Tricky, o Pescador.

Existe uma semelhança entre se manejar uma raquete de badminton, ou de tênis, com uma vara de pescar.

A semelhança está na elasticidade do pulso. É fazê-lo ir e vir como um elástico. Assim, ao se empunhar uma vara de pescar ou a raquete de badminton, toda a força que aplicamos no braço, tendo como alavanca a firmeza das pernas, ela terá que ser solta como se fluísse de nossos dedos e não da palma da mão.

Tricky relembra das primeiras lições que teve com seu avô, quando iam pescar em Archnashee. Agora ele está a caminho de Antuérpia.

O imenso e belo edifício do século XIX ainda carrega a atmosfera quando era a entrada e saída de ricos comerciantes de diamantes do mundo inteiro. Tricky confere seu relógio com o da Estação Central ferroviária de Antuérpia.

Ele quase não se destaca entre aquela população cosmopolita, a não ser por ter quase 1,95 m, vestindo uma bomber jacket, camiseta preta, jeans e tênis.

Tricky entrega ao motorista de táxi o endereço de um hotel em Grossmarketplatz, que fica em uma rua por trás da Corte de Justiça.

Duas horas depois vamos encontrá-lo numa das cervejarias La Vache que Ri. Alguém chamado Peter Paulus conversa com Tricky enquanto bebem Trapisten, cerveja escura patenteada e negociada ainda pelos monges Farrapistas.

Tricky fala enquanto Paulus acena com a cabeça e anota o que interessa numa pequena caderneta.

No dia seguinte, por volta das doze horas Tricky desembarca do táxi em frente ao hotel com três pacotes. Uma sacola da Kaasdt com roupas, uma pequena caixa e um cilindro de um pouco mais de um metro. Tudo comprado por Paulus , que seguiu no táxi.

Na sacola havia um blazer, camisa e gravata. Tricky fez questão de levar o cabide de madeira em vez do de plástico. Na pequena caixa havia uma besta Barnet e no cilindro um completo jogo de varas de pescar.

Tricky enquanto abre os pacotes se lembra da conversa com a juíza Douglas, menos de dois dias atrás.

- Muddy Brown será julgado em Antuérpia por pedofilia. O procurador público aceitou a troca de acusações, desde que ele entregasse toda a quadrilha de traficantes de heroína. Por pedofilia, em três anos ele será solto. Aqui, adolescentes morreram ou se prostituem devido ao vício que Brown os levou. – fala serenamente, com raiva contida, a juíza Douglas.

- Maureen quer fazer alguns implantes dentários... – resmunga Patrick Higgins

-For God´s sake Tricky! Isto não é hora de gracinhas!

- Eu não estou sendo engraçado. Estou realmente falando sério!

-´Tá bem, ´tá bem. Discutiremos isso após eu te passar as instruções. Entrarás na Bélgica como jornalista de um jornal daqui. Um secretário de um amigo meu, da nossa fraternidade, fará toda a logística do que precisares. Brown foi avisado de que alguém disfarçado de jornalista, vai ajudá-lo a fugir. O material para transformar-te em jornalista será entregue pelo tal secretário. Boa sorte e êxito!

- ...Tricia quer ir a Disneyland!

- Get Lost! (Se arranca!).

A janela do quarto do hotel fica quase do mesmo nível do telhado da Corte de Justiça, a uma distancia aproximada de cinqüenta metros.

- Hum..uns dez metros mais até aquela antena. – calculava mentalmente Tricky.

O encontro com Muddy Brown foi marcado dentro do horário de visitas no presídio em Ostend. Brown não tinha motivos para desconfiar daquele gigante com barba por fazer e algumas visíveis cicatrizes no rosto. Mesmo assim ficou reticente e esperou que Tricky lhe conquistasse a confiança.

- No banheiro do tribunal tem uma janela basculante. Voce vai abri-la e estarei no parapeito pra lhe entregar uma bomba de fumaça com entorpecente e uma máscara contra gases. Assim que a bomba explodir, voce quebra o vidro do basculante e eu te puxarei pra fora. Nos vestiremos com uniformes da guarda nacional belga e escaparemos durante a confusão. Voce não tem medo de altura...tem?- completou Tricky sem se importar com a gramática.

- Claro. O que tu acha, palhaço?! Além disso eu tenho que ficar com a porta aberta do compartimento com o tira me vigiando além dos outros dois que ficam na porta de entrada do banheiro, pelo lado de dentro! Antes que eu alcance a janela... até voce será pego, babacão!

