O desagravo

Sentou-se para fazer barba, cabelo e bigode, mas pediu ao barbeiro para deixar um cavanhaque.

Enquanto o velho era atendido, a conversa no salão seguia animada. Causos, piadas, risadas. O próximo era um guarda civil, e dois paisanos em seguida. Todos conhecidos entre si e fregueses habituais da barbearia.

Serviço pronto, o velho aproximou-se do espelho. Passeou a mão direita pelo rosto, sentiu a lisura da pele tratada com Água Velva e o emergente cavanhaque. Sempre quis ter um, mas não se decidia. Tinha chegado a hora.

- Do jeito que eu queria.

O guarda civil já se colocara em pé para tomar a vez na cadeira. Viu a alegria do velho e não aguentou:

- Quando esse cavanhaque crescer, vou tirá-lo a tapa.

Pelo tom de voz que usou, não foi possível avaliar com certeza se brincava ou falava sério, com o intuito de provocar uma briga ou discussão. O fato é que o velho não gostou.

- Será a última coisa que fará na vida.

- Então vou tirar agora – disse o guarda civil, desferindo forte bofetada no ancião.

Todos se calaram espantados e incrédulos com o tresloucado e covarde ato de um homem corpulento contra um idoso frágil. Ninguém entendeu a atitude gratuita do outro.

O velho conseguiu evitar a queda segurando-se no encosto da cadeira de barbeiro. Depois que se recomprôs, cravou os olhos nos do agressor lá no alto e disse:

- Mesmo que eu fosse mais novo, não poderia enfrentá-lo. Você é maior e muito mais forte do que eu. Mas não devia ter feito isso.

Desviou-se do enorme obstáculo à sua frente e encaminhou-se para a porta. Antes de sair, voltou-se e dirigiu a palavra a todos:

- Boa noite, meus amigos. Fiquem em paz.

Sob o silêncio sepulcral que dominou o salão, o guarda civil sentou-se e ordenou cabelo, barba e bigode.

Colocando-lhe o avental, o barbeiro profetizou com seriedade:

- Vou caprichar. Quando eu terminar, você vai estar pronto para o caixão. Ficará bonito.

- Deixe de bobagem, homem. Amanhã tudo estará esquecido. Nem sei por que fiz aquilo...

- Amanhã, iremos todos ao seu enterro. Vi isso nos olhos do velho. Vou perder dois bons fregueses. Vão fazer falta.

A noite mal havia caído. As luzes já estavam acesas nas casas e nos postes. O bar ao lado da barbearia já recebia os fregueses noturnos. Eram pedreiros, eletricistas, pintores, operários da fundição e das pequenas fábricas e oficinas do bairro.

Desta vez, o velho não entrou para um aperitivo. Não queria prosa. Aborrecido, foi direto para casa.

Mal cumprimentou a mulher, que preparava a janta na cozinha. Foi ao quarto e apanhou a espingarda de caça de dois canos, calibre 20. Abasteceu-a com cartuchos de chumbo grosso, para animal grande. Ao sair, foi interpelado pela esposa.

- Aonde vai com a espingarda a essa hora?

- À barbearia. Tem um homem interessado em comprá-la. Não uso mais. Acho que vou vender, se ele pagar o que eu quero. Não me espere para jantar. Estas coisas podem demorar. Nunca se sabe. Estou levando uns cartuchos. Se ouvir tiros não se preocupe, talvez ele  queira experimentá-la no barranco.

Na rua da barbearia, parou debaixo de uma frondosa aroeira. Entre a árvore e a barbearia havia dois postes com luminárias. O primeiro, a uma distância ideal para um tiro certeiro. O segundo a poucos metros da barbearia, quase em frente ao bar. A copa da árvore impedia que a luz chegasse até ele, protegendo-o com generosa sombra, de modo que dificilmente seria percebido, sobretudo por quem estivesse na claridade. Além disso, o tronco era suficientemente espesso para amoitar-se.

Do ponto onde se encontrava, divisava com perfeição as portas iluminadas da barbearia e do bar. Mais a luz do poste, tinha claridade suficiente para acompanhar todo o movimento. Assim, quando seu algoz deixasse a barbearia, o velho teria tempo suficiente para se preparar e atingir o alvo quando ele estivesse sob a luz do poste mais próximo.

A noite estava fria. O velho procurou no bolso o maço de cigarros, mas recordou as caçadas de macuco e desistiu de fumar. Quando caçava, preparava a ceva e camuflava-se no mato a pouca distância, à espera do bicho arisco. Permanecia horas quase sem se mover e sem fumar. O cheiro do tabaco certamente espantaria a presa. Na campanha de agora, a brasa do cigarro poderia denunciá-lo. Melhor aguardar pacientemente o seu macuco, como antigamente.

