau.
— Pelo amor de Deus, doutor.
Silvestre:
— Você tem um minuto.
— Tá ouvindo, Raimunda. Volta já pra casa.
— Vou te esperar, Pedro.
— Os meninos, Raimunda. — Pedro solta a calça e torna a segurá-la. — Vai pra casa pelo amor de Deus.
— Vãobora, Pedro.
— Você não entende? Estou preso, Raimunda. Você tem que ficar lá com os meninos.
Raimunda olha Pedro, confusa.
— Chefe, quem sabe a gente recolhe ela também.
— Não, doutor.
Silvestre:
— Taí uma boa ideia. Ou vai embora de uma vez ou vai lá pra baixo.
— Espera, doutor.
Bié:
— Eu vou levar ela de uma vez.
Silvestre:
— É, tranca ela.
— Doutor — Pedro dá um passo na direção de Silvestre —, deixa eu ter um particular com ela.
— Que particular?
— É um instantinho só, doutor.
— Então vamos logo com isso.
Pedro chama Raimunda até a janela. Pedro começa a falar com sua boca banguela. Raimunda apenas ouve e morde os lábios. Pedro fala depressa, exalta-se, tira uma das mãos da calça, sacode-a, depois se cala. Raimunda diz qualquer coisa, rápido, vira as costas e sai apressada pelo alpendre.
— Uai, chefe — Bié debruça-se na janela — a mulher foi embora mesmo.
Silvestre:
— Vem cá.
Pedro se aproxima com uma careta de choro.
— O que é que vocês falaram?
— Deixa ficar, doutor.
— Responde.
— Não é nada não, doutor.
Bié:
— O chefe tá perguntando.
— Doutor, deixa eu ir lá pra baixo.
Bié:
— Olha só, o filho da mãe vai chorar.
— O que é que você disse pra ela?
Bié:
— Responde logo.
Pedro (chorando):
— Falei que tava roubando café pra sustentar outra mulher, estou cansado dela e dos meninos, pra ela ir pro inferno.
— E o que é que ela disse? Ela disse alguma coisa antes de sair.
— Deixa, doutor.
Bié:
— É melhor falar.
— Ela falou se eu não chegar em casa até de tarde, ela dá formicida pra ela e pros meninos.
— Conversa, chefe.
— Você acha que ela é capaz de fazer isso?
Pedro passa a mão no rosto, olha pela janela.
— Você acha?
— Acho sim.