- Calminha, `tá bem? Só to fazendo isso porque devo uma nota preta pro Fatpaul Izael! Todo equipamento de alpinismo estará lá pra nossa segurança... bonequinha! Voce vai, a partir de agora, mastigar e engolir uma guimba de cigarro a cada quatro horas. E alimente-se bem. Vai acontecer um desarranjo intestinal, mas nada que não seja controlável, porém o suficiente para que voce peide o tempo todo e o cheiro será tão brabo que eles vão preferir que voce feche a porta do cubículo!

Ficou combinado que no segundo dia do julgamento, no segundo recesso, Muddy pediria para ir ao banheiro.

No primeiro dia do julgamento, Tricky apresentou suas credencias de jornalista, foi revistado e deixou tranqüilamente sua pasta passar pelo escaner. Evitou sentar-se junto aos outros jornalistas, mas deu um jeito de Muddy vê-lo por um instante.

As sete da noite Tricky e Peter Paulus bebiam a excelente cerveja belga Stella Artois. Peter lhe disse que já tinha adquirido as cem bolas de gás. Tricky guardou duas chapinhas das oito garrafas que eles beberam.

Já no seu quarto, ele encontrou pelo menos umas vinte bolas e uma garrafa de gás. Em seguida desmontou a besta Barnet e após encheu umas cinco bolas com gás, amarrando-as uma à outra.

Pendurou o corpo da arma nas cinco bolas e não foi o suficiente para levantá-lo. Encheu mais bolas até verificar que com quatorze delas seriam suficientes para levitar não só o corpo, mas também o gatilho e a culatra, com boa velocidade de ascensão.

O arco teve que ser descartado. Ele foi projetado para firmeza de disparo. Tricky precisava de impacto, muito impacto.

Quem o visse do lado de fora da janela pensaria que ele estava discursando devido aos movimentos que fazia com braço direito levantado, pois o levava dobrado para trás para logo impulsioná-lo pra frente de modo rápido e gracioso. E se essa pessoa estivesse no teto do edifício da corte de Justiça, veria que após quinze minutos desse exercício, Tricky abriria a janela, colocaria uma mesa ao lado do batente interno. Subindo à mesa, colocaria um pé no peitoril da janela e o outro permanecia na mesa. Em seguida tiraria de algum lugar uma longa vara de pescar. Desta vez, o enérgico e gracioso movimento do braço não foi vertical por inteiro. Teve uma inclinação de uns trinta graus para o lado do corpo. A pessoa veria então a vara fazer uma longa curva e sua extremidade quase tocar o telhado do hotel. Um silvo seria ouvido para logo uma linha com anzol vir a enrolar-se no mastro da antena do prédio da Corte de Justiça.

Tricky agora retira com cuidado o cabo que liga as duas extremidades do cabide. Numa das extremidades faz uma concavidade suficiente para encaixar perfeitamente na cinta extensível que fazia parte da besta. Na outra extremidade encostou uma chapinha da garrafa de cerveja e a apertou até que ela se curvou sobre si moldando a ponta do cabo de madeira e formando uma ponta.

Com o canivete suíço ele faz dois orifícios na parte central do cabide que coincidem exatamente com os dois pinos do corpo da besta, onde antes estava o próprio arco.

Pela manhã do segundo dia do julgamento, nada se nota nos céus de Antuérpia. Tricky juntou as bolas cheias e os apetrechos e os amarrou a uma argola que ele retirou da cortina do banheiro. Desenrolou alguns metros da linha de pescar, passando-o por dentro da citada argola e amarrou a extremidade numa dos pilares da cama. A outra extremidade estava enroscada na antena da Corte de Justiça.

Durante o primeiro intervalo do julgamento, uma van teve sua porta subitamente aberta ao passar pelos fundos do prédio da Corte de Justiça e bolas de gás foram soltas ao ar. Alguns transeuntes olhavam a patética figura que tentava bloquear a saída das bolas de dentro do veículo. Ninguém notou o cacho de bolas, da mesma cor, que saiu de uma janela do hotel e que foi direcionada para o topo da Corte de Justiça. Por fim todas as bolas sumiram entre o céu e os prédios seculares do Boulevard d´Anglais.

Ao reiniciar os trabalhos, Tricky se apresentou para a revista pessoal. O elástico da besta estava pendurado em seu pescoço, por dentro da camisa. A policial que observava a tela do escaner não deu importância para a inocente imagem de um cabide de madeira.

Tricky não foi sentar-se com a assistência. Fez notar a Muddy Brown que se dirigia para as escadas. Ao chegar no andar que dava para o sótão encontrou a porta trancada. Já esperava por isso. Abriu-a com a chave que Paulus havia conseguido já no segundo dia de sua chegada.