Para atrair a caça, usava um pio de madeira. Alternava as imitações entre o pio do macho, curto, e da fêmea, um pouco mais longo. Para o guarda civil não precisaria usar nenhum artifício de atração. Ele passaria obrigatoriamente por ali a caminho de casa. Era só esperar. Logo estaria ao alcance da mira. Questão de tempo.

Não demorou. Viu o guarda civil sair da barbearia ajeitando o quepe na cabeça e indo apanhar a bicicleta encostada na parede. Preparou-se para montar, mas mudou de ideia e empurrou-a até o bar. Deixou-a junto às outras e entrou.

O velho assumiu que precisaria de mais paciência. Contudo, não lamentou. Para consumar o desagravo, esperaria o quanto fosse preciso. Seguraria com obstinação a imensa vontade de fumar. Apenas temia que aparecesse algum conhecido querendo prosear e atrapalhasse o plano. Teria de explicar o que fazia ali com a espingarda alçada ao ombro pela bandoleira.

Com os macucos também era assim. Às vezes passava o dia inteiro à espera. Sem comer nem fumar. Segurando até a vontade de urinar.

Quando a grande galinha aparecia, ajustava a mira para o seu pescoço e disparava. Dependendo da distância, o tiro separava a cabeça do corpo, em virtude da alta densidade da chumbada. Em distâncias maiores, com a chumbada menos densa, alguns chumbos atingiam o peito da ave, mas sem estragá-lo. Desta maneira, errar era sempre impossível.

Havia mais de uma hora que o velho estava de tocaia. Ninguém tinha passado a pé na rua de saibro nesse intervalo. Um ou outro carro, dois ônibus e uma dúzia de operários de bicicleta, que não faziam ponto naquele bar ou em bar nenhum. Ninguém reparou nele sob a sombra da aroeira. Devia ser por causa do frio. Todos queriam chegar depressa em casa.

Finalmente, um homem alto, de quepe, saiu do bar. Subiu na bicicleta e veio pedalando devagar. Não havia dúvida de que era o guarda civil. O macuco daquela noite.

O velho apoiou o cano da espingarda no tronco da árvore que lhe acobertava. Puxou o cão direito e apontou na direção do alvo. Com muita calma, esperou que ele fosse iluminado pela luz do poste mais próximo. Fechou o olho esquerdo e com o direito distinguiu através da mira o meio do peito do seu macuco. Ao vê-lo no centro da luz, apertou o gatilho.

O tombo foi imediato. Nem uma pedalada mais, nenhum grito sequer. Então o velho aproximou-se do desafeto caído de costas e encostou-lhe o cano da espingarda no rosto. Engatilhou o cão esquerdo para o segundo tiro. O guarda agonizava, embora não fosse possível ver-se o sangue que lhe jorrava do tórax ensopando a farda azul marinho. A bicicleta caída ao lado, com a roda traseira ainda girando. O quepe fora da cabeça.

- Não vou estragar o trabalho do barbeiro. Já está bonito para o velório – disse, deslocando o cano da espingarda para o peito da vítima - nem vou dar mais esse desgosto à viúva.

Todavia, percebendo que o corpo parara de estrebuchar com o último suspiro, desistiu de atirar.

- A munição está muito cara. Não vale a pena gastar mais um cartucho com você.

Quando ouviram o tiro, o barbeiro e o último freguês do dia, que já estava na cadeira, correram para a porta. A turma do bar também.

- Foi o velho - disse o barbeiro. Acertou o guarda. Eu sabia...

Correram todos para o local. Ao chegarem, o velho encostava a espingarda no poste. Em seguida se acomodou sobre uma pequena pilha de tijolos rente à cerca da casa em frente e tirou o maço de cigarros do bolso. Enfim podia fumar. Pegou um do maço, acendeu com o isqueiro, tragou profundamente e soltou uma longa baforada pelas narinas, como se aquilo fosse a coisa mais prazerosa da vida.

- Chamem a polícia. Ambulância não precisa. Que venha o rabecão, já está morto - disse o velho com tranquilidade. E não se esqueçam de ir ao enterro amanhã. Não era de todo mau. Só fez o que não devia.

Na casa do velho, a mulher terminava de jantar sozinha, quando ouviu o tiro.

- Esses malucos experimentando espingarda no escuro – resmungou. Falta do que fazer...

A polícia demorou a chegar. Ao entrar algemado no camburão, o velho ainda olhou para o guarda civil inerte no solo. Os peritos faziam o trabalho de praxe. Fotografias, medidas, croquis. O fotógrafo do jornal ainda teve tempo de retratá-lo nesse momento, para sair em destaque na primeira página do dia seguinte, ao lado da imagem do corpo estendido no chão.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 23/05/2012
Reeditado em 18/11/2017
Código do texto: T3683790
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