Ao sair, feche a porta

Nunca deixei vestígios. Rastros são para mim um misto de descaso e burrice. Jamais deixei de ser meticulosa e objetiva, porém nunca tinha encontrado alguém como ele. Rastreei seus passos por dias, calculei precisamente os caminhos, planejei rotas de fuga, separei o equipamento e meu uniforme. Sim, eu uso um uniforme. Ele evita que eu deixe marcas de minha identidade e mantém seguro o único patrimônio que é relevante para um assassino: o seu corpo.

Desde que recebi sua ficha, percebi que o trabalho ia ser árduo. Geralmente recuso alvos que tenham notoriedade, pois detesto ver a ignorância dos jornalistas ao comentar sobre o caso em jornais, revistas ou furos televisionados, mas não pude deixar passar. Era o meu número 100 e para nós, matadores, números são muito importantes.

O termo "matadores" intriga muitas pessoas e gera controvérsia, mas acho extremamente oportuno para o nosso trabalho, uma vez que encaro a morte de maneira um pouco peculiar desde que meu irmão desapareceu. A morte para mim não é fim, muito menos começo. Para mim a morte é um fato, um ponto em uma linha. Ela não é nada mais do que deixa de viver. Não deve ser enaltecida em funerais nem venerada em sacrifícios. Deve ser apenas compreendida, como um acontecimento comum a qualquer ser humano, algo corriqueiro, comum. Deve ser esse o motivo que me levou a trilhar esse caminho. Matar pode ser um trabalho bem lucrativo, e alguém tem de fazê-lo.

Minha vítima é habilidosa e influente na política desse país. A Rússia não é mais um ambiente fértil para o secreto, mas continua sendo um celeiro de assassinos por encomenda. É um país muito corrupto e os inimigos do Estado agora podem mostrar o rosto, não precisam mas se esconder sob a sombra do comunismo, o que torna meu trabalho um pouco menos complexo. Seu nome é Yuri Grigorov, e hoje é seu último ato público de campanha à presidência. Na verdade, será o último ato político de sua vida, espero.

Estou hospedada quatro quartos abaixo de sua suíte, em um dos hotéis mais movimentados de Moscou, que vive à beira de um colapso fiscal, tendo suas ruas sido ocupadas por manifestantes furiosos que esbravejam frases sincronizadas sobre justiça e transparência.

Controlo o sistema de vigilância do hotel do meu quarto, e já localizei o lugar aonde será realizado o discurso de Grigorov de minha janela que, diga-se de passagem, é exorbitantemente grande comparada as proporções do meu aposento. Com tudo esquematizado, é chegada a hora.

Desço até o saguão do hotel e sento-me em uma cadeira lustrosa, que remete aos tempos dos Czares russos. Tem uma frase bordada em seu encosto em uma linguagem que não compreendo, mas minha atenção logo se volta para a nave central do salão. É a comitiva de Grigorov que, em meio a gritos e empurrões abre o caminho para a passagem do sempre tranquilo e ponderado político. Sua expressão serena reserva um cinismo macabro, até para uma pessoa acostumada com a indiferença, como eu.

Espero alguns minutos enquanto a multidão de assessores se dissipa e, mantendo uma distância segura do alvo, avanço com passos nervosos em direção ao palanque que será ocupado por ele, em uma praça que fica a duas quadras do hotel.

O discurso foi bizarro. Uma combinação de ignorância e desprezo foi despejada sobre a população de ouvintes, que aplaudiu fervorosamente, como se tivesse acabado de ouvir um monte de elogios e cortejos. Me dei conta, mais uma vez, de quanto é importante manter os ouvidos abertos em sincronia com o raciocínio crítico, mesmo que o governo ou qualquer outra coisa cerque o seu direito de liberdade. Mas isso não era importante, estava na hora de terminar aquilo. Dispersei na multidão e me dirigi ao comboio de três veículos que garantiam a mobilidade de Grigorov pela cidade. O comboio estava cercado por batedores da polícia militar e isso permitia uma maior liberdade de tráfego dos carros pela cidade, tomada pela turba de manifestantes.

Entrei no carro do meio. Era um Bentley Continental azul crepúsculo. Possuía um revestimento interno combinado de mogno e couro costurado, que dava um ar rústico e elegante ao modelo, feito por encomenda. Só consegui entrar no veículo após me passar por motorista do mesmo, logo após de trocar um aperto de mão com o responsável por essa função. O envenenei, utilizei uma seringa de pequeno porte que escondi na palma da mão. Era um veneno paralisante, retirado das folhas de uma planta equatorial. Não era letal. Outro ponto importante para um assassino é evitar aumentar seu número de vítimas. Quanto maior o número de mortes, mais atenção o caso recebe e como sou adepta do estilo Bauhaus, menos é, de fato, sempre melhor.

Segui o comboio até um certo ponto fora da cidade e, numa ação brusca, retirei o carro da estrada e entrei em uma rua próxima a linha férrea que seguia paralela ao asfalto. Na hora, Grigorov percebeu que não era aquele o caminho que o levaria de volta a São Petersburgo, aonde realizaria uma reunião de cúpula. Argumentou comigo a respeito do caminho e respondi que era apenas uma estrada não mapeada que levava a um posto de gasolina próximo. Ele não acreditou. Desferiu um golpe no encosto do banco do motorista, fazendo-me chocar contra o volante. Com um movimento ágil, puxei seu pescoço com a mão esquerda, sem tirar a outra do volante, batendo fortemente com seu crânio na manopla do câmbio automático. Ele desmaiou.

O cheiro de seu escritório estava tomado pelo formol que usei para acordá-lo e era nauseante. Ele abriu os olhos vagarosamente e, sem dizer palavra, encarou-me por alguns segundos. Seus olhos eram castanho claro, o que fazia ressaltar seus cabelos grisalhos e sua feição era dura, como a de um general. Olhou-me profundamente e rompeu o silêncio dizendo que achava que aquele era um de seus últimos momentos. Continuei em silêncio, acoplei o silenciador em minha Colt .45 e posicionei a pistola sobre sua mesa. Ele começou a discorrer sobre cofres e quantias imensas de dinheiro, mas nada daquilo me impressionava. Ele era o objetivo. A missão estava prestes a ser cumprida. Posicionei a arma contra seu peito e disse-lhe: "Nunca pregue indiferença se o seu objetivo e ser notado". A arma vibrou em seu peito. Um, dois, três disparos. Senti o sangue escorrer por minhas mãos e percebi que meus batimentos estavam alterados. Isso não acontecia havia muito tempo. Pus a arma sobre a mesa, e comecei a rememorar aquele episódio. Lembrei de minha mãe chorando após invadirem meu apartamento no subúrbio e saquearem tudo. Lembrei dos gritos de agonia de meu pai sobre o cadáver dela. Ainda lembrava da roupa que ele usava, debruçado sobre o corpo de minha mãe enquanto os assaltantes voltavam e atiravam em suas costas. Lembro dos olhos de meu irmão segurando a arma que havia feito os disparos, os mesmos olhos que haviam me fitado minutos antes. Os olhos que desapareceram por anos, mas que estavam ali de novo, me assombrando. Os olhos que jamais se abrirão de novo. Retirei minhas luvas encharcadas por seu sangue imundo, derramei o que restava da garrafa de formol sobre o carpete, risquei e deixei um fósforo cair.

Saí e fechei a porta.

Fernando Cesar
Enviado por Fernando Cesar em 11/06/2012
Reeditado em 19/08/2013
Código do texto: T3718741
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