Uma vez na laje do teto do prédio, Tricky saca do bolso lateral do blazer um pacote que contem uma vestimenta de nylon de cor bege para motociclistas se protegerem da chuva. Ali no momento, apesar da finíssima chuva que caia, a vestimenta era uma excelente camuflagem devido a cor das paredes exteriores. Com um barbante, ele passa-o por dentro do gatilho da besta, atando as duas pontas, ele faz uma espécie de cinta e passa-a transpassada ao peito.

A flatulência de Brown incomoda até ele mesmo. Mas ele está contente. Em algumas horas estará livre. Quando o juiz determina o intervalo, Brown se torna mais tenso e sua flatulência aumenta. Ele, sem dizer uma palavra, menciona que quer ir ao banheiro. Os guardas não vêem a hora de serem substituídos.

Como o grandalhão falara, o guarda “cão de guarda” permitira que ele fechasse a porta do cubículo . A sua frente, ao alto está a saída para a liberdade. Ele sobe na privada, abre o ferrolho e põe a mão pra fora.

Tricky desce pela parede até uma estreita marquise que fica mais ou menos um metro e oitenta abaixo. Ele olha para quase doze metros de altura donde ele está. Lá embaixo os pequenos paralelepípedos de cor metalizada, brilham com a umidade da garoa que cai. Nenhum problema com ele, um ex-agente do SAS e instrutor de pára-quedismo.

Ele caminha encostado à parede uns três metros até o tubo-dreno da calha. Aí, ele desce um andar e está ao lado do basculante do banheiro.

Muddy Brown tenta controlar seu desespero enquanto acena pela abertura da janela e nada lhe vem à mão.

Alguém diria que Brown não deveria nunca ter posto a cabeça pra fora da janela. Mas que alma neste mundo não sentiria curiosidade de ver, não de saber, ou ambas as coisas, o que estava acontecendo lá fora?

Tricky vê a mão abanando. Ele sabe que é questão de mais alguns segundos. Talvez nem chegue a um minuto.

Muddy Brown com olhar de desespero e raiva vê primeiro uma perna do joelho pra baixo. Se esforça pra olhar mais para cima e... tudo acaba.

Tricky com destreza retira a haste do cabide, ficando a tampinha da Stella Artois enterrada no cérebro de Muddy Brown que vai deslizando para baixo, enquanto o basculante se fecha por si mesmo.

Quando o guarda abre a porta da privada devido ao barulho do baque, Tricky já está subindo a amurada. No percurso até o mastro, onde está o cacho de bolas, ele vai desmontando o cabide da besta. Amarra o restante do apetrecho na argola onde estão as bolas e deixa a contra-força da natureza agir. Retira o anzol da linha e joga-o fora para a rua. Depois dá um nó na haste da antena, tipo laço, a qual se soltará, se uma das extremidades for puxada.

Com toda confusão e ainda sem saberem exatamente como ocorreu o assassinato, foi fácil para Tricky aos poucos ir descendo os andares até sair do edifício.

Maureen sentada no sofá circular do lobby do hotel vê seu marido atravessar a porta giratória. Ele caminha devagar e tem uma leve surpresa quando a vê. Ela sabe o vulcão que está preste a explodir dentro daquela aparência serena que Patrick tem apesar do seu tamanho. Maureen é sempre agradecida a Mrs. Douglas quando lhe pede que vá ao encontro do marido nas viagens dele.

As roupas de Maureen não são despidas, são arrancadas. Ela não se importa quantas vezes seu marido já gozou. Maureen ali não é Maureen, é simplesmente a fêmea que magnetiza todo o estresse provocado pela adrenalina do corpo do macho. Porém esta fêmea é sábia o bastante para deixar seu macho estressado o suficiente pra que ela possa brincar com ele agora.

Antes de saírem, quase que Tricky comete um erro. Em tempo, ele dá um forte puxão na linha de pesca e ela se solta do mastro da antena. Ele recolhe tudo e arruma dentro do estojo de pesca.

Eles pegam o trem das 2:10 da manhã para Paris. Tricky resmunga devido ao hotel de três estrelas que Douglas pagou pra eles pelo final de semana.

O cacho de bolas enfim aterrisou nas águas do maior porto do mundo. As garças curiosas bicam as bolas semimurchas. Um marinheiro de um navio não entendeu porque elas afundaram de repente.

O inquérito deu como causa-mortis, suicídio.

Raferty
Enviado por Raferty em 31/01/2007
Código do texto: T365056